Massacre nos resultados

Fevereiro, 2018

ISTOÉ Dinheiro

Rodrigo Caetano

 

Neste ano, os EUA registram um tiroteio em escolas a cada cinco dias. A situação é insustentável e, em meio ao fogo cruzado, a indústria bélica vislumbra um cenário negativo. Ao menos uma grande fabricante já entrou com pedido de falência

Crédito: AFP Photo / Olivier Douliery

Chega de violência: estudantes protestam em Washington por maior controle na venda de armas (Crédito: AFP Photo / Olivier Douliery)

 

Na quarta-feira 21, Andrew Pollack postou-se de pé em frente ao presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. Ainda de luto pela morte de sua filha Meadow, de 17 anos, no massacre da escola Marjory Stoneman Douglas, em Parkland, Flórida, que aconteceu há duas semanas, Pollack fez um emocionado discurso. “Estamos aqui porque minha filha não tem mais voz”, afirmou, enquanto era amparado por seus outros três filhos. “Ela foi tirada de nós, baleada nove vezes. Estou furioso. Quantas escolas, quantas crianças terão de ser assassinadas?” Sentado em uma cadeira de madeira escura, Trump ouvia impassível. “Eu não posso entrar num avião com uma garrafa d’água, mas um animal pode entrar numa escola e atirar nas nossas crianças”, disse Pollack.

Os seguidos massacres estão provocando feridas na sociedade americana. Ao mesmo tempo, atingem em cheio os resultados das fabricantes de armas. Dois dias antes da matança na Flórida, a Remington, uma das mais tradicionais fabricantes de pistolas e rifles dos EUA, entrou com pedido de recuperação judicial. Acumulando dívidas que ultrapassam US$ 900 milhões, a companhia, um símbolo da cultura armamentista, está sofrendo com a queda nas vendas verificada desde a eleição de Trump. A Remington não é a única com problemas. Em outubro do ano passado, a Sturm Ruger, maior fabricante de pistolas dos EUA, anunciou uma queda de 35% em seu faturamento trimestral. A American Outdoor Brands, dona da marca Smith & Wesson, teve uma queda ainda maior, de 48,1%.

Analistas de mercado estão chamando essa tendência de “Trump slump”, ou o “tombo Trump”, em tradução livre. “As vendas de armas se tornaram extremamente politizadas”, afirmou Robert Spitzer, professor da Universidade Estadual de Nova York e autor de cinco livros sobre o assunto, ao jornal The Guardian. “A compra de uma pistola é um posicionamento.” Essa situação gera uma tendência no mercado que parece irônica: em administrações democratas, sob o risco de um maior controle, as vendas de armas crescem. Com os republicanos, o risco diminui, assim como o desejo por acumular arsenais.

Tiro pela culatra: tradicional fabricante de rifles, a Remington acumula US$ 900 milhões em dívidas (Crédito:AP Photo/Julie Jacobson)

Em apresentação a investidores, realizada em janeiro, a American Outdoor Brands apontou a administração “amigável” ao setor como um fator negativo. A companhia também afirma que os estoques estão em alta devido à cautela dos comerciantes e que a capacidade de produção da indústria supera a demanda. A falta de transparência da indústria bélica dificulta a obtenção de dados consolidados sobre as vendas, que acabam sendo divulgados com até dois anos de atraso. Mas com Trump, um notório defensor do porte de armas, que, no encontro com familiares das vítimas do massacre, chegou a sugerir que a solução para o problema nas escolas seria armar professores e funcionários, o declínio parece estar se acentuando (veja quadro ao final da reportagem).

Outra tendência contribui para a derrocada. O número de pessoas armadas nos EUA vem caindo desde os anos 1970. Há, é verdade, 88 armas no país para cada 100 habitantes. Porém, cerca de 3% da população possuem uma média de 17 armas em casa. São os chamados “superproprietários”, que chegam a deter arsenais de mais de uma centena de pistolas e rifles. A situação é insustentável. O massacre em Parkland, que deixou 17 mortos, foi o sexto tiroteio em escolas neste ano. Considerando que, até o dia da tragédia, o ano letivo computava apenas 30 dias corridos, chega-se ao número de um tiroteio escolar a cada cinco dias. Diariamente, 96 americanos são mortos por armas de fogo. Sete deles são crianças, segundo a Everytown for Gun Safety, entidade sem fins lucrativos que defende o desarmamento. A questão é se essa triste realidade é suficiente para convencer a sociedade a restringir o acesso às armas. “Pessoalmente, sou cético”, afirma Nathan Thompson, pesquisador do Instituto Igarapé, think thank brasileiro focado na área de segurança. “De qualquer modo, o que vimos na Flórida pode representar uma novidade.”

Thompson se refere aos protestos de estudantes por regras mais rígidas de controle de armas, realizado no dia da visita de Pollack à Casa Branca. Paralelamente, o porcentual de americanos favoráveis a um controle maior das armas chegou a 60%, ante 47% há dois anos. Não por acaso, apesar da intenção de armar os professores, Trump indica que está aberto a mudanças. O presidente disse que irá banir os “bump stocks”, dispositivos que transformam um rifle normal em automático. “Um endosso presidencial ajudaria muito”, diz Thompson. “Mas, dado o histórico de reviravoltas em suas posições, é difícil dizer quais são seus planos.” Nesse sentido, cabe voltar à pergunta de Pollack: quantas crianças terão de ser assassinadas?

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