Lei sobre uso de álcool e drogas por menores é vista com cautela por especialistas

O Globo

Janeiro, 2018

RIO – O governador Luiz Fernando Pezão sancionou nesta quarta-feira uma lei que obriga hospitais, clínicas e postos de saúde a notificarem os conselhos tutelares sempre que um menor de idade receber atendimento por embriaguez ou por uso de drogas. A nova lei, no entanto, é vista com cautela por especialistas. Segundo eles, é importante garantir que o estado tenha estrutura para que ações efetivas sejam tomadas após essas notificações, como o acompanhamento da família do jovem e o encaminhamento a programas específicos.

A lei, de autoria da deputada Enfermeira Rejane (PC do B), estabelece que as unidades de saúde também notifiquem os pais ou responsáveis das crianças e adolescentes que receberem atendimento. O descumprimento da medida implica em uma multa de cerca de R$141,2 mil.

— A lei é importante, porque muitos adolescentes chegam ao sistema de saúde numa emergência, em coma alcoólico ou abuso de droga. Mas há questões importantes: o sistema de saúde notifica, mas e depois? Os Conselhos Tutelares muitas vezes não têm pessoas treinadas e nem em número suficiente para fazer o acompanhamento da família e identificar por que o adolescente bebeu demais ou usou droga. Muitas vezes há necessidade de se fazer um acompanhamento psicoterapêutico — analisa a Evelyn Eisenstein, professora da Uerj e membro do Núcleo de Estudos da Saúde do Adolescente (Nesa).

Na opinião de Ana Paula Pellegrino, pesquisadora do Instituto Igarapé, que realiza pesquisas sobre política de drogas, é importante ter bem definido o caráter da lei para que ela não gere efeitos negativos.

— A pergunta que fica é: quais são as intenções dessa medida e o investimento para apoiar esses adolescentes e famílias preservando os direitos deles? Não adianta reportar os casos sem que haja capacidade de intervenção e apoio de fato. É necessário que a lei seja feita em uma perspectiva de saúde e não de punição, porque existe o risco de gerar uma resistência na busca por ajuda — explica.

Para que a política pública seja eficaz, seria necessário um olhar atento sobre a prevenção.

— No Brasil, qualquer bar vende cerveja sem fiscalização da idade. É importante notificar, mas é necessário antes disso ensinar, fazer campanhas nas escolas para a prevenção de drogas. Temos crianças iniciando consumo de álcool com 9 ou 10 anos. Não estamos falando de adolescentes, mas sim de crianças. O álcool é uma droga psicoativa e causa problemas a crianças e adolescentes em desenvolvimento cerebral, além de problemas hepáticos e cardiovasculares — argumenta Evelyn.

Embora a prevenção seja um consenso entre os estudiosos do tema, ela não é uma realidade no próprio estado onde a lei foi sancionada. Segundo a Secretaria de Estado de Ciência, Tecnologia e Desenvolvimento Social do Rio, não há no âmbito da pasta nenhum programa para a prevenção do uso de álcool e drogas por crianças e adolescentes. O órgão afirma que há intenção de se desenvolver projetos como esses na Fundação para Infância e Adolescência (FIA) assim que “o estado se reestruturar financeiramente”.

Em nota, a FIA comemorou a nova legislação estadual e afirmou que “antes da criação da lei, as unidades de saúde liberavam crianças e adolescentes aos responsáveis, mas não comunicavam ao Conselho Tutelar. Agora, com as notificações chegando aos Conselhos Tutelares, o órgão aplicará as medidas protetivas que forem necessárias.”

A Secretaria de Estado de Saúde afirmou que o acolhimento a usuários de álcool e drogas é uma atribuição municipal, mas que o estado dispõe de aparatos como os Centros de Atenção Psicossocial – Álcool e Drogas (CAPs AD), o Observatório de Gestão e Informação sobre Drogas do Rio de Janeiro e a Subsecretaria de Prevenção à Dependência Química. Nesses locais, segundo a pasta, há ações de prevenção e acolhimento aos usuários e também formação de professores para trabalharem essas questões em sala de aula. Há ainda os Centros de Recursos Integrados de Atendimento ao Adolescente (CRIAAD), que desenvolvem ações com adolescentes em regime de semiliberdade.

Para a juíza aposentada Maria Lúcia Karam, presidente da Associação dos Agentes da Lei Contra a Proibição (Leap), que também atua em questões relacionadas à política de drogas, a lei é ineficaz.

— É mais uma lei inútil, sobretudo, no estado falido do Rio. É mais importante que haja preocupação em promover bons serviços de saúde. Ela pode inibir a própria busca de socorro médico por parte de adolescentes e seus amigos, já que pode levar a um caráter repressivo. A verdadeira preocupação com a saúde certamente não implica em uma espécie de delação, mas em efetivamente prover bons serviços de saúde, acessíveis a todos, e educação no sentido de evitar e prevenir o uso de qualquer droga por crianças e adolescentes.

Já no município do Rio, um dos projetos para prevenir o uso de drogas e álcool por menores de idade é o “Rap — Rede de Adolescentes Promotores”. O programa prevê a contratação e treinamento de 20 jovens por cada área regional de saúde para ampliar o acesso à informação e ao sistema de saúde por meio de atividades culturais, entre outras ações. Há ainda o Bike da Prevenção, na qual agentes atuam na redução de danos entrando em contato com populações vulneráveis, como moradores de rua.

Em relação à efetividade da nova lei, Rodrigo Simas, assessor na área de álcool e drogas na Superintendência de Saúde Mental da prefeitura do Rio, afirma que, para o município, ela não trará muitas mudanças:

— Essa notificação não é algo novo para gente. Já há fichas de notificação no sistema de saúde para reportar essas ocorrências à Secretaria de Saúde. Também é de praxe que a equipe da unidade de saúde entre em contato com os conselhos tutelares em caso envolvendo crianças e adolescentes. Na verdade, é uma lei em cima de outra lei, que é o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

AMPLIAÇÃO DA ESTRUTURA DOS CONSELHOS

O ECA, que foi criado em 1990, prevê a intervenção dos conselhos tutelares em casos onde a integridade de crianças e adolescentes estejam em risco. Enfermeira Rejane, autora da lei, afirma que esse é mais um mecanismo para efetivar as ações previstas pelo Estatuto.

— A lei não é para reprimir o usuário. Temos que criar instrumentos de apoio e de orientação. A lei vai servir para que tenhamos mais estatísticas e condições de criar políticas públicas. Vamos identificar onde isso acontece mais se é nas metrópoles, no interior. Não adianta ter o ECA e não criar mecanismos para que a autoridade pública consiga atuar e criar políticas públicas — defende.

Ela admite que a estrutura atual dos conselhos tutelares é insuficiente e afirma que é necessário expandir o sistema para dar mais eficácia ao cumprimento da lei:

— O conselho tutelar trabalha de forma mais social que um hospital e ele tem que informar à delegacia e ao judiciário sobre esses casos. O número de conselhos tem que aumentar, não pode ficar como está. Existe uma movimentação dentro da Alerj para uma ampliação para trabalhar de forma adequada. A lei é para avançar um pouco mais.

 

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