Mudanças climáticas e segurança nacional
Por Adriana Abdenur
Publicado no Le Monde Diplomatique
Em 2018, caças F-22 foram parcial ou totalmente destruídos quando o Furacão Michael atingiu a Base Aérea Tyndall, na Flórida. As aeronaves, que valem bilhões de dólares, estavam em solo para manutenção. O furacão, de categoria 4 na escala Saffir-Simpson (que vai até 5), danificou gravemente os hangares da base e boa parte do seu conteúdo.
O evento extremo chamou atenção para um risco que, até poucos anos atrás, sequer constava na lista oficial de ameaças à segurança nacional dos Estados Unidos: o impacto das mudanças climáticas. Um relatório publicado pelo Pentágono em 2014 já havia alertado que o clima representa “riscos imediatos” para a segurança norte-americana, argumentando que medidas concretas de adaptação seriam necessárias.
Frequência e intensidade dos eventos meteorológicos e a elevação do nível do mar oferecem riscos. Já sabemos que dezenas de bases navais norte-americanas, sobretudo situadas em atóis e ilhas do Pacífico, são vulneráveis. Desastres como o Furacão Michael mostram que as políticas de adaptação colocadas em prática não foram suficientes, segundo novo relatório de defesa. Dois terços das instalações estão sob risco de inundação. Mais da metade é vulnerável a secas e incêndios florestais.
As mudanças climáticas já ameaçam instalações militares brasileiras. Em outubro de 2017, uma tempestade tombou uma aeronave Pantera K2 e danificou helicópteros, gerando estragos milionários na base do Comando de Aviação do Exército, em Taubaté. Os ativos militares brasileiros estão concentrados geograficamente. As chances crescentes de vendavais, enchentes e secas representam ameaças à segurança nacional não apenas no espaço terrestre mas também na costa.
As ameaças não se limitam aos danos materiais. As Forças Armadas no Brasil são importantes no desenvolvimento de áreas remotas e na assistência humanitária, inclusive em casos de desastres naturais e ao longo das zonas de fronteira. O agravamento de tais quadros requer planejamento de longo prazo para mitigação e adaptação. É necessária maior reflexão, inclusive do Ministério da Defesa, sobre como adequar políticas e instituições a essa nova realidade.
As mudanças climáticas se multiplicam e aceleram os conflitos armados por todo o mundo. Dado o histórico brasileiro de participação em operações de paz, tais impactos também são altamente relevantes para a política externa brasileira. Estudos já mostram que elas produzem desafios adicionais às missões de paz das Nações Unidas. Na região do Sahel, a desertificação vem acirrando disputas em torno da água, exacerbando a insegurança alimentar e contribuindo para o surgimento de grupos extremistas.
O clima tem efeitos sobre os padrões de violência e tensões sociais também na América Latina. Nos Andes, o derretimento das geleiras reduz o volume de água de rios. Milhares de pessoas que vivem em vários países da região dependem desses rios, que irrigam terras bem além das áreas montanhosas. O próprio Amazonas nasce das águas de degelo do Nevado Mismi, ao sul do Peru. A América Central e o Caribe sofrem com o impacto de furacões. O Haiti, onde o Brasil teve expressiva atuação junto à missão de paz da ONU, é considerado um dos países mais vulneráveis do mundo às mudanças climáticas.
No Brasil, essa influência começa a ser compreendida. Na Amazônia, mudanças nos padrões pluviais afetam os padrões de seca e de inundações. Isso exacerba os conflitos em torno da terra, provoca enormes fluxos migratórios internos e contribui para crises hídricas em grandes regiões metropolitanas, tais como São Paulo. A mudança climática já ameaça os chamados “rios voadores,” correntes de vento que trazem umidade da Amazônia até a região centro-sul do Brasil.
No Cerrado, a elevação da temperatura pode estender o período de seca, reduzindo a cobertura de árvores e favorecendo as queimadas. Essas secas terão impacto de cada vez maior alcance, já que o Cerrado distribui águas para as principais bacias hidrográficas do país. Em todas essas regiões, infraestruturas críticas, desde hidroelétricas até instalações portuárias, podem sofrer danos irreversíveis em questão de horas em casos de eventos climáticos extremos.
O Ministério da Defesa organizou debates pontuais sobre os impactos das mudanças ambientais em contextos específicos, tais como as operações militares marítimas, terrestres e aéreas. A Política Nacional de Defesa menciona as mudanças climáticas uma vez: afirma que o fenômeno “tem graves consequências sociais, com reflexos na capacidade estatal de agir e nas relações internacionais”. O Livro Branco da Defesa sequer cita as mudanças climáticas. É necessária uma abordagem preventiva e transversal, que preze a cooperação internacional, a mitigação e adaptação de todos os setores da sociedade brasileira. Caso contrário, inclusive as Forças Armadas serão prejudicadas pela falta de preparo.
Quanto à política externa, a permanência do Brasil no Acordo de Paris permite que o país também coopere com outros Estados. Isso para o desenvolvimento, e também para a segurança nacional. Faltam, portanto, políticas e diretrizes que levem a sério o enorme impacto que as mudanças climáticas já surtem sobre os interesses nacionais, e os efeitos ainda mais graves que o fenômeno terá sobre a segurança durante as próximas décadas. As mudanças climáticas requerem uma visão a longo prazo, sob uma ótica de direitos humanos e fundamentada no planejamento sistemático e de precaução.
*Adriana Erthal Abdenur é da Divisão de Segurança e Paz do Instituto Igarapé.