Militares tinham mais liberdade para usar a força no Haiti do que têm no Rio

Durante a missão de paz da ONU (Organização das Nações Unidas) no Haiti, os militares brasileiros seguiam regras que davam mais liberdade para usar a força armada em relação às normas a que obedecem nas operações de segurança pública na intervenção federal no Rio de Janeiro.

Ao responder a um ataque, por exemplo, pela regra brasileira o militar deve dar tiros de advertência e mirar nas pernas do suspeito, para não matar. A norma da missão de paz da ONU não fazia esse tipo de restrição específica e dava parâmetros mais flexíveis para o militar decidir no terreno quando devia ou não atirar.

Para levantar semelhanças e diferenças, o UOL comparou as regras usadas pela ONU na Minustah (Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti) com as da Operação Furacão, a ação de GLO (Garantia da Lei e da Ordem) que possibilita aos interventores usarem tropas nas ruas do Rio.

Essas normas de conduta são chamadas no jargão militar de regras de engajamento, tanto no Brasil como no Haiti. Elas são elaboradas a partir das leis que embasam cada missão.

As duas regras recomendam que a força seja usada só em último caso, quando os recursos da negociação e da dissuasão falharem. Outra semelhança é a recomendação para que a reação a ameaças ou ataques aconteça de forma proporcional.

Apesar de aparentemente semelhantes, as regras da ONU são um pouco mais genéricas (e flexíveis) que as brasileiras e usam um vocabulário característico de conflitos armados. Já as regras da Operação de Garantia da Lei e da Ordem do Rio, apesar de usar termos comuns à ONU, são mais voltadas para operações de segurança pública.

Na missão de paz do Haiti, as regras eram baseadas no direito internacional. Algumas de suas fontes eram costumes internacionais, as Convenções de Genebra, a Declaração Universal de Direitos Humanos, Carta da ONU (acordo que formou o órgão), resoluções do Conselho de Segurança da ONU e o acordo entre as Nações Unidas e o governo haitiano que criou a missão de paz.

No Brasil, o uso das Forças Armadas em ações de Garantia da Lei e da Ordem (segurança pública) é previsto na Constituição. As regras de engajamento usadas na GLO foram baseadas no direito interno e nos compromissos do país com os direitos humanos, segundo afirmou ao UOL uma fonte do Poder Judiciário ligada à intervenção federal.

Ou seja, enquanto no Haiti as regras se valiam de alguns elementos característicos das normas que vigoram nas guerras, no Brasil elas funcionam segundo uma lógica de segurança pública. Ambas têm compromisso com a Declaração Universal dos Direitos Humanos.

“De um lado do contínuo, temos operações militares durante conflitos armados, que têm regras de engajamento menos restritivas. Em seguida, vêm as operações de manutenção da paz [caso do Haiti]. Por fim, do outro lado do contínuo, estão as operações de Garantia da Lei e da Ordem, com regras de engajamento bastante restritivas”, afirmou Eduarda Hamann, pesquisadora do Instituto Igarapé e especialista em operações de paz.

Em outras palavras, no Brasil a ação armada pode ser justificada em casos de “legítima defesa”. No Haiti, as possibilidades de uso da força iam “além da legítima defesa”, segundo a fonte ouvida pelo UOL. Os militares podiam atirar, por exemplo, para cumprir os objetivos da missão, como proteger a população civil e dominar o território.

Na hora de atirar

As duas regras dizem que antes de usar armas letais é preciso tentar negociar, dissuadir (mostrando superioridade numérica, por exemplo) ou usar armas não letais, como as que disparam balas de borracha ou bombas de efeito moral.

Mas, se tudo isso não for suficiente e o militar estiver sob ataque ou grave ameaça, pode atirar com armas letais nos suspeitos.

Pela regra da ONU, ele tem que seguir os seguintes passos para disparar:

  • Gritar três vezes antes de atirar: “Nações Unidas, pare ou eu atiro” (mas, sob ataque surpresa, o militar pode atirar sem dar aviso)
  • Disparar só contra suspeitos identificados (não atirar a esmo)
  • Disparar somente o necessário
  • Evitar ferir inocentes.

Pela regra da Garantia da Lei e da Ordem no Rio, ao sofrer ataque, ele deve:

  • Dar tiros de advertência antes de mirar no suspeito
  • Disparar só contra suspeitos identificados (não atirar a esmo)
  • Tentar ferir sem matar (se possível atirar nas pernas ou nos pneus, se o alvo estiver em um veículo)
  • Evitar ferir inocentes
  • Disparar somente o necessário
  • Dar rajadas de tiros só em extrema necessidade.

Intenção hostil x ato ameaçador

Tanto a regra da ONU quanto a de GLO discriminam situações em que o militar pode usar a força (com armas letais ou não letais) mesmo que seus oponentes não tenham começado a atacar.

A diferença básica é que a ONU dá liberdade para que o militar avalie no terreno a “intenção” de um suspeito e use a força mesmo antes que ele comece a atacar.

A GLO usa o termo “ato ameaçador” e discrimina situações específicas em que o militar pode usar a força. Alguns desses cenários são: apontar uma arma de fogo para um militar que esteja na área de alcance desse armamento, acender coquetel Molotov, instalar ou lançar explosivos), entre outras condutas.

No início da intervenção federal no Rio, diversos analistas sugeriram que as regras de engajamento da GLO fossem flexibilizadas para facilitar a ação das tropas.

O interventor Walter Braga Netto afirmou que poderia fazer mudanças nas regras, mas isso não ocorreu até agora.

O UOL apurou com fontes ligadas à intervenção que, apesar de eventuais mudanças, a equipe de intervenção não quer a princípio que as regras sejam equiparadas àquelas em vigor em conflitos armados propriamente ditos. Os interventores preferem que o assunto continue sendo tratado no âmbito da segurança pública.

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