A ameaça da desinformação sobre o desarmamento, por Instituto Igarapé
“O aumento de 1% de armas de fogo em circulação eleva em até 2% a taxa de homicídio no Brasil (Ipea). E o Mapa da Violência calcula que, entre 2004 e 2012, o Estatuto do Desarmamento poupou 160 mil vidas. Revogá-lo é um retrocesso”
Por Dandara Tinoco
Publicado no Jornal GGN
A Revogação do Estatuto do Desarmamento, possibilitando o porte de armas aos brasileiros, foi uma das bandeiras de campanha do presidente eleito Jair Bolsonaro para a área de Segurança Pública. Prometendo ser uma de suas prioridades assim que tomar posse, em 2019, a liberação de armas é alvo de críticas de organizações da sociedade civil, que avaliam a medida como um retrocesso na segurança, na defesa de direitos humanos e na proteção à vida.
Dois projetos em pauta no Congresso Nacional trazem a promessa do futuro presidente de serem votados no início do próximo ano [confira aqui o que tratam estas propostas]. Buscando compreender os riscos e as consequências da revogação do Estatuto do Desarmamento no Brasil, o GGN consultou diversas organizações e entidades da sociedade civil que apresentaram seus posicionamentos a respeito da medida. Abaixo, a colaboração do Instituto Igarapé para o debate.
A ameaça da desinformação sobre o Estatuto do Desarmamento
Por Dandara Tinoco
Duas características que podem parecer antagônicas vêm marcando a discussão sobre mudanças na legislação brasileira que regula armas de fogo e munições. O debate é, ao mesmo tempo, intenso e superficial. Intenso porque a segurança está entre as principais preocupações de brasileiros, profundamente atingidos pela violência e, assim, aflitos por soluções. A urgência é legítima. Porém, muitas vezes impede que olhemos com o cuidado necessário para essa questão. Experiências em nosso país e no resto do mundo mostram que flexibilizar as atuais regras implicará em um agravamento ainda maior da nossa situação. Isso fica evidente quando buscamos entender alguns detalhes.
Antes de tudo, é preciso conhecer o que diz a lei 10.826, de 2003. Ao contrário do que faz parecer o nome pelo qual ficou conhecido, o Estatuto do Desarmamento não desarma a população. Cidadãos brasileiros podem ter até seis armas de fogo. Isso, claro, desde que preencham alguns requisitos. É preciso ter mais de 25 anos, comprovar ocupação lícita, residência, capacidade técnica e aptidão psicológica. O indivíduo não pode possuir antecedentes criminais, estar respondendo a inquérito policial ou a processo criminal. Além disso, deve declarar porque necessita de uma arma.
A legislação brasileira tampouco proíbe a comercialização de armas, tema discutido no referendo de 2005. Com frequência, se afirma, de maneira incorreta, que a opinião da população demonstrada naquela ocasião foi desrespeitada. “O comércio de armas e munição deve ser proibido no Brasil?”, perguntou a consulta popular. A maior parte dos cidadãos respondeu que “não” e, acatando isso, manteve-se a comercialização, o que viabiliza a posse. Caso contrário, ela não seria possível.
Mas, então, qual a relevância do estatuto? Um dos importantes avanços da legislação diz respeito ao controle do porte de armas, ou seja, ao ato de andar por aí armado. A lei proíbe cidadãos em geral a portarem armas, salvo no caso de algumas categorias profissionais, como integrantes das Forças Armadas, policiais e guardas municipais. Assim, quem tem uma arma e não se encaixa nesses casos, deve mantê-la em sua casa ou em seu local de trabalho, desde que seja o responsável legal pelo estabelecimento.
A lei representou um avanço porque estudos mostram que mais armas são sinônimo de crescimento na violência letal. Estudos em diversas partes do mundo mostram que ampliar acesso a armas aumenta conflitos com mortes. No Brasil, de acordo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o aumento de 1% de armas de fogo em circulação, eleva em até 2% a taxa de homicídio no Brasil. E, mais, ter uma arma não é garantia de estar protegido. Em São Paulo, o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) constatou que pessoas armadas tinham 56% mais chance de serem mortas por ladrões do que as que circulavam desarmadas. Isso porque o fator surpresa costuma estar a favor de quem pratica o crime e não de quem reage a ele.
Os riscos de enfraquecer a legislação não acabam aí. Uma série de pesquisas mostram que armas apreendidas pela polícia costumam nascer na legalidade, mas, ao longo de suas trajetórias, acabam sendo desviadas. Isso pode ocorrer a partir de subtrações em arsenais das próprias forças de segurança, de empresas privadas ou vítimas de assalto armadas. Assim, como indicado pelo próprio futuro ministro da Justiça, “uma flexibilização excessiva pode ser utilizada para municiar organizações criminosas”. Adicionalmente, armas elevam as chances de ataques a tiros em massa. Em casa, aumentam o risco de acidentes, suicídios e assassinatos de parceiros.
Precisamos admitir que sozinho o Estatuto do Desarmamento, como toda lei ou política pública, não é uma solução mágica. Segundo a Polícia Federal, o número de registros anuais de armas de fogo de pessoas físicas disparou de cerca de 3 mil, em 2004, para 33 mil, em 2017. Apenas em 2016, 44.475 pessoas morreram pelo disparo de uma arma de fogo. Por outro lado, até o início de 2014, quase 650 mil armas de fogo foram entregues voluntariamente pela população. E, o Mapa da Violência calcula que, entre 2004 e 2012, a lei poupou 160 mil vidas.
Os dados e avaliações demonstram que revogar o Estatuto é um retrocesso. É preciso, ao contrário, aperfeiçoar a lei e sua aplicação. Aprimorar o processo de registro periódico de armas de fogo, mecanismos de consulta para rastreamento mais eficientes e a política de marcação de armas e munições são alguns exemplos de como fazer isso. Aprofundar o debate é crucial para conduzi-lo de maneira responsável. A primeira arma a que devemos recorrer para reduzir a violência é, portanto, a informação.
*Dandara Tinoco é assessora sênior em comunicação e pesquisa do Instituto Igarapé. É formada em jornalismo pela PUC-Rio e possui mestrado em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento pela UFRJ.