A Cooperação Sul-Sul em Guiné-Bissau

Qual o seu papel na consolidação da paz?

 

 

Oficiais de Polícia Federal brasileira realizam workshop de capacitação para oficiais da Guiné-Bissau. 14 de novembro de 2017. Foto: AE Abdenur.

 

Adriana Erthal Abdenur, em Bissau

 

 

Novembro, 2017

 

Longe de ser uma novidade, a Cooperação Sul-Sul (CSS) existe há meio século em algumas partes do mundo em desenvolvimento, incluindo países africanos de língua oficial  portuguesa (PALOPs). Vários parceiros da CSS estão presentes na Guiné-Bissau, em diversos setores, que vão desde a agricultura até a saúde pública. Em termos gerais, esses laços de cooperação buscam apoiar a Guiné-Bissau no esforço de superar o subdesenvolvimento e a exclusão social que contribuem para a instabilidade recorrente do país. Tais parceiros tendem a enfatizar que, embora a mediação e a reforma do setor de segurança sejam indispensáveis, abordar apenas as questões de segurança não irá resolver a instabilidade na Guiné-Bissau, sendo necessárias também soluções de longo prazo que possam catalisar mudanças estruturais na economia e que fortaleçam as instituições do Estado.

Vários atores da CSS estão presentes na Guiné-Bissau. O Brasil, o Egito, a Nigéria, a Líbia, Cuba, a Rússia, Timor-Leste e a Palestina todos têm representação diplomática em Bissau. Tanto Cuba quanto a República Popular da China (juntamente com a antiga União Soviética) apoiaram o Partido Africano pela Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), que (sob a liderança de Amílcar Cabral) lutou pela independência de Portugal (1963-1974). Unidades cubanas, por exemplo, combateram ao lado de guerrilheiros e guerrilheiras do PAIGC. Atualmente, Cuba continua oferecendo apoio em saúde pública. Toda uma geração de médicos e outros especialistas em saúde do país foram treinados em Cuba, e professores cubanos dão aulas na Faculdade de Medicina Raúl Dias Arguelles, que tem sua sede em Bissau. Já a cooperação militar, outrora área forte da cooperação cubana com Guiné-Bissau, foi suspensa, mas conversas recentes entre as duas partes buscam reativar esses laços, sobretudo no treinamento militar, além da produção agrícola.

A presença da China, por outro lado, mudou dramaticamente desde o fim da Guerra Fria. Apesar da assistência militar e financeira oferecida ao PAICG durante a guerra da independência, a Guiné-Bissau cortou seus laços oficiais com a República Popular da China em 1990, formalmente reconhecendo Taiwan. Como parte de seu esforço para isolar Taipei internacionalmente, Beijing se esforçou não apenas para reconquistar Bissau (o que logrou em 1998), mas também para garantir que outra virada não acontecesse. A construção do edifício que abriga a Assembleia Nacional, do hospital militar e do novo estádio esportivo foram promovidas como parte de o que Beijing chama de “ajuda amigável e gratuita”.  Mais recentemente, anúncios de investimentos e missões de prospecção de empresas chinesas se intensificaram em torno de projetos de infraestrutura de grande porte, tais como uma barragem hidrelétrica no rio Ceba; um porto de águas profundas em Buba; duas estradas; uma ponte sobre o rio Farin; e, mais recentemente, uma fábrica de biomassa. Alguns dos quais ainda não saíram do papel, ao passo que outros foram anunciados como parte do Forum Macau.

Dada a ausência de interesses econômicos significativos por parte dos atores brasileiros na Guiné-Bissau, a cooperação oficial do Brasil pode ser entendida como um compromisso político mais amplo, no intuito de apoiar a estabilidade e o desenvolvimento no país, sobretudo desde que o Brasil assumiu a presidência da Configuração Especial para Guiné-Bissau da Comissão para a Consolidação da Paz da ONU. Este comprometimento político, juntamente com a inclusão do Atlântico Sul (não apenas o espaço marítimo, mas também os estados atlânticos da África) no conceito brasileiro de entorno estratégico, fomentou motiva a cooperação oficial com a Guiné-Bissau. Algumas dessas iniciativas se concentram no desenvolvimento, tais como um centro de treinamento profissional e vocacional, resultado de uma parceria com o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI), entidade sem fins lucrativos que opera, no Brasil e no exterior, uma rede de escolas profissionais de nível secundário sem fins lucrativos, mantidas pela Confederação Nacional da Indústria (CNI).

Outras iniciativas de CSS na Guiné-Bissau estão mais diretamente relacionadas à área da segurança, como a construção e implementação pelo Brasil do Centro de Formação das Forças de Segurança da Guiné-Bissau. Através desse acordo–originalmente, um projeto de cooperação trilateral com apoio do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC)–a Polícia Federal brasileira, em parceria com a Agência Brasileira de Cooperação (ABC), promove o fortalecimento de capacidades de quatro das cinco forças policiais Bissau-guineenses, em áreas como operações, doutrina e combate ao crime organizado. A iniciativa está relacionada a esforços mais amplos para reformar as forças de segurança da Guiné-Bissau.

Além desses acordos de cooperação bilateral, organizações regionais e trans-regionais que também seguem uma lógica Sul-Sul se tornaram importantes atores em Bissau. No momento, a Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO) é o ator subregional mais visível, atuando sobretudo nos esforços para impulsionar a estabilidade política no país. Através da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP), os países lusófonos dentro e fora da África oferecem apoio político e cooperação técnica à Guiné-Bissau (embora essa cooperação tenha sido negativamente afetada pelo golpe de Estado de abril de 2012).

Como a assistência do Norte, a CSS não deve ser tida como algo que contribui automaticamente para a consolidação da paz. Os projetos de infraestrutura em larga escala podem, de fato, ajudar a conectar as áreas mais remotas do país e melhorar o transporte e as comunicações; entretanto, dependendo da sua implementação, podem exacerbar em vez de mitigar a exclusão social. Em alguns casos, a CSS oficial pode coexistir com presenças menos desejáveis, tais como os barcos chineses acusados de pesca predatória nas águas guineenses, inclusive em torno do protegido arquipélago Bijagós—uma área protegida, classificada pela UNESCO em 1996 como reserva de biosfera.

Já a cooperação técnica, como a oferecida pelo Brasil, depende não apenas da eficácia das respostas, mas também da sua continuidade, que enfrenta desafios não só devido ao cenário de crise interna no Brasil, que levou a cortes orçamentários e produz novas incertezas políticas, como também ao impasse político em torno da implementação do Acordo Conakri na Guiné-Bissau.

Enquanto as principais organizações internacionais, incluindo a ONU e as instituições de Bretton Woods, trabalham para enfrentar as causas históricas e imediatas da instabilidade recorrente em Guiné-Bissau–desde ambiguidades constitucionais que impedem a resolução efetiva de disputas políticas até uma economia que depende excessivamente do cultivo do caju–a CSS geralmente fica de fora do mapa cognitivo de atores locais e externos que abordam o desafio de uma paz duradoura na Guiné-Bissau. No entanto, a CSS também deve ser considerada como potencial fonte de inovação na promoção da estabilidade e na prevenção de conflitos no país. Embora a continuidade do financiamento dessas iniciativas seja um desafio, alguns parceiros de CSS–em particular Cuba e Brasil–têm se mostrado abertos a novos acordos de cooperação triangular. As novas parcerias podem não só ajudar na obtenção de recursos, mas também na criação de uma maior complementaridade entre diferentes vertentes de cooperação que até agora tendem a ocorrer em paralelo.

 

Adriana Erthal Abdenur é fellow do Instituto Igarapé.

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