Por que os homicídios voltaram a subir no Rio após 7 anos

Nexo

Maio, 2017

Entre 2007 e 2014, a cidade do Rio de Janeiro viveu um dos ciclos mais duradouros de queda de sua taxa de homicídios. Ela caiu para menos da metade: foi de 54,3 para cada 100 mil habitantes para 24 para cada 100 mil habitantes, revertendo uma alta que se iniciou no final dos anos 90 e se manteve por quase uma década. Entre os pontos destacados por especialistas ouvidos pelo Nexo para explicar a melhora está a implementação das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora) em áreas controladas pelo tráfico de drogas, a adoção de um sistema de metas que remunerava os membros de forças policiais capazes de diminuir o número de homicídios nas áreas sob sua responsabilidade e a crítica, na cúpula da segurança pública, à prática do “tiro, porrada e bomba”. O resultado dessas políticas está sendo, no entanto, colocado à prova. Após uma ligeira alta em 2015, as taxas de homicídio da cidade cresceram com força em 2016, quando atingiram a marca de 29,3 mortos para cada 100 mil habitantes — um número pior do que o de cinco anos antes.
O início de 2017 não traz sinais de melhora. No primeiro trimestre de 2017, a taxa de homicídios aumentou 26% em comparação com o mesmo período de 2016. Os principais afetados são os de sempre: a população negra e pobre, em particular de homens jovens. A ação policial contribui para o quadro. Em comparação ao mesmo mês de 2016, houve em março uma alta de 96,7% nos chamados “autos de resistência”, quando a polícia mata alguém, em tese, como último recurso para se defender. A crise financeira do Estado, problemas na manutenção de políticas públicas e disputas entre grupos criminosos estão entre os pontos que contribuem para o retrocesso. Segurança pública é uma competência estadual, embora as políticas sejam implementadas de modo diferente e tenham resultados distintos entre os municípios. Menos dinheiro do Estado significa menos investimento na segurança das cidades. O Nexo conversou com especialistas em segurança pública para entender as principais causas para o atual fenômeno, que já está sendo retratado como uma nova e aguda crise na segurança pública fluminense. Eles concordam nas avaliações sobre quatro pontos:
1 – Crise financeira e institucional
Além da queda de arrecadação com a desaceleração econômica em geral, o Estado do Rio de Janeiro é afetado também pela baixa do preço do petróleo, que diminuiu o valor que recebe por royalties. “Isso traz um cenário em que de repente não dá para manter a folha de pagamento”, afirma Silvia Ramos, coordenadora do Cesec (Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Candido Mendes). Em março de 2016, o então secretário de Segurança Pública, José Mariano Beltrame, anunciou que R$ 2 bilhões seriam cortados da pasta, um valor equivalente a 35% do orçamento previsto para aquele ano. Mais de cem funcionários foram demitidos e houve cortes em viaturas, despesas de telefonia e manutenção de instalações da secretaria. Segundo dados da Secretaria da Fazenda, em maio de 2017 o Estado ainda deve a profissionais da Segurança Pública o 13° salário de 2016, os bônus relacionados ao sistema de metas e o pagamento do Regime Adicional de Serviço da Olimpíada, em que agentes receberam para trabalhar em suas horas de folga durante os jogos na capital. O atual cenário levou policiais civis a paralisarem parcialmente suas atividades entre janeiro e abril de 2017. A crise fez com que o secretário José Mariano Beltrame deixasse o seu cargo no final de 2016. Ele assumira em 2007 e era o principal nome associado às políticas que haviam contribuído para a queda das taxas de homicídios no Estado como um todo, mas especialmente na capital. Beltrame também representava um discurso contrário ao uso excessivo da força e se mostrava preocupado com a diminuição das mortes violentas cometidas por policiais. Sua saída é representativa dos problemas políticos e financeiros pelos quais programas implementados há cerca de uma década passam. “Se tem uma crise e falta de recursos, tem desmantelamento de políticas públicas efetivadas”, afirma Luciane Patrício, professora do departamento de segurança pública da Universidade Federal Fluminense.
2 – Enfraquecimento da política das UPPs
Implantadas na gestão de Beltrame a partir de 2008, as Unidades de Polícia Pacificadora buscavam realizar policiamento intensivo em áreas de conflito, estabelecendo laços com a população local. Originalmente, se opunham à imagem de uma polícia truculenta que intervém pontualmente com “tiro, porrada e bomba”. Em entrevista concedida em junho de 2016 ao Nexo, o professor da Universidade de Chicago Benjamim Lessing afirmou que o sucesso inicial com as UPPs fez com que elas crescessem rápido a partir de 2010. Se até aquele ano havia 14 unidades, em 2014 o número chegou a 38. O mesmo comprometimento e investimento não foram mantidos e não houve uma política capaz de mudar de fato a cultura policial. “No início, o secretário de Segurança conhecia e se encontrava pessoalmente com todos os comandantes envolvidos. Com o tempo, mais de 15% ou 20% dos policiais do Rio de Janeiro eram da UPP. Mas não é que o governo tenha dito: ‘vamos construir uma nova polícia’. Era apenas uma coisa crescendo, e crescendo muito rápido. Com o tempo, cresceu também a corrupção e a violência dentro das próprias UPPs”, afirmou Lessing. Em entrevista coletiva no início de maio de 2017, o atual secretário de Segurança Pública, Roberto Sá, disse que considera o programa “ousado demais”.
Para o coronel Robson Rodrigues, antropólogo e consultor do Instituto Igarapé, assim como houve falha em manter as boas práticas nas UPPs, houve fracasso em modernizar a Polícia Militar. “Houve muita vontade política com relação à UPP, mas nenhuma com relação à Polícia”, afirma. A política das UPPs sofreu também com a oposição interna da PM assim que ocorreram os primeiros problemas, avalia Silvia Ramos. “Houve uma reação do tipo: ‘paciência, a polícia é assim mesmo, nunca vai ficar bem com os moradores’”.
3 – Falta de comando
Para o coronel Robson, a crise gera a percepção de que o Estado tem pouco poder de reação, e isso é um incentivo ao crime. “A criminalidade percebe o momento de tibieza, desorganização e falta de reação do Estado e parte para cima”, afirma. Na opinião de Ramos, a fragilidade não é apenas de origem econômica, mas política, à medida que autoridades importantes estão sendo questionadas pela Justiça. Por exemplo: Sergio Cabral (PMDB), que governou o Estado de 2007 a 2014, foi preso preventivamente em novembro de 2016 e deve ser julgado sob acusação de comandar um esquema de desvio de dinheiro público e favorecimento de empresas em contratos públicos. Seu sucessor e apadrinhado, Luiz Fernando Pezão (PMDB), é investigado pela polícia e é alvo de um processo na Justiça Eleitoral que pode custar seu mandato. A fragilidade econômica da Secretaria de Segurança Pública também gera problemas internos. Segundo Ramos, ela faz com que o comando tenha menos autoridade para fazer críticas públicas a policiais que cometem abusos e haja menos disposição para exigir publicamente um comportamento mais comedido. “Policiais militares executaram dois homens que estavam rendidos no chão e não houve uma declaração oficial condenando aquilo. Sentimos que é como se o comando da Polícia Militar tivesse um pouco de medo de fazer críticas quando precisa dizer que policiais são heróis e estão se sacrificando por trabalharem sem receber”, afirma. Em sua opinião, a falta de um controle firme dos abusos alimenta a escalada da violência.
4 – Recuo na política de metas
Em 2009, a polícia do Rio de Janeiro instituiu o Sistema Integrado de Metas, que premia as unidades operacionais das Polícias Militar e Civil capazes de diminuir a criminalidade nas áreas sob sua responsabilidade. Segundo Silvia Ramos, “todo mundo avalia que as gratificações foram muito fortes no sentido de que policiais passaram a trabalhar mais pensando nos resultados do que trocando tiro ao léu”. Entre os pontos fortes da política está o fato de que toda a tropa, e não só o comando, era premiada, avalia Luciane Patrício. Outro ponto positivo foi incluir a queda da letalidade policial como um objetivo a ser perseguido. “No Rio de Janeiro, já tivemos a ‘premiação faroeste’, ou seja, premiava-se a morte. No Sistema Integrado de Metas, quanto menos mortes, melhor. Essa é uma mensagem política bem importante para reduzir a letalidade da ação da polícia”, afirma. Sem verbas, o programa está suspenso desde 2015.
5 – Disputa territorial
Silvia Ramos ainda agrega um último fenômeno que pode estar ligado à atual alta de homicídios. Segundo ela, o Rio de Janeiro passa por um aumento da disputa territorial entre grupos criminosos. Ramos avalia que essa disputa foi desencadeada pela retirada de parte dos reforços das Forças Armadas e da Força Nacional da cidade após o fim da Olimpíada. “É como se os criminosos quisessem definir rápido os poderes de mando em algumas áreas”, afirma. Como indício, ela cita a guerra do tráfico na comunidade Cidade Alta, na Zona Norte do Rio de Janeiro. Segundo o jornal “Extra”, a Polícia Militar prendeu 40 pessoas e apreendeu 32 fuzis e três pistolas em uma tentativa de conter uma disputa entre grupos rivais. “Essa cena de um monte de gente presa e um monte de fuzil no chão não aparece nos indicadores, mas é um episódio eloquente de que há uma mudança no cenário, com uma disposição por disputa de território”, diz.

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