Brasil precisa cumprir e não desmontar a legislação sobre armas de fogo

Jair Bolsonaro está fragilizando controle de armas de fogo no país com mais mortes por elas

Por Robert Muggah e Melina Risso

Publicado no Huffpost Brasil

Os brasileiros estão desesperados por mais segurança pública. E existe uma boa razão para isso. Dos 63.800 assassinados em 2017 no País — um recorde —, mais de 40 mil foram cometidos com armas de fogo, a maioria delas fabricada no Brasil. O presidente Jair Bolsonaro crê que pode reduzir o índice de crimes violentos, mas fragilizar as leis de controle de armas de fogo certamente não é o caminho para isso.

O Brasil tem leis bem abrangentes nessa área. Em 2003, o País aprovou o Estatuto do Desarmamento e uma série de restrições para a aquisição de armas. O Estatuto manteve a possibilidade de as pessoas comprarem armas, mas estabeleceu critérios para isso. Além da idade mínima de 25 anos, incluiu a verificação de antecedentes criminais e outros requisitos para a renovação das licenças a cada 5 anos. Porém a legislação nunca foi completamente implementada.

Ao longo da última década, houve uma abordagem fragmentada no controle das armas de fogo. As agências governamentais nunca chegaram a manter um banco de dados de registro completo. As disposições cruciais do Estatuto não foram cumpridas. A Polícia Federal, a Polícia Civil e as Forças Armadas raramente coordenaram esforços para investigar crimes relacionados a armas de fogo, tanto os que aconteciam nas fronteiras como em outros locais do País. O resultado foi que o tráfico e o desvio de armas saíram totalmente do controle.

O Estatuto do Desarmamento foi fortemente atacado desde que virou lei. O presidente eleito, então deputado federal, era um de seus mais ardorosos opositores e um dos líderes da chamada “Bancada da Bala”. Composto por políticos pró-armas de fogo, o grupo financiado pela indústria armamentista brasileira visava a lutar contra as leis de armas de fogo no Brasil. Em 2012, essa bancada propôs o projeto de lei 3722. Seu objetivo é a expansão dramática do acesso às armas, incluindo o acesso ao porte.

Não é surpresa que o presidente Bolsonaro e a Bancada da Bala estejam determinados a enfraquecer o Estatuto e a expandir o acesso às armas e munição. O decreto publicado nesta semana facilita o acesso dos cidadãos às armas de fogo e estende o tempo para renovação da licença. A expectativa é que o presidente também apoie a aprovação do projeto de lei 3722. Seus esforços encontrarão resistência de liberais clássicos, do centro e da esquerda. Mas podem muito bem ter sucesso.

Tomadores de decisão do Brasil deveriam se esforçar para cumprir a legislação já existente. O recém-empossado ministro da Justiça e da Segurança Pública, Sérgio Moro, tem objetivos claros de redução da corrupção, do crime organizado e da violência letal. As evidências mostram que fazer valer a lei de controle de armas pode ajudar nisso. Aumentar o acesso e disponibilidade de armas de fogo seria algo similar a apagar um incêndio com gasolina.

São muitas as razões que explicam por que armar cidadãos é uma má ideia. Mais armas significam mais violência. Estudos mostram que o aumento do porte e posse de armas de fogo se relaciona ao aumento nos homicídios e suicídios. No Brasil, um aumento de 1% na disponibilidade das armas aumenta a taxa de homicídios em 2%. A parcela da população que possui arma de fogo corre um risco 56% superior de ser morta em uma situação de roubo que o restante da população.

Além disso, não há praticamente evidência alguma que sustente a ideia de que expandir o acesso às armas de fogo aumenta a segurança individual. Nos EUA, por exemplo, os estados com legislação de armas de fogo mais branda quanto à compra, propriedade e porte têm níveis maiores de latrocínio, roubo, estupro e assassinato. Não surpreende que a difusão de armas de fogo nas cidades brasileiras não tenha qualquer efeito empírico na redução do crime à propriedade.

A ideia de que um “cidadão de bem com uma arma” melhora a segurança pública no Brasil é uma ficção. Essa visão é sustentada por anedotas sensacionalistas e não por qualquer estudo científico sério. Leis a respeito de armas de fogo robustas, quando cumpridas, podem ajudar a negar o acesso às armas de fogo a pessoas que não deveriam ter uma. O debate hoje não é sobre se deve ou não haver regras que regulamentem as armas de fogo, mas sim, que abrangência elas devem ter. Este é o mínimo a se pedir dos cidadãos que, afinal de contas, têm o privilégio (e não o direito) de possuir armas de fogo.

Há pelos menos 43.000 razões para que o Brasil faça cumprir a legislação de armas de fogo. O País já tem umas das maiores taxas de homicídio no mundo e conta com o maior número absoluto de mortes por armas de fogo do planeta. Além disso, a maioria dos brasileiros é contra o relaxamento das restrições quanto às armas. Em dezembro de 2018, uma pesquisa Datafolha mostrou que mais de 61% dos brasileiros disseram que ter armas deveria ser proibido. O que surpreende é que 59% das pessoas que votaram no então candidato Bolsonaro se opõem às propostas que facilitam o acesso às armas de fogo.

A violência impõe ainda um fardo econômico enorme a todos os cidadãos. Estimativas conservadoras sugerem um prejuízo de R$ 10 bilhões por ano, ou 0,5% do PIB anual do País.

A violência por armas de fogo é uma imposição caríssima feita aos brasileiros. Leva a mais mortes e ferimentos, tira a força dos serviços públicos, desencoraja investimentos, diminui o valor das propriedades e contribui para a emigração de pessoal qualificado. Propostas para o relaxamento da legislação sobre armas de fogo são um enorme passo para trás no País em que mais se mata no mundo.

 

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