Moradores de comunidade do Rio comentam o que especialistas discutem sobre segurança
Reage, Rio! reuniu profissionais da segurança pública, especialistas na área e representantes de candidatos ao governo do estado
Por
Publicado originalmente na Época
A cidade do Rio de Janeiro registrou, de fevereiro a agosto deste ano, 4.039 assassinatos e 82 mil furtos. Só em setembro foram 857 tiroteios. Esses números pouco fazem lembrar a paisagem idílica eternizada nos versos de Tom Jobim ou a beleza celebrada na voz de Gilberto Gil. O Rio de Janeiro vive uma de suas maiores crises na segurança pública em mais de dez anos. Para discutir saídas, ÉPOCA e os jornais O Globo e Extra , em parceria com a Enel, empresa do setor elétrico, promoveram na quinta-feira 27 mais uma edição do Reage, Rio!, seminário que reuniu profissionais da segurança pública, especialistas na área e representantes de candidatos ao governo do estado.
Durante o primeiro painel, o coronel da Polícia Militar Luís Claudio Laviano destacou que as Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) surgiram em uma cidade de economia pujante, onde grandes investimentos ainda eram uma realidade. Nesse cenário favorável, o projeto teria conseguido cumprir com êxito seus principais objetivos. “Os índices ( de criminalidade ) foram reduzidos. Alguns locais em que empreendimentos imobiliários estavam degradados tiveram um boom. Lembrem-se da área da Tijuca, da própria Zona Sul.”
É interessante perceber que a fala do coronel não se estendeu ao enumerar os benefícios das UPPs nas favelas. O foco são as regiões nobres da cidade, em especial os empreendimentos ameaçados pela crescente onda de violência urbana. Mais que um esquecimento, esse detalhe mostra como as políticas de segurança pública são elaboradas de modo a privilegiar aspectos financeiros e imobiliários. Para notar isso, basta olhar o saldo que a intervenção federal deixa no Rio de Janeiro.
Em quase oito meses, o número de roubos caiu de 140 mil em 2017 para 137 mil em 2018. Com um investimento operacional de R$ 46 milhões nas Forças Armadas, os roubos de carga tiveram uma queda de 9,5%. Por outro lado, o número de mortes violentas segue em alta. No ano passado, eram 3.810 assassinatos, neste ano o número já chega a 4.039. Mortes causadas pela ação policial também estão em curva ascendente, com 916 casos neste ano, em comparação a 615 no ano passado. A intervenção de fato tem tido resultados extraordinários, como afirmou o presidente Michel Temer, mas na preservação de bens. Naquilo que deveria ser sua principal missão — salvaguardar vidas —, ela tem falhado a olhos vistos.
Para a antropóloga Silvia Ramos, do Observatório da Intervenção, medidas que não tenham como norte a preservação da vida não podem ser consideradas políticas de segurança. “Quem acha que é mais importante proteger cargas, e não a vida, estará fazendo política de segurança errada. Política que acentua tiroteio nas favelas está repetindo o pior das políticas de segurança dos últimos 30 anos”, afirmou durante o seminário. A pesquisadora disse ouvir setores das Forças Armadas defender uma intervenção política no Brasil sem que nada seja dito por seus comandantes. “A gente está vivendo com uma naturalidade, uma trivialidade, um processo extremamente problemático, perigoso e que pode abrir precedente.”
Quando a Cidade de Deus amanheceu tomada pelo Exército, um morador tentou fingir que aquele era um dia normal. Que os tanques faziam parte da paisagem, que as fardas eram habituais e que os fuzis não representavam perigo. No segundo dia, o faz de conta já não exigia muito esforço. Quando se é preto e favelado, fingir pode ser a diferença entre a sanidade e a loucura. Fazer de conta que não é um alvo, que os seguranças não o seguem, que o coração não acelera toda vez que um PM se aproxima. Mas, às vezes, não se consegue ignorar. Às vezes, ao sair para o trabalho, um tiroteio começa, e segurar o choro parece impossível. Às vezes, simplesmente não se quer mais segurar o choro.
Em 2009, existia na Cidade de Deus um clima de desconfiança em relação às UPPs, que aos poucos deu lugar à tranquilidade. Os helicópteros da PM já não davam rasantes nas lajes da vizinhança. Não se viam mais fuzis nem barreiras no meio da rua. A vida já não ficava em suspenso por trocas de tiros que poderiam durar dez horas. Isso obviamente não existe mais. A violência voltou, e talvez tenha voltado pior do que antes. O estado deu o mínimo suficiente para que se pensasse que a paz seria possível e logo depois tirou tudo isso. A sensação de ter sido traído é uma constante.
A ausência de políticas eficientes na área de segurança gera graves consequências no acesso à cidadania. Para ilustrar o fenômeno, a cientista política Ilona Szabó lembrou que 166 mil alunos não tiveram aula em razão da violência só no ano passado. “Sem segurança pública, a democracia está ameaçada. A gente precisa entender que a saída está na segurança pública, porque, se a saída for cada um por si e Deus por todos, ninguém estará mais seguro”, declarou ela. “O problema mais dramático que nós temos na sociedade é uma coisa intangível, que é você dormir sob o barulho do tiroteio. Isso sobre crianças de 0 a 7 anos tem um efeito permanente na vida”, afirmou a diretora-presidente do Instituto de Segurança Pública, Joana Monteiro, em sua fala de encerramento durante o painel Cidadania Ameaçada.