Os fins não justificam os meios

Desde o início da intervenção no Rio, 444 civis foram mortos pela polícia

04/07/2018
Por Ilona Szabó
Publicado originalmente na Folha de S.Paulo

O Rio de Janeiro está em guerra? Para muitos a resposta é sim. Uma guerra não convencional que teve mais um capítulo quando o helicóptero da Polícia Civil —o caveirão voador— foi usado no Complexo da Maré, em operação que deixou sete mortos, suspeitos e inocentes. A área do confronto incluía uma escola, que ficou com pelo menos cem buracos de balas.

Entre os mortos da operação em horário escolar, havia um estudante de 14 anos, a caminho da sala de aula. Suas últimas palavras ainda ressoam: “Mãe, tomei um tiro. Eu sei quem atirou em mim, eu vi. Foi o blindado.

Desde o início da intervenção federal, em fevereiro deste ano, estima-se que 444 civis foram mortos pela polícia —34% a mais que no mesmo período no ano anterior. É urgente falar sobre isso e frear o aumento.

O Direito Internacional Humanitário (DIH) é a área do direito que rege os conflitos armados internacionais e guerras civis e define as regras sobre o comportamento aceitável, ou não, nessas situações.

Seus princípios foram desenhados para evitar sofrimento desnecessário e, ao mesmo tempo, não impedir a guerra. No âmbito do DIH, um conflito armado não internacional se refere a situações onde um Estado combate um ou mais grupos armados ilegais, ou onde tais grupos travam combate entre si.

Alguns especialistas defendem que os princípios do DIH se aplicam a situações como a do Rio de Janeiro. Apesar das diferenças conceituais e legais, o DIH oferece ideias práticas sobre como minimizar os custos humanos da violência organizada no Rio de Janeiro e em outras cidades com situação similar.

A proteção de civis é aplicada em todas as circunstâncias, mesmo que a guerra não tenha sido formalmente declarada.

Assassinatos e execuções sumárias são proibidos, assim como a tortura e qualquer outro tratamento humilhante e degradante. A população civil —ferida, cercada ou detida— deve ser tratada com humanidade em todos os momentos.

Instalações de saúde e educação devem ser mantidas estritamente fora dos limites dos confrontos —uma garantia relativa a crianças, feridos e doentes que tem sido flagrantemente desconsiderada no Rio.

A aplicação formal do DIH a situações como a do Rio traria consequências políticas, tanto estratégicas como táticas.

Isso porque a adoção de tais regras pode influenciar a forma como os governos decidem “combater” as facções armadas, precipitar respostas militarizadas, incluindo o desdobramento de tropas ou até mesmo aintervenção por atores externos.

Pode levar à decretação de emergências e à suspensão de liberdades civis, e excluir iniciativas mais apropriadas para esse tipo de cenário complexo.

Violações do DIH também têm potenciais implicações judiciais. O assassinato de inocentes, tortura e tratamento desumano —incluindo confinamento ilegal e destruição e apropriação injustificada de propriedade— podem ser considerados crimes de guerra ou contra a humanidade. E, em casos extremos, essas ações podem ser encaminhadas para o Tribunal Penal Internacional.

 

Apesar do sofrimento dos habitantes de áreas conflagradas no Rio de Janeiro, é difícil aplicar o conceito oficial de guerra ou conflito armado.

 

A situação de violência crônica demanda ações no âmbito da segurança pública e Justiça criminal, que incluem prevenção e repressão inteligentes e respeito ao devido processo legal.

 

Mesmo assim, as normas de DIH podem inspirar ações concretas e reforçar as garantias constitucionais e regras de direitos humanos vigentes no que tange a proteção de civis.

 

Todos queremos a redução da criminalidade no Rio e no Brasil, mas a proteção de vidas humanas, em especial de crianças e adolescentes é prioridade. Os fins não justificam os meios.

 

Ilona Szabó de Carvalho

Diretora-executiva do Instituto Igarapé, mestre em estudos de conflito e paz pela Universidade Uppsala (Suécia).

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