A participação da América Latina e do Caribe nas operações de paz da ONU

Por Eduarda Hamann

Para Revista Diálogo.

Este artigo explora a participação de pessoal uniformizado (militares e policiais) da América Latina e do Caribe nas operações de manutenção da paz das Nações Unidas (ONU), através de análise de dados que cobrem o período de 1990 a 2017. O texto também confere destaque ao envolvimento dos governos da região na recente Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti (MINUSTAH, em francês). Por fim, analisa a participação do Brasil nessas operações nos últimos 70 anos para concluir que, apesar dos desafios domésticos que dificultam que o país explore o seu potencial, o engajamento brasileiro nas missões da ONU aproxima-se do que se espera de uma potência regional.

No início dos anos 1990, com o ­m da Guerra Fria, houve uma mudança signifi­cativa nas operações de manutenção da paz da ONU. O número de missões praticamente dobrou, e os mandatos sofreram uma expansão considerável, criando importantes desa­fios para a comunidade internacional. Desde então, a América Latina foi a região que mais aumentou, em termos numéricos, a sua participação. Embora os números absolutos não sejam grandiosos, o aumento relativo é significativo. Entre 2000 e 2010, enquanto triplicava o engajamento de militares em missões de paz da ONU (de 30.446 para 86.231), a participação de militares latino-americanos aumentou em 10 vezes (de 753 para 7.523). Apesar do incremento, cabe mencionar que, desde o ­m da Guerra Fria, a proporção de militares latino-americanos nunca representou mais de 11 por cento (1996) – ou menos de 2,4 por cento (2000) – do total de tropas da ONU. Em média, no período analisado, a participação relativa dos militares da região ­ficou em torno de sete por cento.

Outro aspecto que vale destacar foi que, no período em questão, os países da região se engajaram de maneira heterogênea com as missões de paz. Pode-se separá-los em quatro grupos: os que se engajaram de forma volumosa e contínua, os que tiveram engajamento mediano, os que tiveram baixo engajamento e os que nunca se engajaram.

No período analisado, houve participação contínua, sem interrupções, de apenas quatro países: Argentina, Brasil, Chile e Uruguai (conhecidos como “ABC-U”). Esses mesmos países também se destacam pelo número de tropas que enviaram às missões da ONU, com destacamentos recorrentes não só de militares em missão individual, como também de unidades militares constituídas (pelotões, companhias e batalhões). Uma participação menos ativa e menos volumosa, mas igualmente digna de nota, ocorreu por parte de um segundo grupo integrado por Guatemala, Paraguai e Peru, entre outros. Houve ainda os que quase não participaram, mas que chegaram a enviar alguns militares para um pequeno número de missões – entre eles estão México e República Dominicana, por exemplo. Neste grupo também estão Belize, Barbados e Bahamas que, em meados dos anos 1990, também tiveram brevíssima participação.

Dois momentos chamam a atenção quanto à atuação de militares latino-americanos em missões da ONU. O primeiro ocorre em meados da década de 1990, particularmente em 1995 e 1996, quando estava em vigor a Missão das Nações Unidas no Haiti (UNMIH, em inglês), fato que atraiu vários países da região. O segundo começa em 2004 e coincide com a aprovação da MINUSTAH. Por causa do grande porte militar, diferente de outras missões da ONU no Haiti, e da liderança político-diplomática do Brasil, essa missão atraiu mais recursos humanos e financeiros de vários países da América Latina e, em menor escala, também do Caribe.

No mesmo período, foi bem menos volumoso o engajamento de policiais latino-americanos em missões de paz. Com efeito, e via de regra, os governos da região não têm, entre suas prioridades, o envio de policiais para operações internacionais – seja em missão individual, seja como unidade constituída (formed police units – FPU). Entre as razões estão os grandes desafi­os domésticos na área da segurança pública, a ausência de vontade política e a falta de apoio da opinião pública.

O auge também ocorre em meados da década de 1990, particularmente entre 1993 e 1995, quando o número de policiais latino-americanos nas missões da ONU variou entre 8 a 10 por cento do total. Colômbia e México se destacaram e, em menor escala, encontram-se Argentina, Belize, Brasil, Chile, Guiana e Uruguai. Desde a virada do século, porém, a tendência é de acentuada queda. Entre 2000 e 2003, cai bastante a porcentagem de policiais latino-americanos, mantendo-se entre dois e três por cento do total de policiais da ONU. Há nova queda da porcentagem a partir de 2005, mantendo-se a uma média de 0,8 por cento até os dias atuais.

PREFERÊNCIA DA AMÉRICA LATINA POR ATUAR NA PRÓPRIA REGIÃO

Nos últimos 27 anos, quando os governos latino-americanos decidiram enviar seus militares e/ou policiais para as missões da ONU, por razões geopolíticas eles concentraram-se nas missões da ONU desdobradas no Haiti – primeiro em meados da década de 1990 e, depois, com muito mais vigor, a partir de 2004, como mencionado.

Isso não signifi­ca que os países latino-americanos não tenham se envolvido com missões em outros países da região, como em El Salvador, ou com missões fora da região. Houve contribuições militares signi­ficativas para operações da ONU na África (a exemplo do envio de uruguaios à República Democrática do Congo), na Europa (com o envio de argentinos à Croácia) e na Ásia (brasileiros destacados no Timor Leste). Mas os números são bem menos expressivos se comparados ao que foi enviado à MINUSTAH.

Apesar das diferenças quanto à história, cultura e idioma entre o Haiti e a maioria dos países latino-americanos, os dados demonstram um forte compromisso da região com a própria região. Durante os mais de 13 anos em que durou a MINUSTAH (junho de 2004 a outubro de 2017), os militares latino-americanos sempre foram a maioria das tropas que trabalharam sob a bandeira da ONU. Observa-se um aumento gradativo que começa em 2004, quando militares da região representaram 54 por cento das tropas da ONU, e que chega ao auge em 2015, quando essa porcentagem é de 89 por cento.

A maior contribuição militar para a MINUSTAH veio de Brasil, Uruguai, Argentina e Chile, nessa ordem. Esses quatro países, sozinhos, responderam por mais de 50 por cento dos militares da MINUSTAH durante toda a missão. Tal porcentagem alcança a impressionante marca dos 70 por cento entre 2015 e 2017 por causa do processo de desmobilização dos outros contingentes e da permanência do batalhão brasileiro no terreno.

No que se refere à contribuição com policiais, apesar do baixo número, nota-se, a partir de 2008, uma preferência pela MINUSTAH por parte dos países da região: de 2009 a 2015, uma média de 60 por cento dos policiais latino-americanos que trabalhavam para a ONU estavam servindo na MINUSTAH. Cabe, porém, destacar que o contingente policial da MINUSTAH foi integrado, em sua imensa maioria (cerca de 95 por cento), por pro­ssionais de fora da região latino-americana, com destaque à contribuição de países como Jordânia, Bangladesh, Paquistão, Indonésia e Nepal.

O ENGAJAMENTO DO BRASIL NAS MISSÕES DA ONU E O DESTAQUE À MINUSTAH

Os dados demonstram que o país que mais se destacou na esfera militar da MINUSTAH foi o Brasil. Primeiro, foi quem contribuiu com o maior contingente militar. No auge, ou seja, no imediato pós-terremoto de janeiro de 2010, havia 2.187 brasileiros no país, o que equivalia a 25,4 por cento do total de tropas da ONU. Segundo, além de manter o maior número de militares no terreno, com o aval da ONU o Brasil também garantiu o comando militar da missão (Force Commander), sem rodízio, durante toda a duração da MINUSTAH. Trata-se de um feito inédito na história da organização, que preza pela rotatividade entre as nacionalidades. Para alcançar tal feito, o Brasil precisou superar vários desafi­os doutrinários, normativos, fi­nanceiros e humanos.

Em termos históricos, o Brasil participa das missões da ONU desde a primeira vez em que a organização enviou uma equipe internacional para o território de outros países, em 1947, em uma missão autorizada pela Assembleia Geral e enviada aos Bálcãs. A primeira operação de paz com tropas, em 1956, aprovada pelo Conselho de Segurança e enviada ao Suez, também contou com a contribuição de um grande efetivo militar brasileiro. Ao todo, o Brasil participou de 47 missões da ONU, incluindo 43 operações de manutenção da paz, e enviou ao terreno cerca de 50 mil homens e mulheres uniformizados.

Ao longo desses 70 anos, a participação mais signi­ficativa, tanto em termos quantitativos como qualitativos, foi na MINUSTAH, que durou pouco mais de 13 anos. Cerca de 37 mil brasileiros passaram por essa missão, o que representa 74 por cento de todos os peacekeepers já enviados pelo Brasil, desde 1947.

Com o término da MINUSTAH, tem havido muitos debates no Brasil e na própria ONU sobre futuras participações do país em missões de paz. Uma oportunidade concreta surgiu em novembro de 2017, quando o subsecretário da ONU para assuntos de operações de paz fez um convite formal ao Brasil, em visita so­cial, para que o país enviasse tropas à missão das Nações Unidas na República Centro-Africana (MINUSCA, em francês). Considerando a força da trajetória brasileira nos últimos 70 anos, parece evidente que o país continuará engajado neste tipo de esforço multilateral, ainda que com militares e policiais em missão individual, mantendo intactos o engajamento diplomático e o profi­ssionalismo do pessoal uniformizado que foram a grande marca das ações brasileiras no Haiti.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Desde 1990, a comunidade internacional mudou o seu padrão de engajamento nas missões de paz da ONU, com ênfase à maior participação de países da América Latina. Neste contexto, o Brasil merece destaque, sobretudo a partir do início do século XXI, por ter demonstrado grande capacidade de mobilização, preparo e envio de suas tropas, e por ter sido capaz de manter a liderança política em uma importante missão na região, a MINUSTAH.

Apesar dos avanços, há alguns desafi­os que ainda precisam ser superados, sobretudo nos âmbitos político e legal. De qualquer maneira, é evidente que as participações mais recentes do Brasil – principalmente no Haiti (MINUSTAH) e, em menor escala, no Líbano (UNIFIL) – deixam como legado a certeza de que o país tem vontade política e capacidade operacional de desempenhar um papel-chave não apenas como potência regional, mas também como importante contribuinte de tropas para as operações da ONU.

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