“Minha principal escolha é diminuir o poder do tráfico”, diz ministro do STF

O Globo

4 de fevereiro, 2017

Enquanto o Supremo Tribunal Federal (STF) não avança no julgamento do processo que pode resultar na descriminalização do porte de maconha para o consumo pessoal, o ministro Luís Roberto Barroso, integrante da corte, já está enxergando além. Para ele, descriminalizar é pouco. Seria preciso legalizar o uso da maconha e, se a experiência der certo, estender também para a cocaína. A medida, avalia, seria eficaz no combate ao tráfico e à opressão que os traficantes exercem em comunidades carentes.

Além de diminuir a criminalidade, a legalização poderia surtir outro efeito imediato: aliviar a superpopulação das cadeias brasileiras, recheada de jovens primários presos por crimes ligados ao tráfico. Barroso combate a ideia de que a legalização incentivaria o aumento do consumo de drogas. Ele compara com a situação do cigarro, que tem publicidade controlada e obrigação de veiculação de alerta de risco à saúde. Nas últimas décadas, diminuiu a quantidade de fumantes no país.

Qual a posição do senhor sobre as drogas?

Quando você vai estabelecer uma política pública, definir uma estratégia de ação, você precisa ter com clareza quais são suas premissas, quais são os fins a que você visa e quais são meios que você pretende utilizar. A minha primeira premissa é a de que a droga é uma coisa ruim e, portanto, qualquer política pública deve ter por propósito desincentivar o consumo, tratar os dependentes e combater o tráfico. A droga é uma coisa ruim e nós precisamos pensar a melhor forma de enfrentar. A minha segunda premissa é a de que a guerra as drogas, tal com vem sendo praticada há quase 50 anos, fracassou. Depois de muitos bilhões de dólares, depois de muitos milhares de mortos, o consumo só fez aumentar. Além do consumo, criou-se uma imensa criminalidade associada às drogas. Se você fizer o mesmo que você sempre fez, você não vai conseguir produzir resultados diferentes.

Como o país deveria enfrentar o problema das drogas?

Eu acho que o primeiro e grande objetivo de uma política de drogas no Brasil deve ser acabar com o poder opressivo do tráfico sobre as comunidades carentes. O tráfico impede que um pai e uma mãe, que uma família de bem eduque o seu filho numa cultura de honestidade e de decência. O tráfico coopta ou oprime essas pessoas. E essa talvez seja uma das maiores violações de direitos humanos que há no Brasil: impedir um pai de criar o seu filho honestamente. O segundo objetivo, esse um pouco mais imediato, que está associado à crise no sistema penitenciário, é reduzir índice de encarceramento inútil de jovens primários que são presos como traficantes, são pessoas não perigosas que passam alguns meses ou alguns anos na prisão e saem de lá perigosas. O terceiro objetivo deve ser controlar o consumo.

Como o senhor acha que o poder público deveria fazer isso?

Deveria haver a tentativa de legalizar (as drogas) paulatinamente, começando pela maconha. Digo tentativa, porque não tenho certeza se vai dar certo. Portanto, eu acho que é uma experiência.

Por que o senhor acha que as drogas deveriam ser legalizadas?

Eu acho que se deve tentar realizar essa experiência porque o modelo alternativo, que é a guerra, não está funcionando. E, na vida, quando alguma coisa não está funcionando, a gente deve pensar numa alternativa. O poder do tráfico advém da ilegalidade. Portanto, eu acho que legalizar a maconha, significando regulamentar a produção, a distribuição e o consumo, pode ser uma alternativa.

Mesmo considerando aquela premissa do senhor de que a droga é ruim?

Sim, porque a legalização ajuda a combater. A legalização não terá, na minha visão, como consequência, nem o incentivo, nem o aumento do consumo.

Como seria a melhor forma de comercializar a maconha?

Eu acho que se deveria tratar como se trata o cigarro, como uma atividade econômica. É preciso tributar, regular, exigir que se prestem informações, cláusulas de advertência, fazer contrapropaganda. Idealmente, será possível produzir as mesmas consequências em relação ao cigarro, que, em pouco mais de duas décadas, o consumo na população adulta caiu de 35 para 15%. Portanto, um produto legal, cujos malefícios são divulgados e que é enfrentado não com repressão, mas no mercado de ideias, no mercado de informação. Seria possível regular e monitorar o mercado para ver o impacto sobre a segurança pública e sobre a saúde pública. Essa é uma proposta de se fazer uma experiência, porque o modelo praticado não está dando certo.

Quando se fala em legalização, logo se pensa no tratamento dado à bebida, com propaganda em todos os lugares. Isso seria nocivo?

Eu acho que o tratamento a ser dado é o tratamento que se dá ao cigarro, com publicidade extremamente limitada e controlada, você obriga a veicular cláusulas de advertência. E eu acho, tanto por mecanismos oficiais, quanto por mecanismos informais, você deve desincentivar o consumo. Parte do glamour vem da ilegalidade. A pesquisadora Ilona Szabó demonstrou em pesquisas feitas pelo mundo que a descriminalização não produz impacto sobre consumo. Podemos fazer uma analogia com o aborto. Ninguém é a favor do aborto, todo mundo é contra. Porém, a criminalização não é uma boa política pública. As estatísticas demonstram que descriminalizar o aborto não impacta o número de abortos. Impacta tão somente o número de procedimentos seguros. Em matéria de drogas, existe uma demanda que já é atendida ilegalmente. A legalização não vai produzir impacto sobre o consumo. Legalização não é dizer que é legal no sentido de bacana, mas significa que vai combater com ideias, e não com a polícia.

Como o tráfico perderia o poder com a legalização das drogas?

Eles são os donos do poder econômico nessas comunidades, pelo dinheiro que arrecadam com o tráfico. Com base nesse poder econômico, eles passam a exercer poder político sobre as comunidades. As organizações criminosas se tornam o estado nessas comunidades. Na medida em que esse poder econômico deixe de existir, porque o poder econômico advém da ilegalidade, se a maconha se tornar uma atividade comercial lícita, fiscalizada pelo estado, com venda em pontos determinados, pagando tributo, será uma atividade comercial. Isso, consequentemente, vai reduzir o poder do tráfico.

O senhor não teme o aumento do consumo de drogas?

Em alguns estados americanos, como Colorado, esse passou a ser um mercado relevante, sem aumento do consumo. Apenas ele passou da informalidade para a economia formal. Portanto, um comerciante honesto, cumpridor dos seus deveres, vende, entre outros produtos, este. No mínimo, você fará uma concorrência com o tráfico ilegal. Com o cigarro também tem contrabando, tem outros problemas. Isso significa que é preciso fazer uma tributação equilibrada para não fomentar o tráfico.

E a cocaína, por que deveria ser legalizada?

A maconha é hoje apenas uma parte deste mercado, e acho que nem é a parte mais lucrativa. A cocaína tem efeitos psíquicos mais graves do que a maconha. Mas aqui, se algum dia se optar por regulamentar cocaína, será preciso fazer uma escolha filosófica. A minha principal escolha filosófica é diminuir poder do tráfico. O consumidor da maconha está sujeito a efeitos sobre si extremamente negativos. Porém, ele está vivendo a própria vida e fazendo escolhas próprias. Minha preocupação maior se dirige àquelas pessoas que são oprimidas pelo tráfico sem escolha. Entre impedir o poder do tráfico ou interferir na decisão das pessoas de se intoxicarem, eu tenderia a fazer a opção por impedir a opressão dos inocentes.

Então, funcionando a experiência de legalizar a maconha, ela poderia ser estendida à cocaína?

Penso que sim. Se der certo em um caso, faz-se a experiência com outro. Sempre tendo em conta que estamos fazendo experiências. Quando você está criando um remédio novo na medicina, você pode testar em laboratório, em cobaias, fazer testes clínicos de diferentes graus. Quando você está lidando com o direito e com políticas públicas, infelizmente você não pode fazer testes em laboratório. O laboratório acaba sendo a vida real. Por isso que as mudanças têm que ser graduais, verificando-se o impacto que elas vão produzir. Eu não acho que a legalização possa ser uma coisa feita no oba-oba, ela tem que ser feita de uma forma planejada. Tem que haver um estudo, um planejamento e uma implementação gradual e monitorada. O Brasil é tradicionalmente o país do improviso. Aqui não funciona. A gente tem que ter as melhores cabeças que concordem com essa mudança ajudando a pensar e implementar um plano que começaria com a maconha e, se der certo, passa-se para a cocaína.

E se a legalização das drogas surtir um efeito social ruim?

Se não der certo, a gente volta atrás. Não há vergonha na vida em se arriscarem coisas novas e, não dando certo, voltar atrás. Eu não estou aqui enunciando uma verdade revelada, eu estou propondo uma alternativa a um modelo que não deu certo. Estamos pensando uma alternativa. A vida é feita de prudências e de ousadias. É preciso acertar quando é um caso e quando é o outro. Nós temos sido prudentes, sem sucesso. Portanto, acho que está na hora de um pouco de ousadia.

Qual a opinião do senhor sobre a legalização do crack?

Eu sou um observador de sistemas a partir da minha posição como juiz. Eu me preocupo com a quantidade de pessoas que vai presa e tem a vida destruída porque são acusados de delitos associados a drogas. Esta é a realidade que eu conheço. Para ser honesto, eu não mencionei crack porque eu não domino os fatos e os conceitos. A referência que eu tenho é que o crack é destruidor da autonomia da pessoa, da sua capacidade de fazer escolhas esclarecidas. Se isto é fato, eu acho que esta é uma droga que não se enquadra nas mesmas premissas que eu estabeleci previamente. Não é que eu conheça maconha e cocaína a fundo, mas eu observo, como juiz, como elas impactam na vida das pessoas. Não posso fazer isso em relação ao crack, mas acho que o fato de ele ser altamente deletério para a vida das pessoas e sua capacidade de viver uma vida normal ou de fazer escolhas esclarecidas, é possível que ele precise de um tratamento diferenciado dos demais.

O STF começou a julgar um processo sobre descriminalização do porte para uso pessoal. O senhor acha que uma decisão do tribunal poderia contribuir para a legalização das drogas?

O juiz pode implementar o que o está materializado na Constituição. O que não está na Constituição, e depende de novas decisões políticas, isso depende do Congresso. Essa fronteira entre Constituição e legislação demarca o limite da atuação do Poder Judiciário. No que diz respeito ao consumo pessoal, votamos já no Supremo em relação à maconha o ministro Gilmar Mendes, o ministro Edson Fachin e eu que viola a Constituição, viola a liberdade individual e a privacidade criminalizar uma conduta que alguém pratique reservadamente, no espaço da sua vida privada, e que não afete ninguém. Os votos que tiveram até agora foram no sentido de que criminalizar o consumo da maconha viola a Constituição. Não sei se essa é a posição que vai prevalecer. Mas nós não estamos legislando, porque estamos interpretando esse mandamento constitucional da liberdade individual e da privacidade. Agora, estabelecer uma política pública de drogas não decorre diretamente da Constituição. Portanto, a política pública mais ampla só pode decorrer do Congresso, mediante debate público com a sociedade.

Se o voto do senhor prevalecer no Supremo, não ficaria complicado permitir o consumo e continuar prendendo quem produz e quem vende?

Há uma incongruência clara em admitir o consumo e criminalizar a produção e a distribuição. Não é só descriminalizar consumo pessoal. É preciso também fazer uma distinção entre consumo e tráfico. Porque no mundo real essa distinção não é feita, não há uma demarcação quantitativa prévia do que seja consumo e do que seja tráfico. Na prática, na zona sul é [tratado como] consumo e na periferia é tráfico para a mesma quantidade. Quem faz essa capitulação entre consumo e tráfico é o policial quando prende. Como a ideologia da sociedade trata diferentemente o jovem da zona sul e o jovem da periferia, a polícia acaba materializando essa divisão ideológica e libera o da zona sul e prende o da periferia. A decisão tem que estabelecer uma quantidade que demarque o que seja tráfico do que seja consumo.

Qual quantidade o senhor considera ideal?

[No meu voto] Eu usei o modelo que se pratica em Portugal, que é de 25 gramas de maconha. Eu preciso dizer que usei esse modelo porque eu achei que esta era a quantidade que poderia conseguir mais adesões dos colegas. Eu pessoalmente aumentaria um pouco essa quantidade para 40, 50, talvez até 100 gramas de maconha. Já que se trata de uma experiência, tem que começar com a droga que é menos lesiva.

Mas o poder do tráfico não seria abalado com a definição de uma quantidade, certo?

Se estabelecemos 50 gramas, o tráfico vai distribuir a droga em porções de 50 gramas como “formiguinhas”. Esse jovem que hoje transporta 200 gramas e é preso como traficante e condenado, e vai passar meses ou um ano preso, tem a vida dele destruída. Embora ele fosse primário e não perigoso, no momento em que ele entra no presídio, ele passa a pertencer a alguma facção. A partir desse momento, ele está no crime organizado. Sendo que no dia seguinte a vaga dele de avião do tráfico já foi reposta. Você entope as prisões, destrói a vida desses jovens e não produz nenhum impacto sobre a realidade, porque ele é substituído imediatamente.

Seria um dos motivos para defender a legalização?

Não é que eu ache que essa seja uma política que me traga felicidade. Não é isso. É uma questão puramente pragmática. Não é escolha filosófica, nem ideológica. Todas as pessoas que são contra as drogas, que é quase todo mundo, podem e devem continuar a ser contra as drogas. A condenação política e moral das drogas continua sendo legítima, em certos casos, desejada. A única coisa que nós estamos constatando é que a criminalização não tem produzido efeitos e, portanto, eu acho que a gente deve fazer uma escolha. Sobre a cocaína, a escolha que eu fiz é entre quebrar o poder do tráfico e tentar impedir que a droga chegue ao consumidor da classe média. As duas coisas são legítimas, mas, se eu tiver que escolher uma das duas, eu prefiro neutralizar o poder do tráfico.

O senhor considera que o Congresso atual esta preparado para discutir legalização de drogas? Não há muito preconceito em relação ao assunto?

Cada tempo tem os seus próprios preconceitos. A história da humanidade é a história da superação dos preconceitos. A gente supera preconceitos com o debate público e pessoas bem intencionadas e esclarecidas tentando melhorar o mundo. Acho que esse Congresso é tão bom quanto qualquer outro. Martin Luther King dizia que é sempre a hora certa de fazer a coisa certa. Eu acho que é preciso colocar esse tema no debate público.

Como o senhor acha que legalizar as drogas afetaria o sistema penitenciário?

A crise no sistema penitenciário é uma questão institucional importante e acho que a questão das drogas é diretamente conectada à crise do sistema penitenciário. Porque, se 30% da população carcerária está lá por delitos associados às drogas, nós estamos falando de quase 200 mil pessoas. Neste momento, não estou falando como um juiz, porque não estou julgando nada. Eu estou falando como alguém que observa a vida brasileira, detecta um problema grave e o traz à luz do dia para debater com a sociedade.

Como o senhor avalia a forma como outros países lidam com as drogas?

Eu acho que a gente tem que ter soluções próprias, o Brasil precisa de pensamento original, criativo e ousado para enfrentar os seus problemas. Evidentemente com janelas para o mundo e aproveitando ideias boas praticadas em outros países. Eu observo que o mundo desenvolvido vem abandonando a guerra às drogas, e no Brasil, onde ela produz efeitos muito mais deletérios do que em outras partes do mundo, a gente tem que ter um foco maior e um pensamento original maior. Nos Estados Unidos, um a um os estados americanos vêm legalizando a maconha – para fins medicinais quase todos, para fins recreacionais boa parte dos estados. Posse para uso pessoal também não é mais criminalizada em quase lugar algum. Os Estados Unidos lideraram a guerra às drogas como um combate militar, mas essa política já mudou.

Como o senhor avalia a legalização em outros países?

Em Portugal, tem experiência de grande sucesso, e é um país com o qual temos afinidades. Todos os indicadores são positivos desde que eles descriminalizaram o consumo pessoal e o porte de pequenas quantidades. Inclusive há a constatação de que não houve aumento no consumo. Eu acho que é uma tentativa que vale a pena e que provavelmente nós teríamos pouco a perder, porque, se não há impacto sobre o número de usuários, no fundo, no fundo, subsiste apenas a condenação moral do consumo. Mas a condenação moral, aliada à condenação penal, não tem funcionado. Portanto, quem sabe, mantém-se a condenação moral, mas acabe-se com a condenação penal, substituída por informação, esclarecimento e trazendo essa atividade para a luz do dia, onde o estado, a sociedade, os médicos, os especialistas em segurança pública e os estatísticos possam verificar o impacto real da droga na sociedade brasileira. Tal como está hoje, quem faz essas escolhas não é o estado, é o tráfico.

Por Carolina Brígido e Francisco Reali

O Instituto Igarapé utiliza cookies e outras tecnologias semelhantes para melhorar a sua experiência, de acordo com a nossa Política de Privacidade e nossos Termos de Uso e, ao continuar navegando, você concorda com essas condições.

Pular para o conteúdo