Combatentes, vítimas e ativistas: As mulheres e a Batalha de Mossul

Publicado originalmente em Le Monde Diplomatique, por Adriana Erthal Abdenur e Nathalia Quintiliano15 de agosto de 2017

Desde combatentes, líderes, ativistas para a paz, trabalhadoras humanitárias, representantes de governos, jornalistas e fotógrafas, as mulheres assumem papéis múltiplos e desempenham variadas funções em cenários de guerra

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Combatentes curdas, outubro de 2016

Após diversas tentativas, em julho de 2016 uma ofensiva liderada pelo exército iraquiano e pelas forças peshmerga conseguiu retomar Mossul. Durante três anos, a cidade havia sido controlada pelo auto-denominado Estado Islâmico do Iraque e Levante, também conhecido como Daesh . A vitória do Iraque, das forças do Curdistão iraquiano e seus aliados—que contaram com o apoio da coalizão americana—levara oito meses, tornando-se a operação militar do mundo nos últimos quinze anos. Em meio aos bombardeios e intenso combate urbano, surgiram relatos de que, acuado, o grupo extremista mobilizara ao menos 32 mulheres-bomba (ou, possivelmente, alguns homens com trajes femininos) em uma tentativa desesperada de repelir o Exército de Ouro, como ficaram conhecidas as tropas iraquianas. Apesar de não ser novidade, o fenômeno da mulher como agente de violência parece se chocar com a narrativa superficial, porém amplamente divulgada, de que as mulheres são exclusivamente vítimas dos conflitos armados.

Apesar de as mulheres e meninas serem mais vulneráveis em situações de conflito, elas desempenham variados papéis em cenários de guerra: desde combatentes, líderes, ativistas para a paz, trabalhadoras humanitárias, representantes de governos, jornalistas e fotógrafas. Algumas mulheres assumem papéis múltiplos, ao mesmo tempo ou em sucessão; por exemplo, uma ex-combatente pode participar de negociações da paz e, logo em seguida, dedicar-se a projetos de reconstrução. Essa multiplicidade é refletida, embora imperfeitamente, nos arcabouços normativos promovidos pelas Nações Unidas (ONU). Em outubro de 2000, a ONU adotou a Resolução 1325, reafirmando a vital importância da participação das mulheres na resolução e prevenção de conflitos, bem como na promoção e manutenção da paz. A resolução afirma que, para que uma paz duradoura e justa seja alcançada, uma perspectiva de gênero precisa ser adotada em todas as camadas do processo de construção de paz, o que parece bastante pertinente uma vez que as mulheres participam também de todas as dimensões de um conflito—como no caso de Mossul.

Segundo análises estatísticas, a inclusão de mulheres em posições de tomada de decisão diminui a probabilidade de um país entrar em guerra. Outras pesquisas mostram ainda que, quanto mais mulheres são envolvidas na política, menor a possibilidade de guerra civil. Diminui também a probabilidade de uso da violência para resolução de crises internacionais. No entanto, a aplicação da resolução 1325 ainda é lenta; dificilmente, em uma situação de conflito ou pós-conflito, as partes garantem sistemas de participação e proteção às mulheres, já que as partes beligerantes são geralmente dominadas por homens e predominam seus interesses na reconstrução do Estado.

No caso de Mossul, o ex-enclave do Daesh se encontra em um momento crítico para assegurar a inclusão de mulheres (e, mais amplamente, de uma perspectiva de gênero) no processo de paz. A cidade, de maioria sunita, é situada em uma região semi-autônoma, parte do Curdistão iraquiano, ao norte do Iraque. Os curdos formam o quarto maior grupo étnico do Oriente Médio (após os árabes, persas e turcos) mas nunca tiveram oficialmente seu próprio Estado. A população soma entre 25 e 35 milhões, espalhada pelas regiões montanhosas do Iraque, Síria, Turquia, Irã e Armênia, nas planícies da histórica Mesopotâmia. Há uma grande diversidade religiosa na região, apesar de os muçulmanos sunitas constituírem a maioria. Nos últimos anos, as forças armadas do Curdistão iraquiano, lideradas pelos peshmerga (expressão curda cujo significado é “aqueles que enfrentam a morte”), ficaram conhecidas pelas constantes batalhas contra o Daesh em locais estratégicos, tais como Mossul e Kobane.

Mulheres e meninas no campo de Zelikan, província de Nínive. © EU/ECHO/Peter Biro.

Mulheres e meninas no campo de Zelikan, província de Nínive. © EU/ECHO/Peter Biro.

Na esmagadora maioria das imagens que têm sido divulgadas durante e após a tomada de Mossul, as mulheres aparecem de duas formas. Em boa parte das fotografias, vídeos e relatos que surgem na mídia, elas são apresentadas como vítimas desproporcionais do Daesh e da violência da tomada em si. Surgem também imagens de combatentes pershmerga, sobretudo as integrantes da brigada exclusivamente feminina (parte da Unidade Zeravani) que luta nas linhas de frente contra o Daesh. Jovens e motivadas a combater o grupo extremista e lutar pela autonomia do Curdistão, as integrantes do batalhão feminino portam as mesmas armas que seus colegas homens e, como eles, matam e são mortas durante o combate. As mulheres peshmerga com frequência são romantizadas pela mídia ocidental, cujo olhar orientalista não apenas sensacionaliza a beleza feminina curda (por exemplo comparando algumas combatentes a celebridades de Hollywood), mas também trata de forma caricata a sua atuação no combate.

A comunidade peshmerga promove a ideia de igualdade entre combatentes femininas e masculinos. No entanto, a realidade das peshmerga, e das mulheres no Curdistão mais amplamente, parece longe deste ideal de paridade apesar de alguns avanços ao longo do século XXII. A violência doméstica, especialmente contra a mulher, já era um grande desafio para as curdas até mesmo antes da expansão do Daesh e a imposição de uma interpretação extremista da Sharia Islâmica em partes do território curdo. O índice de suicídio entre mulheres curdas, particularmente por meio da auto-imolação, é extremamente elevado, e a violência de gênero ainda é recorrente. Em algumas regiões mais rurais e remotas, a prática da mutilação genital feminina é mantida.

O Curdistão iraquiano possui leis bastante avançadas no que diz respeito à proteção de mulheres. A Lei número 8, promulgada em 2011, proíbe atividades abusivas como o casamento forçado, a violência doméstica e o casamento infantil—algo raro na região. Em apenas um mês, mais de 3.000 casos foram apresentados às côrtes do Curdistão iraquiano. No entanto, fazer valer a lei permanece o maior obstáculo para que o Curdistão iraquiano alcance a paridade de gênero. Um levantamento conduzido pela Iniciativa Iraqi Civil Society mostra que a maioria das mulheres desconhece não apenas os detalhes mas também a existência da Lei 8. Outro desafio é a escassez de juízes (principalmente juízas) e tribunais especializados, o que torna os processos lentos. Além disso, a identidade da vitima é raramente confidencial. Muitas mulheres afirmam que, embora avançada, a lei está muito distante da cultura e da sociedade.

Em junho de 2014, quando o Daesh invadiu Mossul e algumas cidades próximas, não houve muito tempo para que os habitantes pudessem fugir. Segundo dados do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), 500.000 pessoas abandonaram suas casas. Em pouco tempo, a província de Nínive já estava sitiada. O Daesh apresentou aos habitantes sunitas da região um novo Código de Conduta. Rapidamente, as mulheres que lá viviam se viram obrigadas a seguir regras muito diferentes das que estavam acostumadas: o que antes era uma cidade de população muito diversa se tornava uma ditadura extrema religiosa. As mulheres eram obrigadas a cobrir-se totalmente nos espaços públicos, e com o tempo nem mesmo as mãos podiam ser vistas.

Punições severas passaram a ser aplicadas àquelas que não seguissem rigorosamente as novas regras. Uma mulher foi punida com 21 chibatadas por levantar o khimar, vestimenta que cobria olhos e a boca, para conseguir comer. A Brigada Al-Khansaa, uma espécie de grupo vigilante da moral composta pelas esposas dos combatentes do Daesh, patrulhava as ruas de Mossul, impondo as regras com punhos de ferro. Ferramentas de tortura eram utilizadas para punir meninas e mulheres que, mesmo por descuido, desviassem das normas estritas de vestimenta e conduta. Uma criança de dez anos teve seu pulso mordido por uma das policiais e não resistiu aos ferimentos, sangrando até a morte na presença de sua mãe. Uma outra mulher foi detida porque uma de suas meias estava rasgada, mostrando alguns centímetros de seu tornozelo. A recomendação geral para as “mulheres virtuosas” era que ficassem em casa, saindo às ruas somente quando fosse extremamente necessário. Mulheres e meninas foram proibidas de frequentar escolas.

A possibilidade de se alinhar às políticas extremistas do Daesh, no entanto, não foi estendida às minorias religiosas. Os xiitas que não fugiram foram imediatamente executados. Os yazidi— uma etnia curda que se concentra em Nínive e que segue o yazidismo, uma religião com raízes nas antigas religiões da Mesopotâmia, combinando aspectos do Zoroastrismo, Islã, Cristianismo e Judaísmo—tiveram que entregar todas as suas posses e se converter para não serem executados. O genocídio do povo yazidi, com o objetivo de “purificar” a região, chamou a atenção da mídia internacional principalmente pelo tratamento dado às mulheres: quando as forças do Daesh conquistaram Sinjar, cidade em Nínive com população predominantemente yazidi, meninas e mulheres foram separadas de suas famílias em um plano pré-estabelecido de estupro institucionalizado. As famílias yazidi tiveram que entregar seu dinheiro, joias, celulares, armas, e também suas mulheres e meninas acima de oito anos, que mais tarde se tornariam escravas sexuais. O plano do Daesh para essas meninas era que, mais adiante, teriam filhos que serviriam aos interesses do grupo. Elas sofreram estupros constantes, e muitas foram vendidas ou enviadas para campos de treinamento onde sofreram tortura contínua. Muitos meninos foram encaminhados para esses mesmos campos onde se tornariam crianças-soldado. Estima-se que mais de 6.300 mulheres e meninas yazidi tenham sido sequestradas pelo Daesh para tais propósitos. Algumas que escaparam a essa sorte integraram a Brigada do Sul, composta exclusivamente de combatentes yazidi que lutam contra o Daesh. Após a retomada de Mossul, as yazidis recuperaram sua liberdade mas encontram-se severamente traumatizadas.

Em 2014, quando os peshmerga recuaram de Nínive durante a batalha com o Daesh, muitos yazidis se sentiram abandonados e largados à sorte. Alguns conseguiram escapar para as montanhas áridas de Sinjar, onde sobreviveram em condições desumanas. Milhares foram evacuados pelo Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), e pela Unidade de Proteção Popular (YPG) do Curdistão sírio. O episódio causou tensão e desconfiança por parte dos Yazidi para com os peshmerga.

Após a vitória do Exército de Ouro em Mossul—que foi quase totalmente destruída—e a retirada do que restou do Daesh (enfraquecido, mas ainda representando uma ameaça), um comitê de mulheres parlamentares começou a planejar a reconstituição do tecido social da região. Após três anos de ocupação pelo Daesh, um clima de tensão e desconfiança ainda paira entre vizinhos e antigos amigos. Alguns residentes foram acusados, por medo ou alinhamento, de repassar informações ao Daesh. A sociedade mudou profundamente. Um dos temas propostos pelo grupo de mulheres é a cidadania e integração das crianças que nasceram por consequência de estupros. Além disso, elas esperam criar uma espécie de Juizado de Pequenas Causas para incentivar a reconciliação entre vizinhos. A importância desse projeto é inestimável, uma vez que promove a coesão social de uma comunidade que se despedaçou por conta da invasão. O dano social pode ser mais difícil de reparar do que a destruição material, mas talvez seja essa a única saída para que a vida retorne ao normal, ou que melhorias possam ser alcançadas.

O comitê—composto exclusivamente por mulheres—traz em sua própria estrutura os ideais de diálogo e diversidade que pretende disseminar. As participantes são representantes de diferentes grupos como curdos, turcomenos, e árabes sunitas e xiitas. e facilita a comunicação. Segundo uma das participantes, “mulheres são mais empáticas, as pessoas se sentem mais a vontade de conversar com a gente. Assim como o Daesh usou as mulheres para desintegrar a sociedade, vamos usar as mulheres para uni-la novamente.”

Um censo planejado pelo comitê passará de domicílio em domicílio para verificar os danos causados pelo Daesh e avaliar como as perdas podem ser restituídas. Antigos estudantes de direito também participam do projeto.

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Combatente yazidi na Ofensiva de Mossul-Shingal, março de 2016

Mossul foi reconquistada, mas seus residentes herdaram uma cidade em ruínas com a economia falida. Toda a infraestrutura, os prédios governamentais, estradas e universidades sofreram danos que provavelmente levarão muito tempo e recursos para reconstruir. A ONU estima que mais de três milhões de pessoas precisarão de ajuda humanitária nos próximos três meses, e o custo da reconstrução foi calculada em bilhões de dólares. Há também um enorme desafio de reintegração social: muitas crianças vinham frequentando as escolas comandadas pelo Daesh, por exemplo. Além disso, o ACNUR construiu 12 campos de refugiados apenas para atender Mossul, e todos estão lotados.

A Mesquita Al-Nuri, datada do século XII e utilizada por Abu Bakr al-Baghdadi—o líder supremo do Daesh—para declarar seu califado em 2014, foi o símbolo de um momento triste da história mundial, sobretudo para as mulheres da região. Agora, a Grande Mesquita encontra-se em ruínas. Apesar da derrota em Mossul, o Daesh ainda pode operar. O receio de que prisioneiros consigam escapar ou mesmo comprar sua liberdade parece real: muitos dos que colaboraram com o grupo, principalmente como não-combatentes, andam livremente pela cidade. Enquanto os extremistas ainda estavam no poder, muitos colaboradores prosperaram fazendo pequenos trabalhos para o Daesh. Após a retomada de Mossul, alguns foram presos e, logo em seguida, liberados por falta de provas. Algumas comunidade se recusam a retornar aos seus vilarejos enquanto os colaboradores estiverem soltos, enquanto outras expulsaram os que supostamente ajudaram o grupo para campos de deslocados internos. Muitos estão sendo executados extra-judicialmente pela própria população.

Os danos em Mossul são incalculáveis, e em sua maioria, irrecuperáveis. Os traumas e a perda humana podem levar muitos anos para que a população consiga voltar à normalidade, além do constante receio de que os extremistas possam retornar. A pergunta que fica no ar é: quem vai dominar aquele território? O governo central de Bagdá ou o Governo Regional do Curdistão, com sede em Arbil? Para as minorias, parece claro haver uma tentativa de conseguir mais autonomia. Um alinhamento yazidi somente à Arbil parece não satisfazer o povo, que se sentiu traído pelos peshmerga, enquanto os xiitas parecem alinhar-se à Bagdá. De modo geral, há pouca confiança no governo. Até se alcançar um nível de unidade nacional que mantenha a estabilidade do Iraque, há um longo e não necessariamente pacífico caminho pela frente. Após a tomada de Mossul, antigas rivalidades entre grupos curdos se acirraram. Nas últimas semanas, combatentes peshmerga e yazidis leais ao PKK se confrontaram nas montanhas de Sinjar, deixando a situação ainda mais incerta.

A única certeza é a que, nos esforços de recuperação, assim como antes e durante o conflito com o Daesh, as mulheres da região continuarão desempenhando múltiplos papéis, tanto nos espaços públicos quanto na esfera privada. Quanto mais elas estiverem envolvidas, mais chances tem a região de prosperar em paz.

Adriana Erthal Abdenur é fellow do Instituto Igarapé e pesquisadora com Bolsa de Pós-Doutorado Sênior do CNPq junto ao Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas (FGV-Rio).

Nathalia Quintiliano é Oficial das Nações Unidas e atualmente trabalha para o Mecanismo de Monitoramento do embargo de armas e munições imposto aos grupos de oposição no Iêmen. Nathalia atua também como ponto focal da UNOPS Djibouti para a Força-tarefa para a Prevenção de Abuso e Assédio Sexual no país.”


[1] Daesh é a sigla árabe de “al-Daula al-Islamiya al-Iraq wa Sham” (Estado Islâmico do Iraque e Levante).

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