O que há na Estratégia Nacional de Inteligência aprovada por Temer

Nexo Jornal

Dezembro, 2017

O presidente Michel Temer assinou um decreto, no dia 15 de dezembro, em que estabelece a Estratégia Nacional de Inteligência. O documento aprofunda a definição das finalidades, atribuições e limites dos serviços de inteligência no Brasil.
O termo inteligência frequentemente remete à ideia de espionagem. A palavra ganhou apelo popular em livros e filmes a partir da Guerra Fria, período de disputas políticas e ideológicas que opôs um bloco capitalista, liderado pelos EUA, e outro, comunista, liderado pela hoje extinta URSS, depois do fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945. A espionagem, no entanto, é apenas uma das atividades de coleta de informações da área de inteligência.
O documento assinado por Temer representa o penúltimo passo de um processo iniciado nos anos 1990, quando – ainda na redemocratização, após 21 anos de ditadura militar (1964-1985) – o Brasil começava a estabelecer as bases de refundação de seus órgãos civis e militares ligados à segurança e à defesa nacional, dentro dos marcos do Estado Democrático de Direito.
A Estratégia Nacional de Inteligência e o Plano Nacional de Inteligência, a ser adotado no futuro, darão, juntos, “concretude, nos níveis operacional e tático” para as formulações teóricas de caráter mais abrangente contidas na Política Nacional de Inteligência, adotada em 2016, e ao Sisbin (Sistema Brasileiro de Inteligência), composto por 37 agências nacionais que funcionam em colaboração no setor.
‘Identificar oportunidades e neutralizar riscos’
Na visão expressa pela Estratégia Nacional, a inteligência “objetiva a obtenção, a análise e a disseminação de conhecimentos sobre fatos e situações que possam impactar o processo decisório e a ação governamental”. O texto diz que “para decidir, o governo tem de sopesar os diversos matizes de uma realidade em constante evolução, considerando as ações dos múltiplos agentes, domésticos e externos, que em conjunto influem nos rumos de nossa sociedade”. Para isso, precisa desenvolver uma rede de inteligência com “capilaridade doméstica e internacional”.

“Cabe à atividade de Inteligência acompanhar o ambiente interno e externo, buscando identificar oportunidades e possíveis ameaças e riscos aos interesses do Estado e à sociedade brasileira. As ações destinadas à produção de conhecimentos devem permitir que o Estado, de forma antecipada, direcione os recursos necessários para prevenir e neutralizar adversidades futuras e para identificar oportunidades para sua atuação”
Estratégia Nacional de Inteligência, aprovada em 15 de dezembro de 2017

Funções
INTELIGÊNCIA
“Atividade que objetiva produzir e difundir conhecimentos às autoridades competentes, relativos a fatos e situações que ocorram dentro e fora do território nacional, de imediata ou potencial influência sobre o processo decisório, a ação governamental e a salvaguarda da sociedade e do Estado”.
CONTRAINTELIGÊNCIA
“Atividade que objetiva prevenir, detectar, obstruir e neutralizar a Inteligência adversa e as ações que constituam ameaça à salvaguarda de dados, conhecimentos, pessoas, áreas e instalações de interesse da sociedade e do Estado”.

Zona cinzenta da legalidade

Por manejar informações muitas vezes secretas – próprias e alheias –, a área de inteligência opera muitas vezes no que especialistas classificam como uma “zona cinzenta” entre a legalidade e a ilegalidade.
O próprio governo reconhece essa situação, ao dizer: “O que particulariza a estrutura normativa da atividade de inteligência é, portanto, a previsão legal de exceções aos paradigmas impostos a outras funções essenciais do Estado sem, todavia, distanciar-se dos ideais democráticos que inspiram todo o serviço público”.
No passado, tanto durante a ditadura quando em democracia, o monitoramento de opositores, de militantes e de membros de movimentos sociais levou à associação direta entre inteligência e abuso contra os direitos humanos.
Um dos casos mais recentes se deu em setembro de 2016, quando um capitão do Exército se infiltrou num grupo de jovens manifestantes, em São Paulo, levando à prisão desse grupo pela Polícia Civil.
Antes disso, em 2015, veio a público a informação de que a inteligência americana havia espionado a então presidente Dilma Rousseff e outros membros do governo petista. O caso levou a protestos internacionais do governo brasileiro e ao cancelamento de uma visita que Dilma faria a Washington na sequência.
Para entender as implicações das ações de inteligência nas áreas de defesa e de direitos humanos, o Nexo enviou três perguntas a dois especialistas de áreas diferentes.

‘Espionagem é apenas uma das atividades de inteligência’

Giovanna Kuele – Pesquisadora do Instituto Igarapé e mestre em Estudos Estratégicos pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Como diferenciar inteligência e espionagem?
A inteligência é “a dimensão informacional da interação entre vontades antagônicas”. Em outras palavras, a inteligência governamental compreende atividades de coleta e de análise de informações que buscam maximizar a vantagem relativa do seu país, fornecendo subsídios aos tomadores de decisões.
A espionagem, por sua vez, refere-se especificamente à obtenção de informações secretas de governos e/ou organizações sem autorização. Acrescenta-se a isso a associação gerada na cultura popular entre inteligência e espionagem, devido ao período da Guerra Fria entre EUA e URSS.
Nesse sentido, muitas pessoas fazem essa associação, embora a espionagem seja apenas uma das atividades que a inteligência governamental possa englobar. Por exemplo, o Sisbin (Sistema Brasileiro de Inteligência) abarca 37 órgãos federais, da Agência Brasileira de Inteligência ao Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis). Já a espionagem, pode ser exemplificada pelo caso das informações sigilosas vazadas por Edward Snowden [ex-funcionário da inteligência americana, hoje asilado na Rússia, que ganhou notoriedade depois de revelar programas secretos de vigilância conduzidos pela NSA, braço da CIA], em 2013.

A atividade de inteligência sugere a descoberta de informações sensíveis. No caso do Brasil, que informações são essas? E quem são as pessoas ou grupos que detêm essas informações, internamente e internacionalmente?
As informações sensíveis são aquelas geralmente classificadas como sigilosas e poucos têm autorização de acesso. São informações muito estratégicas para o país e que poderiam colocar em risco a segurança nacional, se descobertas. Os grupos que detêm essas informações são os tomadores de decisão e o alto escalão do sistema nacional de inteligência, variando, lógico, em situações específicas. Todavia, mesmo que as informações sejam consideradas sensíveis, acaba sendo gerado um forte dilema e questionamento entre o segredo governamental e o direito à informação, principalmente nas democracias.
Hipoteticamente, a inteligência brasileira – tendo capacidade e interesse nacional para tanto – poderia buscar coletar informações de quaisquer instituições, tais como outros governos, empresas, movimentos sociais, partidos políticos. Mas, na prática, é difícil saber exatamente de quais ela tem coletado, pois são geralmente informações sensíveis e secretas. Geralmente, ficamos sabendo disso quando alguém consegue vazar esse tipo de informações, vide exemplos como o do Snowden e do Panama Papers [vazamento de documentos sobre offshores abertas em paraísos fiscais por pessoas de 180 países, entre as quais políticos, artistas e empresários influentes].

A contrainteligência diz respeito à proteção de informações sensíveis. Que informações são essas? E elas estão sendo protegidas de quem, internamente e internacionalmente?
Se por um lado a inteligência tem por função a coleta e a análise de informações sensíveis, por outro, tem de proteger essas mesmas informações de outros Estados e/ou organizações que buscam obtê-las. É o que chamamos de função dupla: prover e proteger. Portanto, a contrainteligência é parte do que compreende as atividades de inteligência, objetivando proteger essas informações, bem como infraestruturas críticas e demais ativos considerados importantes e sigilosos. Por exemplo, quando Edward Snowden vazou dados relativos a comunicações do alto escalão do governo brasileiro [fruto de espionagem realizada contra a então presidente Dilma Rousseff, em 2015], discutiu-se que nós deveríamos investir mais justamente em contrainteligência a fim de termos mais capacidade de proteger nossas informações sensíveis.

‘Inteligência pode violar direitos’

Francisco Brito Cruz – Diretor do InternetLab, doutorando e mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela USP

Atividades de inteligência podem levar a violações de direitos humanos? Quais? De que forma?
Sim. A coleta de informações e o acompanhamento de processos sociais e políticos realizados por órgãos que compõem o Sisbin (Sistema Brasileiro de Inteligência) podem ter impacto em garantias fundamentais, como a privacidade, o sigilo das comunicações e a liberdade de associação e de expressão.
Isso ocorre pela própria natureza deste tipo de atividade. Órgãos de inteligência não buscam apenas dados de conhecimento público, mas sim informações estratégicas, por vezes obtidas por um esforço investigativo ou de monitoramento. Uma vez empreendido este esforço, direitos dos cidadãos podem ser lesados, como o de reunir-se livremente para discutir política sem que um agente do Estado escute e monitore, por exemplo.
Mesmo que a lei dê competência para diferentes órgãos atuarem em modalidades e circunstâncias específicas, uma série de abusos pode ocorrer, especialmente por conta de tais práticas habitarem uma zona cinzenta que raramente é revelada por completo ao escrutínio público.

Sua organização tem registros de casos em que o governo violou direito de cidadãos por meio de atividades de inteligência?
A história dessas atividades teve relação com nossa história de violação de direitos, em especial devido ao papel que o setor desempenhou durante o regime militar [1964-1985]. Segundo relatório da Comissão da Verdade, informações obtidas nesse âmbito transmutaram-se, depois, em perseguições e tortura. Em 1988, a nova Constituição deu nova moldura para tais atividades, gerando uma série de novos desafios e possibilidades de questionamento de abusos.
Recentemente, é necessário estarmos atentos à ascensão de novas tecnologias, em especial a partir das revelações de Edward Snowden, funcionário da inteligência estadunidense. Paralela e preocupantemente, a nossa nova Estratégia sublinha, por exemplo, técnicas de análise de grandes volumes de dados [big data]. Nesse campo, temos mapeado uma série de casos sensíveis, como o da infiltração de um oficial do Exército através de um aplicativo de encontros e, ainda, do estabelecimento de um sistema integrado de monitoramento de redes sociais pelo Sisbin, chamado Mosaico.

Como é possível gerir com transparência as ações de uma estrutura governamental que chama a si mesmo de secreta?
A lei dá ao Congresso Nacional competência para controle e fiscalização das atividades de inteligência, o que é realizado por comissão mista permanente. Entretanto, ainda que o setor conte com tal escrutínio, garantir sua transparência e legitimidade democrática é um desafio complexo, em especial se considerada a multiplicidade de técnicas de vigilância disponíveis aos Estados.
Mesmo que contextos nacionais possam ser diferentes, entidades internacionais de direitos humanos sedimentaram recomendações importantes. Proporcionalidade, finalidade legítima, respeito à legalidade, controle judicial e devido processo legal são alguns princípios indicados por uma coalizão de especialistas em privacidade e tecnologia.
Elaborados em 2014 como resposta às revelações de Snowden, tais princípios são referência para conformar esse setor à proteção de direitos dos cidadãos, o que não ocorrerá espontaneamente. É chave a ação de outros Poderes e da sociedade civil para que tais atividades sejam democraticamente debatidas, como qualquer política pública no Estado Democrático de Direito.

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