Precisamos falar sobre armas

14/03/2018
Artigo publicado originalmente na Folha de S.Paulo

Estudos mostram a relação entre armas e mortes violentas; devemos fortalecer o Estatuto do Desarmamento

 

Sou frequentemente questionada sobre a minha posição em relação às armas. Nem sempre o tom é cordial. Mas quando o bom debate acontece, me dou conta do tamanho da desinformação e de como os mitos se sobrepuseram aos fatos em nossa sociedade. Começo neste espaço uma conversa sobre o tema, pois o assunto é sério demais para ser tratado como um dos temas preferidos da polarização. Afinal, o Brasil possui o maior número absoluto de mortes por armas de fogo no planeta –cerca de 44 mil em 2017, quase 73% do número total de homicídios, comparado a uma média global de 46%.

 

Sabemos que o custo de matar aqui é baixo. Menos de 10% das mortes violentas resultam em condenação. Adicionar mais armas em circulação em um país com alto nível de impunidade é uma receita para o desastre. Deveríamos, então, fortalecer e não tentar revogar a lei de controle de armas –10.826/2003, conhecida como Estatuto do Desarmamento. Essa lei foi fruto de uma grande mobilização da sociedade civil, igrejas, estudiosos e contou com o apoio de meios de comunicação. Ela veio para aprimorar a regulação responsável de armas e munições em um país extremamente violento.

 

Ao contrário do que seu nome fantasia sugere e do que se diz por aí, o estatuto não desarma o cidadão. Hoje, um brasileiro maior de 25 anos pode possuir até seis armas em casa ou local de trabalho, desde que cumpra requisitos estabelecidos. No entanto, é importante que se entenda que possuir uma arma é um ato de grande responsabilidade. Armas são instrumentos de ataque e raramente de defesa, e aumentam o risco de acidentes, suicídios e assassinatos de parceiros íntimos em lares onde estão presentes. Se sua escolha é possuir uma, não subestime os riscos.

 

O estatuto, no entanto, proíbe o porte de armas para civis, isto é, cidadãos comuns não podem andar armados nas ruas. E isso faz todo sentido. A ideia de que armar civis torna as sociedades mais seguras é um mito. Estudo do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) em São Paulo mostra que o aumento de 1% de armas de fogo eleva em até 2% a taxa de homicídio. A evidência de países como os EUA, reforça o achado: os estados que têm leis de armas mais permissivas registraram aumentos acentuados em homicídios, roubos, assaltos domiciliares e acidentes envolvendo crianças. A maioria dos especialistas concorda com este ponto. Consulte o manifesto dos pesquisadores contra a revogação do Estatuto do Desarmamento, de setembro de 2016, onde há dezenas de fontes sérias sobre o assunto.

 

Um último esclarecimento importante é sobre o referendo de 2005, previsto no estatuto. Nele, a população decidiu que civis poderiam continuar a comprar armas no Brasil. E seu resultado foi respeitado, uma vez que a posse continua permitida no país. Caso a população tivesse decidido na outra direção, a posse para civis seria também inviabilizada.

 

O estatuto, mesmo que apenas parcialmente implementado, reduziu os homicídios em 12% entre 2004 e 2007. Sem ele, pelo menos mais 133 mil brasileiros teriam sido assassinados desde 2004 de acordo com o Mapa da Violência. Pelo dito acima e por tantos outros dados que não cabem nessa coluna, eu defendo a lei 10.826/2003 e trabalho pela sua implementação. Quero continuar essa conversa com todos, principalmente com os que discordam. Peço apenas que busquem antes os fatos.

Ilona Szabó de Carvalho

Cientista política fluminense, é mestre em Estudos de Conflito e Paz por Uppsala.

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