A crise migratória venezuelana requer resposta internacional
O ataque recente a um acampamento de venezuelanos no município fronteiriço de Pacaraima, que forçou o regresso de 1.200 deles ao seu país de origem, não se trata de um episódio isolado
19/09/2018
Por Adriana Erthal Abdenur, Maiara Folly e Lycia Brasil
Publicado originalmente no Le monde diplomatique
O êxodo venezuelano se aproxima da crise migratória do Mediterrâneo, segundo a ONU. Estima-se que entre 2.700 a 4.000 pessoas atravessem a fronteira de países vizinhos todos os dias. Embora o discurso de que a situação no Brasil esteja “fora de controle” ganhe força, o país está longe de ser destino prioritário de venezuelanos. Os ataques recentes nos municípios fronteiriços não são episódios isolados. Iniciativas locais pautadas no populismo acabam por incentivar a xenofobia e ignoram que o acolhimento de refugiados não se trata apenas de imperativo moral, mas de obrigação legal do Brasil sob o direito internacional e leis domésticas.
A hiperinflação – que, de acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI), deve chegar a 1.000.000% ainda este ano – somada à escassez de alimentos e medicamentos e à profunda repressão política do governo de Nicolás Maduro provocam um fluxo migratório sem precedentes na América Latina. Em meio a esse fluxo, migrantes mais vulneráveis, inclusive crianças, mulheres e indígenas, ficam particularmente expostos a maus-tratos, exploração, tráfico de pessoas e violência, inclusive de natureza sexual.
Índices epidêmicos de violência na Venezuela agravam o êxodo de indivíduos que deixam o país temendo perseguição e até morte. Caracas, a capital venezuelana, é atualmente considerada a segunda cidade mais violenta do mundo. Isso ajuda a compreender porque 80% dos venezuelanos têm “muito” ou “parcial” medo de serem assassinados.
De acordo com a Organização Internacional da Migração (OIM), 2,3 milhões de venezuelanos já deixaram o país desde 2015. Desse total, cerca de 50 mil pessoas vieram para o Brasil. Embora esse número represente apenas 2% do total de refugiados venezuelanos, a tímida política de acolhimento e a concentração de migrantes em cidades fronteiriças começam a provocar reações xenófobas por parte da população local.
O ataque recente a um acampamento de venezuelanos no município fronteiriço de Pacaraima, que forçou o regresso de 1.200 deles ao seu país de origem, não se trata de um episódio isolado. Em fevereiro deste ano, duas casas foram incendiadas na capital roraimense de Boa Vista, provocando queimaduras graves em cinco venezuelanos. No mês seguinte, moradores de Mucajaí, no sul de Roraima (RR), expulsaram cerca de cinquenta venezuelanosde um prédio abandonado e atearam fogo em seus objetos. No dia 31 de agosto, a violência tornou-se fatal: um venezuelano foi assassinado com tiros e facadas em Rorainópolis (RR).
A tentativa de imposição de soluções como a instalação de barreiras sanitárias, exigência de passaporte para o acesso a serviços públicos e o fechamento de 2 mil quilômetros de fronteira com a Venezuela alimentam um discurso xenofóbico e incitam a violência contra os recém-chegados. Além de discriminatórias, tais medidas têm custo elevado – tanto humano quanto financeiro – e ineficácia comprovada.
Longe de impedir a migração, políticas restritivas tendem a resultar na proliferação de coiotes – pessoas que cobram para garantir a o cruzamento de fronteiras de maneira perigosa e clandestina – e no aumento do tráfico de pessoas, inclusive para fins de exploração sexual. Também contrariam acordos internacionais assinados pelo Brasil e a recém-sancionada Lei de Migração (Lei 13.445/2017), que retirou a questão migratória da esfera da segurança nacional e passou a enxergar o migrante como um sujeito de direitos.
Com população quatro vezes inferior à do Brasil e um PIB seis vezes menor, a Colômbia tornou-se lar para mais de 870 mil venezuelanos. Desde janeiro, mais de meio milhão de venezuelanos entraram no Equador, por onde parte significativa deles pretende seguir viagem até o Peru. Apesar desses dois países terem passado a exigir passaporte para que venezuelanos acessem seus territórios – medida já suspensa pela justiça no Equador – nenhum deles optou pelo fechamento da fronteira e seguem abertos a receber solicitações de refúgio.
Para que a política de portas abertas seja mantida, é fundamental que as responsabilidades de acolhimento não recaiam exclusivamente sobre os países vizinhos. Embora alguns passos tenham sido dado nesta direção, como a alocação de recursos pelos Estados Unidos (USS 31 milhões) e União Europeia (35,1 milhões de euros) em apoio a esforços de assistência humanitária na Venezuela e em países vizinhos, muito ainda precisa ser feito para gerenciar uma das maiores crises de deslocamento forçado da história na América Latina.
Nesse sentido, é bem-vinda a proposta das Nações Unidas de criar uma equipecomposta de especialistas de sua agência para refugiados (Acnur) e da OIM com o objetivo de garantir uma resposta regional coordenada à crise migratória. Uma maior cooperação entre governos latino-americanos pode trazer benefícios importantes, como a garantia de regularização migratória mais agilizada e o aumento da previsibilidade com relação a novos fluxos migratórios, o que facilitaria atendimentos emergenciais e o desenvolvimento de medidas mais estruturadas de recepção e integração local, sobretudo em áreas de fronteira.
Contudo, para ser bem sucedida, a iniciativa não deve contar apenas com a solidariedade regional que se fragiliza à medida que o número de venezuelanos em busca de refúgio aumenta. Com apoio da ONU, a comunidade internacional, incluindo agências de fomento ao desenvolvimento, organizações internacionais e humanitárias e o setor privado, deve agir coletivamente em resposta à crise migratória.
O acolhimento de refugiados é uma obrigação legal. Somente através de um compartilhamento de responsabilidades equitativo será possível aliviar o sofrimento dos venezuelanos que são forçados a deixar os seus lares em busca de alimento, medicamentos e proteção.
*Adriana Erthal Abdenur é coordenadora da Divisão de Paz e Segurança Internacional do Instituto Igarapé, onde Maiara Folly e Lycia Brasil são pesquisadoras.