Brasil: Ainda há tempo de assumir seu papel no debate internacional sobre drogas

 

Setembro, 2015

Por Ilona Szabó, diretora-executiva do Instituto Igarapé e coordenadora-executiva do Secretariado da Comissão Global de Políticas sobre Drogas

 

Aproxima-se a data da Sessão Especial da Assembléia Geral das Nações Unidas (UNGASS) sobre política de drogas, marcada para abril do ano que vem. Como geralmente ocorre nas negociações na ONU, espera-se que ao final do encontro seja produzida e aprovada uma resolução, que nesse caso dará um novo norte para o regime internacional de controle de drogas. A chamada versão “zero” desse documento, inclusive, já está sendo preparada, em grupo capitaneado pela delegação egípcia.

A Sessão Especial em questão é fruto de um movimento latino-americano que pede a reforma e a revisão das convenções internacionais sobre narcóticos e do regime que eles sustentam. Previsto para ser revisitado apenas em 2019, todo o arcabouço sobre política de drogas vai ser reavaliado três anos antes do prazo diante da denúncia, por parte de países como México, Colômbia e Guatemala, de que o atual paradigma de guerra às drogas, base da interpretação das atuais convenções, falhou.

Apesar de políticas de repressão duríssimas, assistimos nos últimos anos ao aumento global do consumo de drogas e ao fortalecimento do crime organizado, que hoje comanda o mercado de drogas ilícitas na maioria dos países. E ainda mais grave, as políticas repressivas trouxeram consequências negativas extremas para a América Latina, dentre elas a epidemia de homicídios que torna a região a mais violenta do mundo, uma explosão da população carcerária e inúmeras violações de direitos humanos.

Apesar de compartilhar de muitas das mazelas consequentes da guerra às drogas, o Brasil não acompanhou o movimento por mudanças nas políticas de drogas iniciado por seus vizinhos. Mas deveria acompanhar, ou até mesmo liderar. O País é campeão global no número de homicídios, já figura como o terceiro maior encarcerador do mundo, e suas forças de segurança são responsáveis por gravíssimas violações de direitos humanos em nome da guerra às drogas.

No entanto, até o momento, o País permanece neutro no debate internacional — posição pouco condizente com a histórica e altiva liderança brasileira em temas como o tratamento da AIDS e o combate à desigualdade social, questões que a temática das drogas transversaliza.

Somos exemplo para o sistema ONU e para outras nações quando o assunto é erradicação da fome, adoção de políticas de redução da desigualdade e de acesso a tratamento para o HIV/AIDS. Mas ainda não exploramos nosso potencial em mostrar nossos programas que utilizam o que há de mais inovador na abordagem da redução de danos no tratamento ao usuário problemático de drogas. Esses programas já existem no Brasil, e parecemos não nos orgulhar dessas soluções nacionais, que apesar de ainda precisarem ser aprimoradas, já figuram como boas práticas e trazem novas perspectivas para a complexa questão das drogas.

Mas ainda há tempo de assumirmos alguma medida de liderança no processo. Podemos resgatar importantes valores que norteiam nossa política externa — como a autonomia nacional na formulação de políticas públicas e o respeito aos direitos humanos — para no mínimo defender um debate honesto na UNGASS. Nela, os Estados-Membros reunidos não podem se eximir de discutir a complexa questão das novas experiências nacionais em política de drogas e o quanto podemos flexibilizar o atual quadro das convenções internacionais, de maneira a garantir espaço para que elas se atualizem e aprimorem.

Se esse ponto não for abordado com seriedade, o regime liderado pela ONU corre o risco de tornar-se obsoleto, na medida em que um número crescente de países, diante do diagnóstico de que a atual política não deu certo, for deixando de observar as convenções e começar a desenhar políticas que melhor acomodem suas necessidades nacionais.

Assim, o Brasil tem muito a contribuir ao debate sobre UNGASS quando defende pontos já levantados e debatidos pela Comissão Global de Políticas sobre Drogas, Comissão esta que inclusive nasceu e é gerida aqui no país. Precisamos minimamente defender que:

1. Novas iniciativas e políticas em linha com os objetivos gerais das convenções da ONU e o regime de direitos humanos devem ser respeitadas. É uma tradição brasileira a defesa da autonomia nacional na formulação de políticas públicas, tradição esta que precisa ser reforçada nesse campo. Experiências nacionais brasileiras se beneficiariam de mudanças como a descriminalização do consumo no país.[1]

2. As convenções precisam ser flexíveis o suficiente para garantir a liberdade e a autonomia nacionais na formulação de políticas públicas que experimentem novas formas de controlar substâncias hoje ilícitas, em linha com os objetivos gerais do regime internacional de drogas e o de direitos humanos. Devem permitir inclusive experiências com regulação responsável de drogas, caminho já trilhado por alguns governos estaduais nos EUA e no Uruguai.

3. Uma nova ênfase precisa ser dada a políticas de redução da demanda, por muito tempo preteridas face às de redução da oferta. Não devemos insistir em políticas de redução da oferta que penalizem os elos fracos da corrente, políticas essas que falharam até agora, mas focar de maneira estratégica nos verdadeiros stakeholders do crime organizado, que usam violência para gerir o mercado. É preciso que a redução da oferta seja pautada por políticas de desenvolvimento alternativo.[2]

4. Políticas de defesa sobre o tráfico internacional de drogas devem preconizar o desenvolvimento nas fronteiras e primar pela responsabilidade compartilhada como norte para a cooperação internacional, campo onde o Sistema ONU pode ajudar Estados-Membros a melhor desenhar políticas e trocar informações.

5. O regime internacional de drogas precisa de novas métricas, baseadas nessa nova perspectiva sobre política de drogas, com ênfase na saúde e na redução e prevenção de danos.[3] Medidas antigas indicadas pelo regime de proibição – quantidade de drogas apreendidas, metros quadrados de plantações fumigadas, número de pessoas presas, entre outras, não dão conta de “medir o sucesso” de novas políticas.

6. Políticas de redução de demanda devem ser multidisciplinares, com programas transversais à questão das drogas, primando por uma abordagem holística do indivíduo e da sociedade. Unir políticas de saúde à assistência social, promoção de reinserção e respeito aos direitos humanos. Uma especial atenção deve ser dada a grupos vulneráveis, como jovens, grupos raciais historicamente marginalizados e mulheres. O Brasil deve contribuir para o debate trazendo resultados colhidos de suas experiências nacionais, com programas que diminuem vulnerabilidades de usuários a partir da tríade: trabalho, emprego e moradia.

7. Programas de prevenção do uso de drogas baseados em educação honesta, que busquem informar sobre os riscos das substâncias e que deixem para trás o paradigma de estigmatização do usuário devem ser incentivados. É preciso igualmente incentivar pesquisas para subsidiar tais programas.

8. O tratamento compulsório de usuários de drogas incompatível com os princípios de direitos humanos não deve ser permitido, conforme nossa legislação (10.216/01), que recebeu menção honrosa da Organização Mundial da Saúde (OMS) e serve de modelo para programas mundo afora.

9. A retirada do uso da esfera criminal é não só compatível com o atual arcabouço internacional, como deve ser defendida como diretriz do regime.

10. Critérios objetivos de distinção entre usuários e traficantes são um importante mecanismo à disposição do legislador, que garante maior segurança na aplicação da lei que descriminaliza o uso de drogas. Isso permite maior eficiência no desenho estratégico de políticas de segurança pública, que então podem focar seus esforços no combate ao crime organizado violento. Pesquisas científicas, para levantamento realista de padrões de uso precisam ser incentivadas. Deve-se debater o uso dos critérios que reflitam reais padrões de consumo nacionais, não quantidades de consumo desejáveis.

11. A adoção de penas alternativas para réus primários não-violentos, presos por crimes relacionados a drogas, como forma de combater o super-encarceramento, deve ser incentivada.

12. A pena de morte para crimes relacionados às drogas deve ser sumariamente abolida.

13. Políticas de redução de danos devem ser promovidas internacionalmente, ocupando o centro do regime. Essa promoção pode e deve ser feita em conjunto com a OMS.

14. O regime internacional sobre políticas de drogas deve igualmente voltar-se para a questão da garantia do acesso a remédios controlados, especialmente daqueles derivados de substâncias ilícitas, que tenham uso terapêutico cientificamente comprovado. Essa área tem sido desfavorecida até agora por um foco exclusivo na repressão a drogas consideradas ilícitas.

A janela de oportunidade — o processo preparatório para a UNGASS 2016, que culminará em uma reunião da Comissão de Drogas em dezembro — infelizmente está prestes a se fechar. Agora de fato estamos diante da última oportunidade de gerar um impacto real nesse debate.

Para adotar uma posição realista e responsável neste debate, o Brasil deve seguir a tradição de assumir seus problemas e mostrar suas inovadoras soluções também neste campo. Como em outras áreas, nossos programas poderiam servir de exemplo para outros países.

Esta posta a escolha. Que tomemos o rumo certo dos que reescrevem a história na direção ao respeito pelos direitos humanos, colocando a promoção da saúde, a segurança e o bem-estar da população como as prioridades máximas de novas políticas de drogas mais humanas e eficientes.

[1] Para informações sobre experiências nacionais, ver CARVALHO, I. S. PELLEGRINO, A. P. (Coord.), Política de drogas no Brasil: a mudança já começou. Artigo Estratégico Igarapé, n. 16, mar. 2015. Disponível em: < /pt-br/politicas-de-drogas-no-brasil-a-mudanca-ja-comecou/>.

[2] Para mais informações, ver TOBON, K. A. CARVALHO, I. S. MUGGAH, R. Measurament Matters: designing new metrics for a drug policy that works. Artigo Estratégico Igarapé, n. 12, jan. 2015. Disponível em .

[3] IBID

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