Quatro mitos sobre o “cidadão de bem armado”

Weapons being burnt during the official launch of the Disarmament, Demobilization, Rehabilitation and Reintegration (DDRR) process in Muramvya, Burundi. Burundian military signed up voluntarily to be disarmed under the auspices of United Nations peacekeepers and observers. 2/Dec/2004. Muramvya, Burundi. UN Photo/Martine Perret. www.un.org/av/photo/O Brasil possui o maior número de homicídios perpetrados com o uso de armas de fogo do mundo. Esta situação não é fruto do acaso, mas ocorreu como consequência de inúmeros fatores, entre os quais da corrida armamentista nacional dos anos 80 e 90. Apesar das dificuldades relacionadas à confiabilidade dos bancos de dados e registros, um levantamento feito em 2010 revelou que aproximadamente 17,6 milhões de armas leves circulavam no País, dentre as quais 57% seriam ilegais.

De fato, a proliferação das armas se deu ao mesmo tempo em que se verificou um crescimento acelerado da taxa de homicídio por arma de fogo. Enquanto em 1980 de cada 100 pessoas assassinadas 44 eram vitimadas por armas de fogo, em 2003, nas vésperas da sanção do Estatuto do Desarmamento (ED), esse número já era de 77, diminuindo para 75 nos anos subsequentes. Em países como a Inglaterra e a Espanha tal proporção gira na ordem de 7 e 14 vítimas, respectivamente.

Portanto, a tese do “cidadão de bem armado” como solução para a coibição de crimes já foi experimentada no Brasil. Ao invés de segurança, a sociedade só colheu mais violência, mais crimes e mais tragédias.

Ainda assim, há hoje na Câmara dos Deputados um perigoso movimento para revogar o Estatuto do Desarmamento, que flexibiliza os critérios para a posse e porte de armas de fogo e que, em linhas gerais, possibilita que todo indivíduo com mais de 21 anos de idade (inclusive aqueles que estejam sendo processados judicialmente por homicídios) possa adquirir até seis armas de fogo e portá-las nas vias públicas.

É preciso ressaltar que tal iniciativa vai na contramão do consenso das evidências científicas nacionais e internacionais. Elas mostram que mais armas causam mais crimes. Abaixo apresentamos quatro mitos que vêm sendo usados pelos defensores do fim do Estatuto para legitimar o desatino em curso.

Mito 1: O cidadão armado provê maior segurança à sua família

As pesquisas baseadas em evidências empíricas seguem no sentido oposto. A disponibilidade de armas em casa faz aumentar o risco de suicídio, acidente e homicídio entre os familiares e não inibe a ação do criminoso profissional (que conta com o fator surpresa). Uma boa ilustração desses achados científicos pode ser obtida pela pesquisa do professor David Hemenway, da Universidade de Harvard, que entrevistou cerca de 300 cientistas, autores de artigos nas revistas especializadas em criminologia. O que ele encontrou?

Enquanto 72% dos estudiosos afirmavam que a disponibilidade de armas no domicílio faz aumentar o risco de uma mulher residente ser vítima de homicídio (contra 11% que discordavam), 64% dos especialistas disseram que a arma dentro de casa torna o lugar mais perigoso do que mais seguro (contra 5%). Ainda, 73% dos entrevistados concordaram que a arma não é um instrumento efetivo para a autodefesa, ao passo que 8% discordaram. 

Mito 2: A regulação mais restritiva de acesso às armas de fogo não é importante, uma vez que as armas dos bandidos entram ilegalmente pelas fronteiras.

Ainda que muitas armas entrem ilegalmente no país (sobretudo os fuzis e rifles), pesquisas no Rio de Janeiro e São Paulo mostraram que cerca de 75% das armas utilizadas no crime apreendidas pela polícia são pistolas e revólveres fabricados no Brasil. Uma pesquisa recente do Ministério Público de São Paulo com o Instituto Sou da Paz mostrou que 38% das armas envolvidas em crimes fatais e apreendidas com criminosos, além de serem de procedência nacional, eram armas registradas por brasileiros que haviam sido desviadas para a ilegalidade.

Ou seja, inúmeras vezes, as armas envolvidas nos assassinatos que destruíram famílias foram compradas legalmente por outros cidadãos que pensavam em se defender.

Mito 3: O cidadão de bem armado irá dissuadir o criminoso, fazendo com que o número de crimes e de homicídios diminua

Este é um debate que chamou a atenção de muitos estudiosos nos EUA, sobretudo a partir de 1987, quando uma nova legislação menos restritiva passou a ser implementada em vários estados americanos. Pesquisadores de muitas universidades, incluindo de Harvard e Chicago, acumularam evidências comprovando que a flexibilização do acesso e posse de armas está associada ao aumento de homicídiosroubos e invasões a residências.

Uma das principais razões que associam o aumento do número de mortes à proliferação das armas em circulação é o alto número de mortes ocasionadas por motivos banais, em brigas familiares, entre vizinhos, e no trânsito.

Um estudo feito pelo Conselho Nacional do Ministério Público revelou que, entre 2011 e 2012, 83,03% dos homicídios esclarecidos no Estado de São Paulo foram cometidos por motivos fúteis. Três teses de doutorado – da Puc-Rio, da FGV e da USP – mostraram que a proliferação das armas de fogo faz aumentar os homicídios, mas não tem efeito para fazer diminuir os crimes contra o patrimônio.

Mito 4: O ED não evitou o crescimento da violência armada no Brasil

O número de homicídios, que cresceu 8,4% a cada ano entre 1980 e 2003, pela primeira vez sofreu uma redução nos anos posteriores ao ED. Na média, entre 2004 e 2013 o número de vítimas aumentou num ritmo bem inferior ao que vinha acontecendo anteriormente, de 0,5% a cada ano.

Um estudo da PUC do Rio de Janeiro mostrou que o ED contribuiu para a diminuição de 12% dos homicídios, entre 2004 e 2007. Outro estudo de pesquisadores do IESP/UERJ e do Ipea apresentou evidências de que se o ED não tivesse sido implementado, cerca de 121 mil pessoas teriam morrido a mais entre 2004 e 2014.

O controle responsável das armas de fogo não é uma panaceia para resolver todos os males da insegurança pública no Brasil. A maior efetividade das organizações do sistema de justiça criminal no sentido de reduzir a impunidade, bem como a implementação de uma agenda preventiva focalizada na educação e criação de oportunidades para que as crianças e os jovens de hoje não sejam os criminosos de amanhã são outros elementos cruciais.

Porém, não podemos permitir retrocessos nesta agenda: quanto menos armas de fogo em circulação no País, mais mortes e outros crimes serão evitados.

Por Robert Muggah e Daniel Cerqueira
Artigo de opinião publicado em 12 de fevereiro de 2016
Carta Capital

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