Na 2ª Guerra e no Haiti, soldado brasileiro usou música como ‘arma’

Ilustríssima – Folha de São Paulo

Outubro, 2017

Por Vinicius Mariano de Carvalho

Uma das imagens mais marcantes da participação brasileira na Segunda Guerra Mundial com a Força Expedicionária Brasileira, a FEB (1943-1945), não é de nenhum combate, mas de um “pracinha” desembarcando em Nápoles, na Itália, com seu saco B na cabeça e empunhando, muito garboso, o estojo do seu violão.

Outras tantas fotografias daquela que foi a primeira campanha brasileira fora de seu território desde a Guerra do Paraguai (1864-1870) retratam soldados com violões, cavaquinhos, pandeiros, agogôs, trompetes e outros instrumentos.

Encontrei recentemente, em arquivos da BBC, gravações das músicas cantadas pelos pracinhas brasileiros na Itália. As gravações foram trabalho do correspondente de guerra da emissora para o Brasil, Francis Hallawell, também conhecido como “Chico da BBC”.

Equipado com um gravador de discos, ele acompanhou a campanha durante a Segunda Guerra e legou documentação radiofônica extremamente rica. Algumas dessas músicas já circulavam por sites sem tanta visibilidade, enquanto outras se mantinham completamente desconhecidas, sem estudos sobre tais produções.

São sambas, marchas, emboladas, baladas: registros da diversidade e da riqueza musical brasileira, reflexo da diversidade da FEB – com pracinhas de todo o Brasil. Essas canções são marcas da maneira como os soldados viveram e expressaram suas experiências na guerra.

Situação semelhante ocorreu com a música brasileira na Guerra do Paraguai. Pouco se conhece sobre o que tocavam e cantavam os soldados em campanha.

Em outra pesquisa, descobri manuscritos de obras compostas pelo mestre de banda do Corpo de Voluntários da Pátria do Pernambuco, Fillipe Neri de Barcelos. Eram músicas populares de então: um galope, uma marcha e até mesmo uma polca; mais sobre esse material estará no livro “A Música Militar na Guerra da Tríplice Aliança – Notas Documentais e Manuscritos Revelados” (no prelo), com um texto sobre a música militar na Guerra do Paraguai e a edição contemporânea dos manuscritos, bem como com acesso à gravação contemporânea das obras restauradas.

Já no século 21, um novo contingente brasileiro seria acionado novamente, mas por outro motivo: uma missão de paz em solo haitiano. O ano era 2004, e o Brasil aportaria na Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah) para ficar por 13 anos.

Com mais de 37 mil militares brasileiros durante toda a missão, foi a operação internacional mais longa de nossas Forças Armadas, findada no último dia 15, com a saída do contingente final de tropas.

Apesar de tantas diferenças entre a Minustah, a Guerra do Paraguai e a Segunda Guerra Mundial, há um ponto em comum para as forças brasileiras: a presença da música popular e viva executada pelos soldados, transportada e apresentada como um patrimônio nacional valioso – e que deve ser cultivado e praticado pelos militares.

LÁ NO HAITI

Essas observações são fruto de minha experiência como pesquisador de música militar e também como pesquisador do Brasil em Operações de Paz. Não pretendo aqui ter a palavra final sobre a música entre as tropas da Minustah. Apenas chamo a atenção para este recurso peculiar do soldado brasileiro empregado com eficácia e eficiência, seja em combate, seja na caserna.

Estive pela primeira vez no Haiti em 2013. A pesquisa em si não era necessariamente relacionada à música, porém esta não me passou despercebida. Em uma das atividades, num sábado, acompanhei um grupo de militares da companhia de engenharia brasileira em uma visita a um orfanato de Porto Príncipe. O objetivo era levar sopa bem nutrida para as crianças lá residentes. Poderia ser apenas um ato simples de solidariedade: chegar, deixar a sopa, retornar à base. Afinal, era um dia livre para aqueles militares que, voluntariamente, se propuseram a participar da atividade.

Chamou-me a atenção um cabo, de violão em punho, que embarcou na viatura. A imagem remeteu-me imediatamente àquela do pracinha desembarcando em Nápoles.

Enquanto parte dos militares preparava a distribuição da sopa no orfanato, o cabo reunia-se com as crianças em uma sala e, com seu violão, cantava e brincava com os pequenos. Cantava em português, incluía algumas palavras em “créole” haitiano, tocava algumas canções completas na língua que, desconfio, não era de seu domínio e fluência.

A cena foi inesquecível. Em poucos minutos, estávamos também eu e meus outros colegas pesquisadores cantando e brincando com as crianças, que já arriscavam algumas palavras em português – tanto como nós algumas em “créole”.

Nesta mesma viagem, acompanhei uma ação cívico-social em Cité Soleil; lá, a música esteve outra vez presente. De um lado, alguns soldados já formavam um grupo de pagode. Com cavaquinho, violão, atabaque, pandeiro e tamborim, cantavam com crianças e adultos os mais recentes sucessos de grupos de pagode populares no Brasil. Ao cair da tarde, uma grande roda de capoeira se formou no centro da praça em frente à base brasileira da Minustah naquele bairro e, por horas, as ladainhas e refrães da capoeira ecoaram com os berimbaus e atabaques, envolvendo haitianos e brasileiros.

Finalmente, ecoou no sistema de som montado para a ocasião o “Ohrwurm” – aquela melodia que não sai da nossa cabeça – de Michel Teló, “Ai, se eu te pego”, e o coro era uníssono entre haitianos e soldados brasileiros, um verdadeiro vínculo harmônico provocado pela canção de sucesso.

Nestes 13 anos de missão, com 26 contingentes, militares de todo o Brasil tiveram a oportunidade de passar seis meses no Haiti. Nesta transposição (também cultural), levaram consigo suas práticas musicais locais e, principalmente, as canções mais populares no Brasil à época. Os soldados atuaram, então, como genuínos embaixadores culturais do país.

Ainda é cedo para notar o reflexo que isso teve (e terá) para a música haitiana. A presença desses contingentes, porém, de forma tão ativa no território, criou uma possibilidade de que influências brasileiras tenham ido muito além do contato superficial.

Estou certo de que muitos outros visitantes e, principalmente, militares brasileiros que atuaram nestes 26 contingentes têm dezenas de experiências semelhantes para relatar, seja como espectadores, seja como participantes dessas partilhas musicais.

TRADIÇÃO

O soldado é criativo e bem-humorado. Quando se trata de fazer música, essas características são ainda mais marcantes. Nos sambas e marchas dos pracinhas da FEB, o que se nota é sempre uma descrição irônica das agruras da vida em campanha: uma leitura cômica de fatos trágicos que deixaram marcas profundas.

Um exemplo desse despojamento vem da Segunda Guerra: a metralhadora alemã MG-42, terror das tropas brasileiras, ganhou o apelido de “Lourdinha” nas canções dos soldados brasileiros à época. Isso porque o som da cadência de fogo da arma remetia à maneira de falar de Lourdinha, a namorada de um pracinha. E ela ganhou mais que um samba em sua homenagem.

Mesmo se refletirmos sobre a insígnia e o lema da FEB – a cobra fumando -, enxergamos um marco da maneira divertida e bem-humorada do soldado brasileiro ao refletir a experiência da guerra.

Na FEB, muitas dessas gravações sobreviveram graças às transmissões da BBC, em que os soldados imitam instrumentos musicais como trompetes e trombones, usando a própria voz, já que nem sempre dispunham de instrumentos.

Dito isso, posso especular que pagodes, forrós, sertanejos e funks entoados pelos soldados da paz no Haiti surgiram ironizando, interpretando humoristicamente, a experiência na missão. Afinal, mesmo no Brasil, durante seu serviço militar obrigatório, o militar assim se expressa.

Por meio das mídias sociais, especialmente o YouTube, encontra-se parte da produção musical dos soldados, filmadas com celulares e postadas na internet. São funks e pagodes nos quais se interpreta de forma irônica a escala de serviço, a hora como sentinela, a faxina etc.

Outro aspecto muito interessante do intercâmbio cultural do soldado brasileiro em campanha é a incorporação de elementos linguísticos. Assim como nos sambas e marchas dos pracinhas na Itália o medo virou “paura”, o alemão virou “tedesco” e a loira virou “bionda”, o veterano brasileiro da Minustah incorporou o “créole” haitiano – e não há quem não se refira a um “bom bagai”, que poderia ser traduzido em português como o “gente boa”.

Não será surpresa se outros tantos termos da língua venham a se incorporar no linguajar da caserna e, consequentemente, nas músicas daí nascidas.

IMPROVISO

Em uma última visita de pesquisa à Minustah, em agosto, pude perceber outro aspecto peculiar da música entre os soldados do 26º Contingente do Batalhão Brasileiro de Força de Paz (Brabat). Observei que a experiência de agente de pacificação era motivo de inspiração para o graduado que puxava as canções na corrida do treinamento físico.

Muitas destas canções denotavam que a inspiração já vinha desde o período de preparação da tropa ainda no Brasil – pois remetiam a eventos anteriores à chegada ao Haiti. De todo modo, as canções “improvisadas” pelo sargento Malheiros confirmavam muitas das hipóteses que levanto neste texto. Cantava ele com a tropa:

Aqui em Caçapava
Eu mal falava português
Mas lá em Porto Príncipe
Eu vou gastar o meu inglês

Hello, good morning
How are you
I’m fine, thank you

Aqui no Brabat
Eu já falo até inglês
Mas lá no Haiti
Eu vou testar o meu francês

Bonjour,
Comment allez-vous
Ça va bien
Merci beaucoup

Nota-se a ironia, o bom humor e o jogo com as línguas, resultado do convívio com outros idiomas na missão.

A realidade operacional da tropa também encontrou versos nas canções do sargento Malheiros. Na monotonia melódica típica das canções de corrida – nas quais o ritmo do verso é o fator relevante, combinado com seu conteúdo, que deve necessariamente ser de motivação moral –, encontrar a palavra certa e a familiaridade do conteúdo para o soldado é o cerne da arte poética. Isso se vê com maestria nesta canção de corrida:

Patrulha a pé, motorizada
Check-point, escolta armada
Ações cíveis, humanitárias
A tropa está bem preparada
Manter estável o ambiente
A segurança, conte com a gente

Além da finalidade motivacional e irônica, essas canções também têm um caráter formativo interessante, já que, na repetição dos versos em coro, os procedimentos, os valores, os objetivos e as táticas são repassados e reforçados, como podemos ver abaixo:

Peacekeeper foi chamado
Para mais uma missão
Check aos pares, cobertura
Double Tap, tá na veia
Peacekeeper tá na área
Acabou a brincadeira
Capacete azul, colete
E com meu fuzil na mão
Armamento de backup
Estou pronto para ação
Inimigo à direita, à esquerda
E retaguarda
Saio da visão de túnel
Estou sempre na vanguarda
Mão forte, ou mão fraca
Já domino a posição
1, 2, 3 e sul
e até retenção
Peacekeeper é um soldado
Ele luta pela paz
Agora eu vou contar
Pra você o que ele faz

Em um texto especulativo como este, cheio de conjecturas sobre a possível música que surgiu dessa convivência de 13 anos, o que se tem mais ao certo é que a música brasileira esteve presente de forma intensa e viva no Haiti: não apenas através de gravações e discos, mas praticada e estimulada pelo soldado brasileiro.

O peso diplomático desempenhado por essa prática é muito relevante. Além do engajamento militar em seu aparato de força, da presença marcante de agentes vários nos momentos de maior trauma humanitário (como no terremoto de 2010) e dos grandes esforços diplomáticos formais, o Brasil também teve uma atuação diplomática de outra ordem. Ela foi executada com sensibilidade pelo soldado por meio de um típico exercício de diplomacia cultural: simplesmente cantando, tocando seus instrumentos, praticando capoeira com a população local.

Esse exercício de diplomacia cultural tem fortes impactos: reforça laços de camaradagem, reafirma um soft power sem pretensões impositivas, facilita o diálogo e a compreensão e demonstra que, espontaneamente, estruturas pacificadoras podem ser estabelecidas e implementadas.

Alguns estudos acadêmicos acerca da participação brasileira em operações de paz – e no caso do Haiti em particular – tratavam de um diferencial cultural comum entre os soldados brasileiros que os colocava em situação privilegiada quando na necessidade de resolver situações de conflito ou de evitar essas mesmas situações. Um suposto “jeito brasileiro de fazer operações de paz” foi sempre muito relacionado ao aspecto cultural.

Sem dúvida, a música é uma das ferramentas para esse diferencial cultural.

Aqui, talvez a “arma secreta” brasileira nas operações de paz seja levada pelo soldado dentro do estojo de um violão. “Arma” que, quando acionada, ajuda-o a evitar conflitos, pacificar situações, filtrar suas experiências mais duras de combate e traduzir o que ele vivenciou para aqueles que não compartilharam de sua vivência.

Este texto é uma adaptação de artigo que integra o livro “A Participação do Brasil na Minustah (2004-2017): Percepções, Lições e Práticas Relevantes para Futuras Missões”, uma parceria entre o Instituto Igarapé e o Centro Conjunto de Operações de Paz do Brasil (CCOPAB). A íntegra está em: https://igarape.org.br/brasil-na-minustah-2004-2017/

*Vinicius Mariano de Carvalho, 43, doutor em literaturas românicas pela Universidade de Passau, na Alemanha, é professor de estudos brasileiros no King’s Brazil Institute e no departamento de estudos de guerra, no King’s College London. Sua mais recente obra é “A Música Militar na Guerra da Tríplice Aliança – Notas Documentais e Manuscritos Revelados” (no prelo 2017).

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