A derrocada violenta da Nicarágua
O que torna o último surto de violência política particularmente notável é a rapidez com que a opinião pública passou a se opor ao presidente Daniel Ortega
25/07/2018
Por Robert Muggah
Publicado originalmente em O Globo
A Nicarágua vive um dramático surto de violência. Mais de 300 nicaraguenses foram mortos e 1.800 ficaram feridos desde a escalada dos protestos há três meses. Os manifestantes estão revoltados com as propostas de aumento da contribuição à Seguridade Social e de redução de pensões. Nos protestos, milícias pró-governo e membros das forças de segurança — munidos com revólveres, espingardas, fuzis de assalto e cassetetes — enfrentam manifestantes que carregam estilingues, pedras e bombas caseiras. As semelhanças com a violência política dos anos 1970 e 1980 são desconcertantes.
Mas a situação poderia ser mais sangrenta. A sociedade nicaraguense não é particularmente armada. São 5,2 armas de fogo por cem habitantes, um dos índices mais baixos do mundo. No ano passado, a taxa de homicídios foi de apenas 6,8 por cem mil habitantes, cerca de 40% com armas de fogo. É uma das menores das Américas, a metade da vizinha Costa Rica, a “Suíça da América Latina”, e quase dez vezes menor que a de El Salvador.
Infelizmente, muitas das políticas progressistas do país começaram a ruir a partir de 2007, com a reeleição de Ortega. A gestão sandinista freou reformas na segurança pública, o engajamento da polícia com as comunidades e parcerias com ONGs, em meio a acusações de que algumas estavam promovendo pautas contrárias ao governo.
Além disso, surgiram alertas de corrupção crescente e politização das forças policiais e militares. A confiança nas forças de segurança do país se dissipou. Membros de milícias e das próprias forças de segurança assediaram e prenderam manifestantes. Seis pessoas foram chacinadas pelas Forças Armadas, um prelúdio do massacre que estava por vir. E foi o que aconteceu — a violenta retomada da cidade de Masaya neste mês levou a protestos internacionais.
Mas os problemas começaram muito antes. Embora tenha conseguido evitar grande parte dos crimes violentos associados ao narcotráfico, o país vem sofrendo, há décadas, com a presença de bandos de traficantes, sendo um importante ponto de apoio do Cartel de Sinaloa e de Los Zetas, do México, e de quadrilhas colombianas para o mercado americano.
Apesar das denúncias do governo Ortega, há poucas evidências de que seus opositores políticos sejam financiados por traficantes. Pelo contrário, há muito se alega que as campanhas eleitorais do presidente foram financiadas pelo dinheiro do narcotráfico. Nos anos 1980, Ortega foi acusado de cumplicidade com o ex-chefão do tráfico Pablo Escobar.
O que torna o último surto de violência política particularmente notável é a rapidez com que a opinião pública passou a se opor ao presidente. No geral, antes da eclosão dos protestos, a maioria dos nicaraguenses estava satisfeita. Em 2017, o apoio ao governo somava mais de 70%, e quase 75% acreditavam que o país estava melhorando. E com boas razões. O índice de pobreza caiu de 42% para 29% desde 2007, e a economia estava crescendo de forma robusta, a 4%-5%. A reviravolta desde o ano passado é um sinal das turbulências que a região vem enfrentando.
Enquanto um diálogo nacional está em andamento para resolver a crise, a única maneira de sair do impasse é Ortega convocar eleições ou renunciar. O secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, repudiou a violência, pedindo o fim imediato das hostilidades. O governo da Nicarágua deve cumprir integralmente as recomendações estabelecidas por uma Comissão Interamericana de Direitos Humanos independente. Para que haja qualquer acordo, o processo deve ser liderado pela Nicarágua. Mas o Brasil, junto com seus parceiros, pode ajudar a pressionar as negociações e monitorar as futuras eleições.
Robert Muggah é diretor de pesquisa do Instituto Igarapé