Soluções estrangeiras inspiram o Rio na luta contra a violência
Cidades que trocaram altos índices de criminalidade por dias mais tranquilos provam que é possível afastar a crise na segurança pública
13/04/2018
Saulo Pereira Guimarães
Publicado originalmente em Veja Rio
A comparação com um passeio de montanha-russa é apropriada, mas meio clichê. Pelo impacto profundo, também pode vir à lembrança um terremoto, como o que atingiu estados brasileiros no começo do mês. Qualquer que seja a analogia, na tentativa de dar a devida dimensão do fenômeno, não resta dúvida de que a desorientação geral, hoje, é justificada: muita coisa aconteceu no Rio desde 2014. A cidade abrigou uma final de Copa do Mundo e, pela primeira vez, sediou os Jogos Olímpicos.
Houve eleições e a economia foi a pique — arrastando o projeto das UPPs, a última grande novidade na área de segurança. De lá para cá, o número de assassinatos na capital saltou de 1 552 casos, em 2014, para 2 125, registrados em 2016. A presença ostensiva de fuzis e outras armas pesadas, os territórios dominados por criminosos e a falta de qualquer política de longo prazo para enfrentar a situação caótica estão entre os principais desafios do poder público.
Um passo foi dado com a intervenção federal, que completa dois meses agora, mais marcada pelas mortes de Marielle Franco e Anderson Gomes do que por algum resultado benéfico, de fato, para a população. Em meio a esse quadro desanimador, há uma constatação alvissareira: cidades estrangeiras que trocaram altos índices de criminalidade por dias mais tranquilos provam que é possível afastar a crise na segurança pública.
Às informações já disponíveis devem ser somados investimentos estratégicos, medidas preventivas e ajustes legais. Vai dar trabalho? Com certeza. É preciso reunir pessoas determinadas a liderar essas mudanças? Sem dúvida alguma. Mas, com a combinação de alguns desses fatores, foi alcançado o caminho da vitória sobre o crime em lugares tão distintos quanto Chicago, nos Estados Unidos, Cidade do Cabo, na África do Sul, e Glasgow, na Escócia. Fica a dica, ou melhor, a inspiração que pode estar faltando para o Rio, finalmente, virar a página.
Em 1989, dados do governo colombiano indicavam que a conjunção de guerra entre gangues, guerrilha e narcotráfico havia transformado Medellín na cidade com o maior número de assassinatos do mundo. Eram mais de 20 000 casos por ano. Do cansaço, a sociedade passou à mobilização.
Um pacto oferecido pelo governo tirou do front mais de 4 000 soldados do crime e, em paralelo, os cartéis estabeleceram uma trégua. Nos anos 2000, prefeitos investiram em áreas abandonadas. A distância entre o centro e a periferia diminuiu com o Metrocable, teleférico que custou o equivalente a 70 milhões de reais.
Para se ter uma ideia, o triplo desse valor foi consumido na versão carioca do projeto. Hoje abandonado no Complexo do Alemão, o sistema foi comparado a uma estação de esqui nos Alpes pela advogada francesa Christine Lagarde, diretora do Fundo Monetário Internacional, que o visitou em 2015. Com novos parques, bibliotecas e outros espaços, os bairros cortados pelo bondinho colombiano tiveram queda de 66% nos homicídios, segundo a Universidade de Columbia, e aumento no número de negócios, de 39 para mais de 200.
A prosperidade reduziu a pobreza pela metade, e a metrópole foi eleita Cidade Inovadora do Ano pelo Urban Land Institute, em 2012. “A militarização no Rio pode ser complementada por iniciativas sociais, como aconteceu aqui”, afirma Mimi Yagoub, pesquisadora da fundação InSight Crime Colômbia.
É melhor prevenir do que remediar. Que o diga Chicago, uma das três cidades dos Estados Unidos com os maiores números de homicídios desde 1985, segundo dados oficiais. Incomodado com a marca, o professor Gary Slutkin, da Universidade de Illinois, criou em 2000 o Cure Violence.
Trata-se de um projeto com três pilares. O primeiro é a interrupção de conflitos promovida por agentes treinados, prontos para conter vinganças e costurar acordos entre gangues. O segundo é a atenção específica, por meio de ofertas de trabalho e outras ações, a indivíduos em risco de entrar para o crime.
Um terceiro ponto é o combate a condutas nocivas, através de manifestações públicas e outros eventos contra a violência. Em 2014, o orçamento para a iniciativa foi de 10 milhões de reais. Parece muito, mas é pouco diante dos resultados. Primeiro bairro a servir de laboratório, West Garfield Park passou três meses sem tiroteios — cuja incidência, em um ano, caiu de 43 para catorze. Estendido a outras áreas, o projeto reduziu os assassinatos em um terço. Com o sucesso, o modelo foi exportado para onze países. “Temos experiência e resultados que podem ser replicados no Rio”, diz Slutkin.
Cosmopolita, estrela do turismo mundial, Nova York exibia realidade tristemente familiar nos anos 1980. Drogas eram vendidas na rua, sem maiores pudores, e tiroteios faziam parte da rotina dos moradores.
Em 1994, William Bratton assumiu a chefia da polícia. Ele apostou no patrulhamento ostensivo e na tecnologia. Mapeou o crime com computadores e discutia resultados e estratégias com subordinados em reuniões semanais. “Hoje, a eficiência da polícia no Rio é medida mais pela mídia do que por indicadores”, diz Ubiratan Angelo, ex-comandante da PM e atual coordenador de segurança do Viva Rio.
Com a receita de Bratton, Nova York viu o número de ocorrências cair 90% em locais como Times Square. O efetivo da polícia cresceu 35% entre 1990 e 2000 e o total de homicídios em 2017 foi o menor desde 1951, segundo dados oficiais. “As táticas e os alvos são os mesmos aqui e no Rio”, afirma o criminologista americano Franklin Zimring, autor de um livro sobre o processo de mudança americano. “Os locais onde os crimes acontecem precisam de presença policial visível e contínua”, explica.
Levantamento feito pela ONG mexicana CCSPJP (Conselho Cidadão de Segurança Pública e Justiça Penal) revelou que a Cidade do Cabo passou de nono para 15º local mais violento do mundo entre 2015 e 2017. Uma aposta local para conter o crime é a reforma de residências em áreas pobres.
Segundo estudo do Banco Mundial, problemas de habitação são gatilhos para a violência. Na região de Sheffield Road, entre 2010 e 2012, barracos frágeis e desordenados foram refeitos e reorganizados em núcleos. A mudança aumentou a visibilidade na vizinhança e a sensação de segurança. Relatos de assaltos caíram pela metade e houve redução na quantidade de homicídios e crimes por vingança, de acordo com pesquisa da Universidade da Cidade do Cabo.
A ideia pode ser útil para becos e vielas cariocas. “Em termos de urbanismo e planejamento, o Rio fez tudo errado”, comenta Alberto Kopittke, membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. “E, mesmo com a receita não funcionando, temos aumentado a dose do remédio”, diz.
São dados oficiais: o Estado do Rio tinha em suas cadeias 28 688 vagas e 51 511 presos em fevereiro deste ano. “Uma prisão superlotada empurra os detentos para o crime”, explica Robert Muggah, diretor de pesquisas do Instituto Igarapé. Quando enfrentou questão parecida, a Holanda optou pelo óbvio: esvaziar os presídios.
Nos últimos anos, juízes de lá deram penas mais leves a tráfico de drogas e outros atos. A ideia é manter o vínculo dos criminosos com a sociedade, facilitando a reabilitação do infrator. Entre 2005 e 2015, o número de presos no país encolheu 43% e o uso de tornozeleiras eletrônicas cortou pela metade os casos de reincidência.
O trabalho deu tão certo que, em 2015, a vizinha Noruega pagou 90 milhões de reais para usar por três anos a prisão de Norgerhaven, na cidade holandesa de Noordenveld, que estava vazia. “É preciso não apenas construir presídios, mas rever sentenças e evitar que ex-presos voltem à cadeia”, afirma Muggah.
Augusto “Willie” Falcon entrou para o crime ao abandonar a escola nos anos 1970. Na década seguinte, ele viu Miami se transformar em um paraíso perdido, com roubos e atentados em shoppings motivados pela presença estratégica da cidade na rota do narcotráfico. Willie era conhecido como um dos caubóis da cocaína e, preso em 2003, firmou com a polícia um acordo de delação premiada.
Presente no atual noticiário político brasileiro, o recurso legal foi uma das ferramentas usadas para reduzir o número de assassinatos em Miami, de 621, em 1981, para 231, em 2016, de acordo com dados oficiais. O investimento em inteligência permitiu que 41% dos homicídios na cidade entre 2012 e 2015 fossem desvendados, segundo a polícia.
No Estado do Rio, esse mesmo índice foi de 4% entre 2007 e 2011. “Nossa taxa de esclarecimento de crimes é vergonhosa”, resume Maria Laura Canineu, diretora do Human Rights Watch no Brasil. “Quando não há uma boa investigação antes, as ações policiais geram poucos resultados”, comenta Bruno Langiani, do Instituto Sou da Paz.
Nos anos 2000, Glasgow era uma das cidades com maior incidência de assassinatos na Europa Ocidental. Brigas em campos de futebol nas sextas à noite eram comuns e resultavam em um número lastimável de mortes por facadas. A idade média dos assassinos era 17 anos, segundo fontes oficiais.
Para deter a onda criminosa, o governo escocês decidiu dar combate específico às armas brancas. Entre 2005 e 2014, aumentou de quatro para treze meses a pena média de quem era pego com facas e intensificaram-se as advertências a jovens com maior risco de envolvimento com o crime. Também foi mapeada a atuação de gangues. O resultado foi a redução pela metade na quantidade de homicídios na cidade. Por falta de demanda, as delegacias deixaram de funcionar 24 horas por dia.
No Rio, mortes por punhais e outros instrumentos perfurantes são ofuscadas por homicídios promovidos com pistolas e fuzis. Mas a questão das armas também é vista como central por especialistas. “Controlar seu fluxo é essencial para vencer a violência”, afirma Alberto Kopittke, membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.