Programa de Pacificação desmorona. E agora?
A crise teve um impacto direto no orçamento da segurança pública, que sofreu cortes drásticos nos últimos dois anos
15/03/2018
Por Robert Muggah e Florencia Balestra
Publicado originalmente em O Globo
Quem mora no Rio de Janeiro está assombrado com o aumento vertiginoso da violência. Quase todos os indicadores mostram um crescimento alarmante da criminalidade. A situação é especialmente preocupante porque acontece após uma redução contundente dos índices, ocorrida entre 2009 e 2015. No momento em que os cariocas estavam se acostumando com uma cidade mais segura, têm o tapete puxado.
Os moradores da cidade têm bons motivos para se preocuparem. Dados divulgados recentemente pelo Instituto de Segurança Pública (ISP) revelam que pelo menos 6.248 pessoas foram vítimas de letalidade violenta (homicídio doloso, latrocínio, homicídio decorrente de intervenção policial e lesão corporal seguida de morte) na cidade entre janeiro e dezembro de 2016, um aumento de 24,7% em relação a 2015. Como sempre, a maioria das vítimas é de homens, pardos e negros, moradores de comunidades de baixa renda. De acordo com o ISP, em termos absolutos, o número foi o maior em seis anos.
Não foi só o índice de letalidade violenta que cresceu. Todos os tipos de crime estão em ascensão no estado. Em 2016, cerca de 208.900 pessoas declararam terem sido vítimas de roubo, o maior número desde que os dados começaram a ser registrados pelo ISP, em 2003. Esse número inclui 127.366 roubos de rua, além de 41.704 veículos e 19.583 telefones celulares — números de 20% a 40% maiores dos que os de 2015. Apesar de as Olimpíadas explicarem em parte esse aumento, os dados são preocupantes.
A deterioração das condições de segurança não deveria ser uma surpresa. O Brasil, e o Rio de Janeiro em particular, está passando por uma crise política e econômica de proporções épicas. A crise teve um impacto direto no orçamento da segurança pública, que sofreu cortes drásticos nos últimos dois anos. Além disso, a reorganização da geopolítica das facções criminosas jogou ainda mais lenha na fogueira.
Mas há um outro elemento nessa equação. O crescimento acentuado nas taxas de criminalidade coincide com o declínio do emblemático programa de pacificação do estado, as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs). Apesar de seus problemas, o programa desempenhou um papel significativo na prevenção e na redução de homicídios desde que foi lançado, em 2008. Estudos estimam que ele pode ter contribuído com 65% da redução no número de homicídios entre 2009 e 2012, além de ter aumentado consideravelmente a sensação de segurança pública.
Um dos principais segredos da pacificação foi o modo pelo qual a estratégia alterou os indicadores de sucesso para parte da polícia. Embora combatido por ativistas — e igualmente por membros da polícia —, o programa recompensou os esforços dedicados à prevenção da violência nos territórios em que as UPPs foram instaladas. A intenção era injetar um novo ethos em uma força policial problemática. Não resolveu as disfunções subjacentes da polícia fluminense — afinal, isso demandaria mudanças estruturais —, mas foi, durante um período, o programa de policiamento mais eficiente da história do Rio.
Com a crise econômica, o programa de pacificação iniciou seu calvário. O orçamento para a segurança pública foi reduzido em 32% em 2015, o que levou a uma paralisia. O sistema de incentivos foi cortado, e os policiais voltaram a receber salários precários. Com o aumento da violência em áreas previamente “pacificadas”, começaram as críticas. Muitos acadêmicos que antes apoiavam o programa agora comemoram o seu fim, mas poucas soluções alternativas são apresentadas.
A segurança pública não pode ser reduzida a um programa ou a um órgão específico. A construção de soluções é responsabilidade da sociedade como um todo. Mais uma vez, no entanto, o Rio de Janeiro está cometendo o erro de descartar as coisas boas junto com as ruins. Mais uma vez, a polarização ideológica está passando por cima do pragmatismo. E, mais uma vez, infelizmente, milhares de pessoas que poderiam continuar vivendo suas vidas estão sendo condenadas à morte. É evidente que o programa de pacificação está se desmoronando; a questão é: o que vamos fazer a respeito disso?
Robert Muggah é diretor de pesquisa do Instituto Igarapé, e Florencia Balestra é pesquisadora no Instituto Igarapé
O artigo foi publicado incompleto na versão impressa