A banalidade do mal contamina os EUA de Trump, diz especialista

Política de tolerância zero contra imigrantes não é apenas imoral, mas também ilegal, escreve Robert Muggah

21/06/2018
Robert Muggah
Publicado originalmente na Folha de S.Paulo
Minutos depois de cruzarem a fronteira, eles são arrancados dos braços das mães. Alguns, ainda amamentados, são levadas para abrigos temporários. Os pais são conduzidos para centros de detenção, onde permanecem durante semanas. Há imagens de crianças pequenas e adolescentes de várias idades trancados em gaiolas.

Depois de semanas em uma viagem traiçoeira que começa na América Central ou no México, essas pessoas são tratadas como cães sem dono quando chegam. O dano psicológico, o estresse e o trauma emocionalque sofrem são incalculáveis. Nem os bebês chorando são consolados: a política governamental determina que não podem ser tocados.

Bem-vindo aos Estados Unidos de Donald Trump.

Autoridades publicaram esta imagem com imigrantes em uma espécie de jaula; jornalistas disseram ter visto crianças em condições semelhantes – ALFÂNDEGA E PROTEÇÃO DE FRONTEIRAS DOS EUA

Desde que o secretário de Justiça americano, Jeff Sessions, anunciou a política de imigração de tolerância zero, dois meses atrás, cerca de 2.300 crianças foram separadas de seus pais. Há quase 10.800 menores desacompanhados sob custódia dos EUA. Ninguém sabe ao certo exatamente quantos eles são.

Sessions afirma que as separações são justificadas pela Bíblia e que impedirão a imigração ilegal. Mas não tem evidências que sustentem nenhuma das duas afirmações. A posição do secretário de Justiça é dita minoritária. Diante dos 66% dos americanos que consideraram a medida cruel e desumana, Trump mudou de posição. Cedendo à pressão de seu próprio partido, assim como da mulher e da filha, assinou uma ordem executiva que vai permitir que as famílias detidas permaneçam juntas temporariamente. Não está claro quando a medida entra em vigor.

A maioria desses recém-chegados está na verdade fugindo da terrível violência no México, assim como em El Salvador, Guatemala e Honduras, quatro dos países mais violentos do mundo. Foram 64 mil mexicanos a solicitar refúgio em 2017. Outras 130 mil pessoas dos três países da América Central fizeram o mesmo em 2017, um aumento de 1.500% em relação a 2011. Os que são incapazes de fugir para o norte se deslocam internamente. No México, já são 345 mil.

Para piorar, os EUA aumentaram as deportações de cidadãos desses países na última década. Só em 2017, cerca de 75 mil foram deportados e outros 250 mil estão sob risco com o Temporary Protected Status (TPS).

O TPS fornecia status legal temporário a migrantes em sua maioria vindos de El Salvador, Haiti e Honduras, países arrasados por conflitos ou desastres naturais. No final de 2017, o governo Trump acabou com essa condição para cidadãos do Sudão, Nicarágua e Haiti. Em janeiro de 2018, fez o mesmo para El Salvador, de onde mais da metade dos detentores de TPS vêm. Em abril, foi a vez do Nepal e Honduras. O governo alegou que esses países já haviam se recuperado e deu a essas pessoas entre 12 e 18 meses para planejar sua volta.

A banalidade do mal está se expandindo em estados de fronteira, como TexasNovo México e Arizona. Ao implementar a política de tolerância zero, patrulheiros e assistentes sociais que cumprem jornadas de trabalho exaustivas –“nem pervertidos nem sádicos”– estão agindo de maneira assustadoramente normal.

Como disse Hannah Arendt sobre o tenente-coronel nazista Adolph Eichmann, é a “incapacidade de pensar do ponto de vista de outra pessoa” que está levando funcionários públicos a fechar os olhos para injustiças monstruosas. Seus corações não estão cheios de maldade, mas seus atos são indizivelmente cruéis. Enquanto a maioria dos americanos se opõe à política de tolerância zero à imigração, uma minoria considerável de republicanos acredita que é a coisa certa a se fazer.

O que os defensores dessa política parecem incapazes de fazer é considerar os impactos da nova política de tolerância zero na perspectiva dos refugiados e migrantes. Pouco depois de pisarem no solo americano, bebês, crianças pequenas e adolescentes são tirados dos pais à força, às vezes de forma traiçoeira e horrorosa. Estão surgindo histórias de crianças sendo levadas por funcionários da alfândega dos EUA “para um banho”. Ao questionar sobre a ausência das crianças, os pais são simplesmente comunicados que não vão ver seus filhos novamente. Testemunhas afirmaram que os guardas da fronteira não só negam informações sobre o paradeiro dessas crianças, mas também dizem aos pais que eles serão processados ​​e que não são bem-vindos. Praticamente todos os que chegam são depositados em centros de detenção de adultos para “remoção rápida”. A maioria é deportada.

Têm surgido relatos de crianças que choram de forma inconsolável, sem saber explicar de onde vieram e o que está acontecendo. Até que a medida entre em vigor, não há qualquer procedimento judicial que preveja que os pais sejam postos em centros de detenção alternativos para se juntar novamente aos filhos. Como se tudo isso não bastasse, os pais detidos estão sendo mantidos presos de seis a oito semanas, às vezes muito mais. Exige-se que permaneçam atrás das grades enquanto esperam ser “premiados” com uma entrevista para a verificação de “medo crível” para a avaliação de concessão de refúgio.

Tendo em vista o endurecimento da política de imigração dos Estados Unidos e o número limitado de juízes em cidades de fronteira, uma minoria irrisória chega a ter oportunidade de explicar seu caso. É raro que um solicitante tenha acesso a advogado pago. Os que contestam a deportação provavelmente esperarão outros seis meses, ou mais, por uma audiência –na cadeia.

Há também problemas generalizados para voltar a reunir pais e filhos separados graças ao modo caótico como a política de tolerância zero está sendo implementada e imposta. O Departamento de Segurança Interna e funcionários que trabalham com Alfândega e Proteção de Fronteira separam filhos dos pais, mas só cuidam por alguns dias. O apoio de longo prazo é jurisdição do Departamento de Saúde, do Escritório de Refugiados e Reassentamento e do Departamento de Serviços para Crianças Desacompanhadas. É possível que muitas crianças se percam nos caminhos dessa burocracia, o que atrasa o reencontro com a família.

Não nos enganemos: a estratégia de imigração com tolerância zero não é apenas imoral; é também ilegal. Ao encarcerar todos os que chegam ao país, os Estados Unidos ignoram a jurisprudência internacional e nacional, inclusive a Convenção das Nações Unidas sobre o Estatuto dos Refugiados. O uso da justiça criminal para intimidar pessoas que pedem refúgio viola o Artigo 31 e outros pontos da convenção.

Como era previsível, o alto-comissário da ONU para os direitos humanos, Zeid Ra’ad al Hussein, descreveu a política de tolerância zero como inadmissível. Embora entidades de defesa dos direitos humanos e grupos religiosos nos Estados Unidos e em todo o mundo estejam se mobilizando e se manifestando, os danos serão duradouros.

A política criminosa pode até ter sido freada temporariamente. Mas continua sendo uma lembrança da banalidade do mal que se manifesta quando pessoas comuns seguem ordens sem pensar e sem questionar suas ações.

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