PRECISAMOS FALAR SOBRE MACONHA

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December, 2015

 

Alguém já está de saco cheio de falar sobre maconha? Que pena, porque a gente não vai parar não. Desta vez, com a ajuda dos pesquisadores do Instituto Igarapé, quero desenrolar uma confusão generalizada acerca das políticas de legalização e criminalização das drogas. Vocês sabem qual é a diferença? Eu também tinha essas definições bem nebulosas na minha cabeça. Vamos desenrolar?

-> Sobre a Descriminalização:

Primeiro, não significa que as drogas sejam liberadas ou que as pessoas possam usá-las impunemente. A descriminalização simplesmente retira o caráter criminoso do consumo das drogas mas não tira a ilegalidade da atividade. Ou seja, a lei define uma quantia que diferencia o usuário do traficante e a partir disso o primeiro não vai ser penalizado e o segundo vai. A política baseada na descriminalização estabelece que a droga continua sendo ilegal, proibida, mas o Estado vai lidar de maneira diferente com o usuário. Esse pensamento está de acordo com a (óbvia) lógica de que dependência e uso de drogas são questões de saúde, não de polícia.

-> Sobre a Legalização:

Legalizar, aí sim, é tornar legal a produção, a comercialização e o uso das drogas. Neste cenário, o governo iria taxar, cobrar impostos e lidar com a “indústria canábica” (acho que eu inventei esse termo, rs) do mesmo modo que lida com o álcool, o tabaco e muitos outros produtos. Sendo assim, toda a cadeia de atividades ligada às drogas seria regulada e fiscalizada pelo Estado – o que certamente não acontece hoje, na proibição reina o mercado ilegal.

*Regulação:

Ambas as políticas citadas acima prevêem modelos de regulação da atividade com o intuito de minar o poder e o lucro das organizações criminosas. A ideia é que, uma vez que produção e distribuição estejam devidamente reguladas legislativamente, haverá fiscalização e controle sobre toda a cadeia. Desse modo, poderemos efetivamente retardar o uso de drogas por jovens, criar um controle de qualidade e regras claras sobre a quantidade, potência, substâncias permitidas, locais de uso, idade mínima, etc. Sem uma legislação eficaz sobre qualquer assunto, não existe possibilidade de controle.

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Com os exemplos de experiências internacionais e as evidências científicas as quais temos acesso hoje em dia, já pudemos perceber que não faz sentido algum manter o consumo e o porte de drogas para uso pessoal na esfera criminal. Já está mais do que comprovado que a criminalização afasta os dependentes do lugar onde deveriam estar, o sistema de saúde. Além disso, a proibição torna impossível uma prevenção eficaz e uma política de conscientização, marginaliza os jovens e ainda prende de maneira seletiva os mais pobres e as minorias, alimenta a corrupção, a extorsão e o ciclo da violência. A política de descriminalização é o primeiro passo e está mais do que na hora do Brasil entrar com o pé direito. Pra quem diz que isso aumentaria o consumo, já temos diversos exemplos mundo afora de que isso não se prova. Quem fuma não tem deixado de fumar pelo fato da maconha ser proibida, mas tem que fazer na ilegalidade, sujeito à violência e a tóxicos advindos da não-fiscalização que, por sua vez, vêm da proibição.

Sigo com um comentário hiper pertinente da Illona Szabó, Coordenadora do Programa de Políticas de Drogas do Instituto Igarapé: “O grande paradoxo é que a proibição, na verdade, é muito mais permissiva do que a regulação. Hoje, quem quiser comprar drogas, o faz sem nenhum controle, restrição de idade ou controle de qualidade. A descriminalização do porte para o uso da maconha transfere a questão do consumo para a esfera da saúde pública. Só assim, poderemos desenvolver uma política de drogas que funcione através da prevenção, redução de danos e tratamento, além de uma polícia melhor preparada para lidar com o problema, desde a abordagem até a produção de informação e integração de bases de dados que são fundamentais para o trabalho de inteligência das polícias”.

A política de drogas tem sido alvo de discussão e revisão no mundo todo. Lembram que na última matéria eu contei que o auge da proibição se deu com a resolução da ONU de 1961 que criava a Convenção Única Sobre Entorpecentes? Pois então, ano passado eles admitiram a ineficiência dessa lógica e, como todo bom ser humano, evoluíram: “A descriminalização do consumo de drogas pode ser uma forma eficaz de ‘descongestionar’ as prisões, redistribuir recursos para atribuí-los ao tratamento e facilitar a reabilitação”, afirma um relatório de 22 páginas do Escritório das Nações Unidas contra a Droga e o Crime. A UNODC assegura no relatório que “os tratados encorajam o recurso de alternativas à prisão” e ressalta que se deve considerar os consumidores de entorpecentes como “pacientes em tratamento” e não como “delinquentes”. É o que eu digo: errar é humano, mas insistir no erro é estupidez. Fico muito feliz de ver cada vez mais lideranças internacionais admitindo, tomando responsabilidades e propondo mudanças; só gostaria de ver nossas lideranças nacionais fazendo um pouquinho mais isso…

Porque aqui no Brasil a política de drogas é quase uma piada, o Sistema Nacional de Políticas Públicas Sobre Drogas (Sisnad) sob a Lei nº 11.343 começa afirmando que um dos seus princípios se baseia no “respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana, especialmente quanto à sua autonomia e liberdade”. Ahn? Pra mim, autonomia e liberdade significam que eu posso escolher o que tô afim de fazer ou não – lógico que, desde que essa minha escolha não gere ônus ou ameace a liberdade de outro cidadão, não é? E no caso da maconha, o que causa (muitos) malefícios à sociedade não é o uso, mas a política por trás dela, que empodera o tráfico e potencializa a violência. Maria Lúcia Karam, da entidade Law Enforcement Against Prohibition (LEAP) afirma que a criminalização do porte de drogas fere a Constituição Federal. Ela argumenta que a prática oferece perigo apenas à saúde do usuário, dizendo respeito às suas opções pessoais, à sua intimidade e liberdade:

– “Em uma democracia, o Estado não está autorizado a intervir em condutas dessa natureza. O Estado não pode tolher a liberdade dos indivíduos sob o pretexto de protegê-los. Enquanto não atinja concreta, direta e imediatamente um direito alheio, o indivíduo é e deve ser livre para pensar, dizer e fazer o que bem quiser” — afirmou.

 Mas calma que nossa lei não para por aí, olha o que está instituído sobre o usuário:

“Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:

I – advertência sobre os efeitos das drogas;

II – prestação de serviços à comunidade;

III – medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.”

Ok. Tudo certo, né? Até parece uma configuração de descriminalização, tendo em vista que o usuário não sofre punições criminais e sim medidas sócio-educativas. Sóque-claro-quenão. Logo depois a perversidade dá as caras – e é por isso que a gente sempre tem que ler as coisas até o fim! A lei não define a quantidade que distingue o usuário do traficante, e olha como deve ser feita essa separação segundo o Art. 28, parágrafo 2o:

“Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.”

Wtf?! Já leram algo mais subjetivo que isso? Não é uma lei? Cadê a objetividade? Uma (não) definição dessas abre alas pra polícia (que deveria ser a instituição guardiã das liberdades individuais e do Estado de direito) agir de maneira discriminatória e preconceituosa – afinal, o que é uma “conduta suspeita” e o que configuram essas “circunstâncias sociais e pessoais”? Pelo visto, são eles quem vão definir. E olha o que acontece:

Aquele que “importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:

Pena – reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa”.

Tão sertinhos, né Mujica?

Além dos avanços recentes nas políticas do Uruguai e de vários estados americanos, a discussão sobre a descriminalização da maconha já acontece em muitos países da nossa região como México, Guatemala, Equador, Argentina e Colômbia. O Brasil está (como quase sempre), bastante atrasado neste debate, sendo que, atualmente, participa de toda a cadeia de produção das drogas: cultiva maconha, é rota importante do tráfico internacional e tem um mercado consumidor interno que cresce cada vez mais. Então repito, precisamos, sim, falar sobre maconha! Errar é humano, mas insistir no erro é estupidez. Vamos evoluir?

Está muito claro que precisamos mudar a maneira pela qual temos lidado com as drogas, né? Eu odeio quem fica só reclamando, apontando tudo o que é coisa ruim, negativizando o debate sem qualquer proposta construtiva. Por isso apresento a vocês os quatro pontos que o Instituto Igarapé e a Rede Pense Livre propõem como primeiros passos na direção de uma mudança gradual da nossa política:

1. Retirar o consumo de drogas da esfera criminal, ou seja, descriminalizar porte para o uso pessoal de todas as drogas, e investir em prevenção e em uma abordagem de saúde pública para usuários problemáticos. A descriminalização já vem sendo discutida pelo Congresso Nacional no âmbito da reforma do Código Penal e é o primeiro passo para mudar a política de drogas. A criminalização do usuário resulta na sobrecarga do sistema prisional e na falta de recursos para o atendimento médico e social para dependentes químicos. A descriminalização do uso de drogas deve ser amparada por ampla oferta de programas de prevenção, redução de danos e tratamento pelo sistema público de saúde.

2. Regular o uso medicinal e o autocultivo da cannabis para consumo pessoal. A cannabis é a droga ilícita mais consumida no Brasil e o autocultivo é uma forma prática de desvincular o usuário do crime organizado. Do ponto de vista científico, a cannabis causa menos danos do que drogas lícitas como o álcool e o tabaco. Além disso, suas propriedades medicinais foram comprovadas e já beneficiam doentes em diversos países.

3. Investir em programas para a juventude em risco, incluindo a reintegração socioeconômica de adolescentes e jovens do sistema socioeducativo e prisional condenados por envolvimento no comércio de drogas ilícitas, e oferecer penas alternativas para réus primários não violentos. Esta medida é necessária para criar condições de resgatar uma grande parte da juventude marginalizada brasileira e deve ser acompanhada de um pacto social que inclua programas de educação e assistência, além de oportunidades para que jovens em situação vulnerável ingressem no mercado de trabalho.

4) Viabilizar pesquisas médicas e científicas com todas as drogas ilegais para desenvolver programas adequados de redução de danos e tratamento. As barreiras às pesquisas com substâncias ilícitas são um entrave ao desenvolvimento de bons programas de saúde pública e mental.

Maria Julia Wotzik, NOO

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