Cuba tem a oportunidade de acertar onde outras nações erraram na questão de drogas

O Globo

Dezembro, 2017

Relatório mostra as possibilidades e riscos que o país enfrenta na área à medida que abre sua economia e fronteiras para o resto do mundo

RIO – Cuba tem a oportunidade de acertar onde outros países erraram no combate às drogas nas últimas décadas, mas para isso o regime precisa rever sua tradicional posição de “linha dura” ao lidar com a questão. O alerta é de um relatório sobre o futuro da política de drogas no país lançado nesta terça-feira pelo Instituto Igarapé, ONG brasileira dedicada ao estudo de temas ligados à segurança pública, justiça e desenvolvimento.

De autoria da pesquisadora Isabella Bellezza-Smull, o documento, intitulado “Will Cuba update its drug policy for the twenty first century?” (“Irá Cuba atualizar sua política de drogas para o século XXI?”, em tradução livre), traça um histórico das posições do país na abordagem do assunto tanto no âmbito doméstico quanto no internacional e relaciona os desafios, riscos e oportunidades que ele tem na questão à medida que abre sua economia e a população ganha mais acesso a estas substâncias. Confira a seguir entrevista exclusiva concedida por Isabella ao GLOBO para discutir seu trabalho:

Podemos dizer que Cuba foi poupada da guerra às drogas e seus efeitos nefastos que vemos em diversos países ao redor do mundo? O quão confiáveis são as afirmações do governo cubano de que o país não tem um problema de drogas?

De modo geral sim, podemos dizer que Cuba foi poupada da guerra às drogas que afeta muitos países da região. Pelas métricas disponíveis, vemos que Cuba tem uma das menores taxas de homicídios da região, assim como números muito baixos relativos ao consumo, produção e tráfico de drogas. Esses indicadores têm sido comprovados seguidamente pelo Departamento de Estado dos EUA ao longo dos anos, e o governo americano não tem razões porque reconhecer e elogiar Cuba por nada, o que ajuda a corroborar o fato de que estes números são verdadeiros.

O que fez de Cuba um caso tão único na região, quiçá no mundo? Quais foram os fatores que de certa forma “protegeram” o país da praga das drogas e como a progressiva abertura política e econômica de Cuba pode fazer com que elas se tornem um problema?

Cuba tem um conceito nacional muito único. O país tem sido muito isolado em termos de comércio internacional, o que diminui a entrada de drogas e o acesso a elas pelas pessoas. Além disso, a renda disponível dos cubanos é historicamente muito baixa, em grande parte pelo embargo econômico dos EUA, mas também pela virtual inexistência de um setor privado. Mas estas condições estão mudando gradativamente. Cuba tem se aberto para o mundo, lenta, mas certamente, desde o colapso da União Soviética nos anos 1990. E vemos que a cada movimento de abertura o governo cubano tem se mostrado cada vez mais preocupado com o problema das drogas. A questão das drogas é um problema relativamente pequeno em Cuba, principalmente na comparação com outros países da região, mas é importante vermos como a situação vai se encaminhar.

Dadas esta situação atual de Cuba com relação às drogas e as recentes experiências de abordagens mais “progressistas” na questão, para além dos simples proibicionismo e repressão, o país poderia então se tornar como que um “laboratório” do que poderia ter acontecido, ou ainda pode acontecer, em outros países se tivessem adotado ou se adotarem políticas como descriminalização, legalização ou regulação do mercado de drogas e de redução de danos?

Certamente Cuba tem a oportunidade de “acertar” na sua política de drogas com base nas experiências anteriores e fazer isso progressivamente pelo fato de as drogas não serem um problema no país devido à sua situação nacional única. Assim, a questão é como o país vai lidar com os esperados crescente consumo, produção e tráfico de drogas. Como é comum, o governo cubano tem adotado publicamente uma abordagem de “linha dura” com relação às drogas. A Comissão Nacional de Drogas de Cuba em junho deste ano corroborou esta abordagem, mas temos visto um debate cada vez maior sobre o assunto no âmbito do setor de saúde pública do país. E isso é muito animador, pois eles estão questionando o tradicional modelo de abstinência e “diga não às drogas”. Eles estão percebendo que existem pessoas que não vão ou não conseguem parar de usar drogas e que a interrupção do uso de drogas não deveria ser uma pré-condição para tratar ou ajudar essas pessoas. Isso é o que se chama de redução de danos, algo que os ativistas na área de política de drogas têm defendido e se demonstrado que funciona.

Esta reiterada visão mais “conservadora” do governo cubano com relação às drogas não poderia no entanto, levar o país a perder esta oportunidade de lidar com o problema de uma forma mais eficaz?

Sim, isso é um risco e é algo que precisamos ver. Mas realmente espero que a partir de uma visão de saúde pública mesmo Cuba adotará uma política mais humanista com relação às drogas. Cuba tem um histórico de cuidar bem de seu povo em termos de saúde e segurança, então a possibilidade de incorporar políticas de redução de danos no sistema de saúde é grande. Cuba tem a oportunidade de enfrentar o problema das drogas desde seu início, de certa forma, como uma questão mais de saúde pública e menos de polícia, de repressão e encarceramento.

Embora alguns fatores de “proteção” da população cubana contra o problema das drogas nas últimas décadas estejam mudando, como a renda disponível e o acesso a substâncias, outros provavelmente continuarão os mesmos, como o alto nível de educação da população e um sólido sistema de saúde pública. Isso também pode ajudar a “guiar” o país rumo a políticas mais progressistas e eficientes com relação às drogas?

Definitivamente, mas mais uma vez será uma questão do que o governo cubano vai querer fazer. Nas campanhas de educação e prevenção o discurso continua baseado mais em “diga não” e na abstinência do que em informações sobre os efeitos e impactos do uso de certas drogas. Mas aí teremos uma nova geração de cubanos experimentando estas drogas e vendo que elas podem ser usadas de forma recreacional, pois nem todo consumo de drogas é problemático, e teremos uma discrepância entre o que o Ministério da Educação está dizendo e o que os cubanos estão experimentando, o que mina o discurso de prevenção pela abstinência. Assim, o governo de Cuba terá que pensar bem em como educar uma nova geração de cubanos sobre o consumo de drogas.

E como o regime pode fazer isso ao mesmo tempo que mantém um discurso proibicionista e de linha dura no combate às drogas?

Bem, pode ser que o governo se recuse a debater novas abordagens e Comissão Nacional de Drogas não tenha alternativas a não ser manter as políticas repressivas. Creio que isso seria uma decisão muito infeliz.

Podemos então ver um tipo de negação, um discurso de que drogas e seu consumo são coisas contrarrevolucionárias, um problema de sociedades capitalistas burguesas?

Sim, pode ser que haja uma continuidade da ideia de que em Cuba não há drogas, o que também não é totalmente verdade. Mas isso é algo que teremos que esperar para ver também. Se o governo for inteligente vai adotar novas abordagens testadas em outros lugares, como mudar os padrões de uso de drogas, de não usar o encarceramento como principal arma de combate ao uso e tráfico etc.

Neste sentido, como é a atitude do governo cubano com o abuso de drogas lícitas, como o álcool, e como isso pode ser um indicativo das políticas que adotarão para lidar com outras drogas ilícitas à medida que os cubanos tenham mais acesso a elas, especialmente do ponto de vista da prevenção e redução de danos?

As políticas cubanas para lidar com o tabagismo e o alcoolismo também são orientadas por uma visão de abstinência. Mas, mais uma vez, ainda é cedo para dizer se o governo cubano manterá essa mesma atitude com relação às demais drogas ou não. Precisamos ver como vão seguir as discussões sobre o assunto na área de saúde pública de Cuba. De modo geral, precisamos esperar para ver se Cuba agarrará a oportunidade de ter políticas diferentes e mais eficientes para lidar com o problema das drogas desde seu início, praticamente, ou se incorrerá nos mesmos erros que vimos em muitos países nos últimos 40, 50 anos, com proibicionismo e repressão que vemos que não estão dando resultados. Cuba tem a chance de implementar políticas que demonstradamente funcionam e não usar outras que já sabemos que só pioram o problema. Esse é o debate.

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