Veja 8 propostas para intervenção federal no Rio não morrer na praia

Fevereiro, 2018

 

​O cerco a comunidades e a revista de presídios protagonizados pelas Forças Armadas nesta semana no Rio são ações paliativas que não criam legado para a segurança pública. A avaliação é de 13 especialistas ouvidos pela Folha.

​Críticos da intervenção do governo Michel Temer (MDB) por meio do Exército, eles apontam a falta de ações do governo federal para a crise nacional de segurança pública que antecedessem essa medida de exceção, adotada no improviso —o que indicaria motivação eleitoral e midiática.

Céticos quanto à gestão do general Braga Netto, eles elencaram propostas que estão na mesa do interventor e gerariam efeitos de longo prazo, contrariando a lógica das recentes ocupações militares na cidade: elas vão, o crime volta.

Para o coronel da reserva Robson Rodrigues Silva, fica a pergunta: “Será que agora será feito o que não foi feito antes e poderia ter evitado o quadro atual?”.

CONTROLE EXTERNO, PARTICIPAÇÃO CIDADÃ E TRANSPARÊNCIA

O uso das Forças Armadas na segurança pública se intensificou na história recente do país sem a criação de mecanismos de controle externo das ações, para que ocorram dentro da lei, e tenham sua eficácia verificada.

“Não existem critérios de aferição para medir a eficiência das ações das Forças Armadas na segurança pública”, aponta Jacqueline Muniz, pesquisadora da Universidade Federal Fluminense. “O que sabemos é que as Forças Armadas atuaram em quase todos os grandes eventos do Estado e em momentos entendidos como de crise, sem que isso tivesse gerado um resultado consistente no combate ao crime organizado.”

Especialistas apontam a importância da abertura de diálogo com a população e da participação pública no monitoramento das ações.

Para especialistas, o Exército ainda reluta ao controle civil. Na semana passada, o comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, disse ser necessário dar aos militares “garantia para agir sem o risco de surgir no futuro uma nova Comissão da Verdade”, que investigou os crimes da ditadura militar.

Ilona Szabó, do Instituto Igarapé e colunista da Folha, destaca também a importância da manutenção da divulgação transparente de dados da segurança pública no Estado.

CONTROLE DE ARMAS E MUNIÇÕES

O Exército é hoje o responsável legal pelo controle e fiscalização do comércio de armas e munições no Brasil. E boa parte das armas apreendidas no Rio de Janeiro são de origem nacional.

Especialistas apontam que, se fosse rastreada, boa parte da munição apreendida teria origem em desvios das forças de segurança, pública e privada, e das próprias Forças Armadas.

“As rotas são conhecidas e há muitos policiais envolvidos no tráfico de armas”, afirma Michel Misse, coordenador do Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Para ele, subir morro para apreender armas é “enxugar gelo”. “Se não há controle da chegada, você está apenas aquecendo o mercado de armas.”

Segundo ele, um trabalho de inteligência, que coordene Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal e Ministério Público Federal pode sufocar a entrada de armas no Rio e prender traficantes de armas.

“Armas importadas, de alta demanda pelas facções criminosas no Rio, chegam via porto do Rio e aeroportos. Estancar o fluxo, aproveitando a integração do Estado com a Federação, pode dar resultado”, diz Ivan Marques, diretor-executivo do Sou da Paz.

A criação de um banco de dados balístico nacional também ajudaria a monitorar a circulação das armas, além de ser um instrumento importante de investigação e perícia. Hoje, alguns Estados têm sistemas próprios que não se conversam.

APORTE DE RECURSOS FEDERAIS

Diante da crise fiscal no Estado, do atraso no pagamento de salários e gratificações de funcionários públicos, entre eles as forças de segurança e os agentes penitenciários, o incremento no aporte de recursos do governo federal deve ajudar, pontualmente, a sanar os atrasos e a financiar melhorias nas instituições.

“Sob intervenção, o general Braga Netto tem capacidade e poderes para solicitar recursos federais para o custeio das polícias e a manutenção da infraestrutura de segurança”, explica Arthur Trindade, professor da UnB e ex-secretário de Segurança do Distrito Federal. “Hoje, quase metade da frota da PM está encostada por falta de manutenção. Isso quer dizer que temos ‘meia PM´ nas ruas. Se uma já não é suficiente, que dirá meia.”

A intervenção oferece uma rara oportunidade de combate à corrupção policial por dois fatores: o interventor não está sujeito às mesmas pressões da política local que o governador, e, no caso de ameaça de greve da polícia, a segurança pública seria resguardada pelas Forças Armadas.

Além disso, a cooperação com bons setores das polícias e com órgãos como a Polícia Federal, a Receita Federal e o Coaf (Conselho de Controle da Atividade Financeira), pode auxiliar em investigações de rastreio de dinheiro ilícito.

COMBATE À CORRUPÇÃO POLICIAL

Segundo Renato de Lima, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, os batalhões e delegacias do Rio foram loteados por forças políticas, o que abre espaço para corrupção e desvios de função. “Hoje há batalhão ligado a milícia e delegado indicado por vereador. Portanto, é preciso profissionalizar a gestão, estabelecer indicadores de desempenho e criar critérios técnicos para ocupação de cargos de chefia. Isso já seria uma revolução”, diz.

Fortalecer as corregedorias também é fundamental. “Elas precisam de mais quadros, carreira própria e garantia de permanência”, aponta Ignácio Cano, da UERJ.

“Pelo tempo de exposição dos soldados ao crime e à própria polícia durante a intervenção, o risco maior é de corrupção das próprias Forças Armadas”, alerta o economista Rodrigo Soares, professor da Universidade de Columbia (EUA) e da FGV-SP. “Experiências do tipo na Colômbia e no México foram desastrosas neste sentido.”

  • 7,2% da população no Rio de Janeiro diz que já foi extorquida por policiais, segundo Pesquisa Nacional de Vitimização, de 2013; a média nacional é de 2,5%  

MODERNIZAÇÃO DAS FORÇAS POLICIAIS

A falta de boa formação e treinamento, de protocolos de atuação e de gestão, e do uso de tecnologia no combate ao crime tornam a atividade policial pouco eficiente. “Hoje, não há mecanismos de gestão nem de controle modernos. E as estruturas policiais foram deformadas para a criação de uma força de combate em que a polícia mata e morre para apreender poucas quantidades de droga”, avalia Rodrigues Silva, ex-chefe do Estado Maior no Rio.

Segundo Szabó, hoje cada batalhão trabalha de um jeito, e a intervenção poderia estabelecer parâmetros comuns de uso da força e de abordagem, como foi feito em missões de paz. “Precisaria apenas adaptar esses protocolos para um contexto de polícia, e não de defesa, que tem outros parâmetros no que diz respeito a privacidade e outros direitos.”

Só recentemente que o Rio de Janeiro instaurou um sistema de georreferenciamento de ocorrências, que cria manchas no mapa da cidade, orientando o planejamento da alocação de policiais nas ruas. “A implantação de tecnologia de monitoramento das equipes nos territórios seria a fase seguinte. É algo que precisa continuar”, diz a colunista da Folha.

A organização das polícias militares remonta aos tempos da ditadura militar, e subordina essas corporações ao Exército em vários aspectos por meio de um decreto de 1969. São as Forças Armadas que determinam quais armas, munições e equipamentos as PMs vão usar, além de sua estrutura.

O texto também descreve um órgão do Exército, a Inspetoria Geral das Polícias Militares, para controle e fiscalização das PMs. Questionado pela Folha, o Centro de Comunicação Social do Exército informou, por nota, que o Exército deixou de realizar essas inspeções depois da promulgação da Constituição de 1988. Hoje, ninguém faz esse trabalho.

“No Reino Unido, desde 1856 a Inspetoria Nacional de Polícia inspeciona as 42 corporações do país a partir de indicadores de eficiência, eficácia e legitimidade”, explica Alberto Kopttike, do Instituto Cidade Segura. “Precisamos de uma inspetoria civil com força e estrutura, dentro do Ministério da Segurança”, diz.

PRIORIDADE AO COMBATE A CRIMES VIOLENTOS

O foco da Polícia Militar no policiamento ostensivo e em operações de apreensão de armas e drogas nas comunidades fluminenses é proporcional à falta de priorização da solução das ocorrências de homicídios.

Segundo levantamento do Instituto Sou da Paz divulgado em dezembro de 2017, o Rio de Janeiro esclareceu apenas 12% das ocorrências de homicídio doloso de 2015, ano em que o Estado registrou 25,4 mortes por 100 mil habitantes, num total de 4.200 mortos.

“O modelo está errado. Os homicídios aumentaram, mas o perfil do encarcerado é o mesmo: prendemos pessoas por crimes não violentos”, afirma Robson Rodrigues Silva. “Precisamos aumentar a taxa de investigação e aprovar leis estaduais processuais que acelerem o trâmite [da investigação] para este tipo de crime.”

Segundo Michel Misse, da UFRJ, “não existe um investimento sério em formação dos investigadores”.

“Uma boa perícia no local do crime resolve 50% dos casos. Mas temos uma tradição oral de transmissão de conhecimento, em que um bom delegado forma um bom investigador. Precisamos de algo universalizado, e não particular.”

Além da falta de prioridade e de formação, o déficit nos quadros e a grande carência de equipamentos necessários à perícia criminal são determinantes do mau desempenho atual. Mudar o quadro depende de investimento.

CRIAÇÃO DE MECANISMOS DE COOPERAÇÃO

A criação de uma instância de coordenação dos vários órgãos que atuam na segurança pública nos níveis federal, estadual e municipal seria um legado de governança para todo o país. “Cada Estado e cada instituição trabalha de um jeito, e os esforços, no lugar de convergir, são diluídos”, diz Renato Sérgio de Lima.

Polícias civil, militar e federal, Procuradoria-Geral da República, ministérios públicos federal e estaduais, Judiciário, Exército e ministérios, como os da Justiça e Fazenda, fariam parte dessa esfera de coordenação em que ninguém manda em ninguém, mas na qual se pactuam regras, padrões e metas.

Hoje, não há padronização para registro de crimes nem tomada de depoimentos nas delegacias. A falta de parâmetros de atuação policial também prejudica a função de fiscalização da atividade policial que deve ser exercida pelo Ministério Público.

No âmbito do Estado do Rio, falta coordenação do trabalho das polícias civil e militar, cada uma cargo de uma parte da atividade policial, investigação e policiamento ostensivo, respectivamente.

“Já criamos áreas integradas de segurança pública, em que PM e polícia civil tinham de atuar juntas, e isso deu resultado. Não precisamos reinventar a roda nesse aspecto. Esse mecanismo é resgatável”, afirma Ilona Szabó.

MODERNIZAÇÃO DO SISTEMA PENITENCIÁRIO

Revistas em presídios, defendem especialistas, não têm efeito de longo prazo. E a repressão das Forças Armadas nas ruas tende a agravar a situação de superlotação num sistema prisional que já apresenta déficit de cerca de 23 mil vagas. “Muita gente deve ser presa antes que se chegue a grandes traficantes de drogas e de armamento pesado. E isso dificulta ainda mais a gestão prisional”, diz Fábio Sá e Silva, ex-coordenador do Depen (Departamento Penitenciário).

Segundo Murilo Bustamante, promotor de tutela coletiva do sistema prisional no Rio, o interventor poderia atuar em pelo menos três frentes que trariam resultados práticos a algumas das mazelas penitenciárias.

Primeira, criar mecanismo de gestão para a alocação de presos. “Há presídios com 312% de ocupação e outros em que sobra vaga”, explica.

Segunda, implantar monitoramento eletrônico por câmeras em todas unidades, já que a crise fiscal veta a abertura de concursos e a contratação de agentes. Hoje, cada unidade têm, em média, apenas nove câmeras e déficit de 50% no número de agentes penitenciários.

E, finalmente, a liberação de recursos do Fundo Penitenciário para a conclusão das obras já avançadas de uma unidade para 500 presos.

“Tudo isso sem falar na melhora da assistência aos presos, já que o fortalecimento das facções está ligado às deficiências do sistema”, diz.

População carcerária no Rio
jun.2016

50.219 é a população prisional

176,6% é a taxa de ocupação

40,1% da população carcerária é de presos sem condenação

Fontes: Instituto de Segurança Pública (braço estatístico da Secretaria de Segurança do Estado), Secretaria de Estado da Fazenda e do Planejamento do Rio de Janeiro, IBGE, Datafolha e Anistia Internacional

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