Cidade precisa de poder para enfrentar as questões globais, diz especialista

Folha de S. Paulo

Novembro, 2017

 

O especialista em cidades Robert Muggah, 43, diretor do Instituto Igarapé e da Fundação canadense SecDev, apresentou na TED Global 2017, em Nova York, uma conferência  sobre as estratégias que os centros urbanos podem adotar com vistas a enfrentar problemas globais, como a imigração, o terrorismo e a mudança climática.

Muggah, como tantos outros envolvidos com projetos de cidades inteligentes, acredita que é hora de parar de pensar apenas em termos de países: “Pense no mundo como uma composição de cidades”, diz. Afinal, embora elas ocupem apenas 3% da superfície do planeta, “consomem 75% dos recursos e são responsáveis por mais de 80% das emissões de gases de efeito estufa”.

Na entrevista que se segue, respondida por e-mail, Muggah fala sobre os desafios de dotar as cidades de mais poder de decisão e comenta as especificidades do Brasil, país que passou por um processo acelerado e intenso de urbanização, com sequelas que clamam por soluções.

 

FOLHA – Como fazer com que as cidades assumam de maneira mais ampla suas responsabilidades?  Não seria necessário conquistar mais autonomia em relação a entes regionais ou federais?

ROBERT – Muitas cidades globais já rivalizam com os maiores Estados-nação em termos de poder e influência. Cidades como Nova York, São Paulo, Londres, Nova Deli, Xangai e Tóquio têm orçamentos, forças policiais e resultados econômicos que são maiores do que a maioria dos países. Grandes e médias cidades também estão entrando em um número crescente de redes interurbanas para compartilhar ideias e experiências.

No entanto, enquanto as cidades estão se tornando mais economicamente habilitadas, elas ainda estão operando abaixo de seu peso político. Parte do problema é que os governos nacionais muitas vezes impedem as cidades de se envolverem em ações coletivas transfronteiriças ou domésticas.

Ou seja, a subsidiariedade constitucional das cidades em relação às autoridades nacionais restringe o seu poder político. No Brasil e nos EUA, por exemplo, a separação vertical de poderes não promove o poder da cidade, o limita. As cidades precisarão fortalecer suas municipalidades para garantir os mandatos que lhes darão mais autoridade e capacidade de ação.

A boa notícia é que as cidades não precisam pedir permissão para exercer sua soberania urbana. Quando os Estados-nação não cumprem com suas responsabilidades soberanas –quando se trata de mudanças climáticas, migração e até segurança–as cidades têm o direito e a obrigação de atuar. E é precisamente por causa de ameaças como as mudanças climáticas, crises de refugiados e o terrorismo, que as cidades estão agindo. A União Europeia tomou medidas dramáticas para oferecer maior autonomia às cidades. As Nações Unidas, através do Habitat III e dos novos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, também destacaram esta questão.

É importante que a cidade e as autoridades nacionais tenham um diálogo para renegociar suas relações. Em uma era urbana, isso é uma necessidade, não uma opção. Quando os Estados-nação foram formados pela primeira vez em 1600, menos de 1% das pessoas moravam nas cidades: hoje são 54%. Os Estados nacionais precisam começar a reconhecer a autoridade da cidade. Afinal, os governos municipais são a linha de frente para os cidadãos, inclusive para as crises. A grande autonomia fiscal –incluindo o direito de tributar, emitir dívidas, obter uma notação de crédito e aumentar o investimento–é fundamental para o sucesso da cidade. As cidades precisam de recursos, jurisdição e vontade política para agir.

 

FOLHA – Como a tecnologia favorece a participação das cidades em temas de impacto global?

ROBERT – As cidades são o núcleo da inovação tecnológica, gerando mais de 80% das patentes mundiais. As tecnologias implantadas nas cidades, naturalmente, gerarão efeitos positivos e negativos. Muito se resume a como essas tecnologias são implantadas e usadas. Com certeza, governos, empresas e estudiosos estão alimentando a ideia de tornar as cidades “mais inteligentes” através da tecnologia. O mercado de cidades inteligentes é estimado em cerca de US$ 758 bilhões na América Latina até 2020. Não há dúvida de que as novas tecnologias gerarão ganhos de eficiência. Mas também existem riscos em termos de se deixar seduzir pela tecnologia, em termos de desperdício de investimentos e de criação de novas vulnerabilidades.

 

FOLHA – Quais são as visões que predominam no debate sobre cidades inteligentes?

ROBERT – De um lado, os adeptos da cidade inteligente veem as cidades como “hubs” futuristas, nos quais todas as funções principais são automatizadas com infra-estrutura, serviços e cidadãos são hiperconectados através de fibra óptica, redes sem fio e internet das coisas. O planejamento e a organização da cidade inteligente são centralizados e são de cima para baixo, muitas vezes coordenados por parcerias público-privadas com as principais empresas de tecnologia. Os exemplos incluem Singapura, Songdo (Coréia do Sul), Masdar (Emirados Árabes Unidos), ou a recentemente proposta cidade de US$ 500 bilhões, chamada Neom, na Arábia Saudita.

Do outro lado do debate existe uma abordagem mais humanista que vê as cidades inteligentes como uma possibilidade de crescimento sustentável em múltiplos setores. Nesta visão, as cidades inteligentes emergem a partir de uma abordagem abrangente que envolve salvaguardas ambientais, transporte público de alta integração, uso eficiente de energia, fortalecimento da prestação de serviços, políticas de dados abertas e maior envolvimento dos cidadãos. Existem muitos exemplos desses tipos de abordagens, como Amsterdam, na Holanda, ou Seattle, nos EUA.

O que está absolutamente claro é que a tecnologia deve ser parte da solução quando se trata de urbanização. As cidades ocupam apenas 3% da área de superfície do mundo, mas usam mais de 75% dos suprimentos de energia globais e geram 80% de todas as emissões de gases de efeito estufa. Grande parte disso vem da poluição emitida pelos carros –daí a importância do transporte público integrado e do investimento em veículos automáticos. As cidades também estão mais verdes, investindo em energia renovável: mais de 8 mil delas já usam energia solar e 300 são completamente autônomas em termos energéticos.

 

FOLHA-  Em relação às cidades brasileiras, que problemas e bons exemplos você citaria?

ROBERT – O Brasil é um dos países mais urbanizados da Terra. O ritmo da urbanização é de tirar o fôlego: mais de 85% da população é urbana, em comparação com cerca de 50% na década de 1950. Hoje, existem 15 cidades com mais de 1 milhão de pessoas; 210 cidades com população entre 100 mil e 1 milhão; e 1.410 cidades com 10 mil a 100 mil habitantes. De muitas maneiras, o Brasil se urbanizou antes de se industrializar.

Como resultado, o país experimentou um padrão informal e não regulamentado de crescimento das cidades. Existem núcleos urbanos altamente desenvolvidos em centros como Brasília, São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre, mas também vastos assentamentos e favelas. Houve uma inovação intensa nas cidades brasileiras, que é o sistema Bus Rapid Transit (BRT), desenvolvido pela primeira vez em Curitiba – sob a alcunha de Rede Integrada de Transporte (RIT) –que ganhou centros de comando digitalmente integrados desenvolvidos para cidades como o Rio de Janeiro.

No entanto, muitas cidades brasileiras também sofrem de fragilidade crítica. Tome o caso da criminalidade urbana. O Brasil é o lar de 25 das 50 cidades que mais matam, do mundo. Além disso, 25% das cidades brasileiras sofrem de falta de água crônica –e isso num país com 25% do abastecimento global de água doce.

 

FOLHA – Regiões metropolitanas com emissões mais pesadas de gases que provocam o efeito estufa, como São Paulo, Rio ou Belo Horizonte, parecem atrasadas em relação a outros centros internacionais. Que oportunidades de melhoria essas cidades oferecem?

ROBERT – O Brasil tem uma reputação de ar limpo, mas isso está mudando. Cerca de 40% dos brasileiros respiram um ar com níveis de poluição duas vezes acima do padrão recomendado pela OMS. E o Brasil tem poluído cada vez mais suas cidades.

A taxa de propriedade de automóveis aumentou em mais de 120% nas últimas duas décadas e com isso as emissões cresceram nas principais cidades. Cerca de metade das 50 mil mortes anuais relacionadas à poluição ocorrem nas cidades. Foi introduzida uma política de mobilidade urbana, mas isso contribuirá infimamente na redução das emissões globais.

A estratégia nacional de mitigação do clima do Brasil tem se concentrado em reduzir as emissões relativas ao desmatamento e em aumentar a produção de energia renovável. Mas o Brasil poderia fazer muito mais quando se pensa, por exemplo, em edifícios ecológicos, transporte integrado e eficiência na questão dos resíduos.

Parte do desafio é que as ferramentas políticas disponíveis para fazer isso, como comentei anteriormente, ainda são em grande parte nacionais. As cidades terão que começar a se adaptar às novas realidades climáticas se quiserem permanecer competitivas.

Nas cidades brasileiras existem muitas oportunidades nos setores de transporte público e comercial, na melhoria da eficiência dos combustíveis, na gestão de esgotos e na eficiência energética de edifícios e empresas –que representam 50% de todo o uso de eletricidade a nível nacional.

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