Especialista alerta para perigo de inteligência artificial
27 de Novembro, 2016
A internet, que nasceu com a promessa de democratizar as relações de criação de conteúdo e consumo, foi capturada por um número restrito de gigantes – como Google, Microsoft e mesmo Uber e Airbnb – que avançam agendas potencialmente perigosas como a inteligências artificial, disse Ricardo Abramovay, professor da FEA-USP e estudioso da economia compartilhada. Para o especialista, a IA é um problema tão sério quanto o aquecimento global, com o agravante de não haver nenhum órgão global que o esteja debatendo.
— Todas essas empresas de internet estão preparando a chegada da inteligência artificial, e isso vai ser muito rápido. Isso pode ser tão perigoso quanto as mudanças climáticas. No caso delas, porém, há pelo menos uma organização internacional que está olhando isso. No da IA, é cada um por si. O perigo que temos diante disso é imenso, e não se trata apenas de uma questão de governo. Deve ir muito além — afirmou ao GLOBO, após palestra na primeira edição do Fórum do Amanhã, que reuniu intelectuais e especialistas até este sábado em Tiradentes (MG) para discutir o futuro do desenvolvimento brasileiro.
Abramovay, autor de “Muito além da economia verde”, disse que concorda com Gerd Leonhard, que defendeu no livro “Technology vs Humanity” a formação de um conselho global de ética digital para tratar da inteligência artificial. O objetivo é afastar a sujeição dos seres humanos a um conjunto de proposições originárias nas máquinas nas quais não terão qualquer controle. A ideia reforça as posições de influenciadores como o empresário Elon Musk (fundador da Tesla e da SpaceX) e o físico Stephen Hawking.
O filósofo e economista brasileiro chamou a atenção para o impacto da IA no emprego. Ele citou estudo da Oxford Martin School, segundo o qual 47% dos empregos nos EUA estão ameaçados de desaparecer por causa da IA. Na China, o número sobe para 65%. Abramovay observou que essa transição impõe a necessidade de uma discussão sobre as desigualdades que vai além das propostas tradicionais.. Para ele, em uma sociedade com escassez de trabalho, a criação de uma renda mínima é uma possibilidade. Na Suíça, que promoveu referendo sobre isso este ano (os eleitores rejeitaram a proposta), um dos argumentos era justamente como o avanço da tecnologia colocava o trabalho em risco.
— É uma sociedade que vai viver sem emprego? E aí, vamos ter que estabelecer renda mínima? Eu acho que sim. Nos EUA, o tema deixou de ser discutido apenas liberais ortodoxos, como o (economista) Milton Friedman, ou pela esquerda. Se não nos articularmos na luta contra a desigualdade nesse contexto, o resultado será trágico. Viveremos um paradoxo: uma sociedade com amplo potencial produtivo mas sem um mecanismo de distribuição que vá além da distribuição de renda tradicional — afirmou.
A concentração de poder nas companhias de tecnologia também capturou e está desvirtuando o conceito de economia colaborativa. Segundo o argumento de Abramovay, sistemas como o Uber são poderes transnacionais que acabam violando o tecido social local. Ele citou o exemplo do Airbnb, afirmando que o site tem sido um vetor de destruição dos centros históricos”, estimulando a desocupação de centros urbanos em favor da exploração hoteleira das residências.
— A economia colaborativa era a promessa, feita até por intelectuais importantes como Jeremy Rifkin, Michel Bauwens e até mesmo Manuel Castells, de conciliar descentralização radical dos processos produtivos com eficiência. Você pode, por exemplo, imprimir um carro na sua casa. O poder que estava concentrado nas empresas voltaria para os cidadãos, os usuários. Na prática, isso não aconteceu, porque houve um processo de captura dessas virtudes da economia digital por um pequeno grupo de corporações que passam a ter um poder absolutamente gigantesco com alguns problemas muito sérios — disse Abramovay.
Segundo ele, dois passos que não resolvem por completo o problema mas são um início necessário são: o fortalecimento do viés realmente descentralizador das tecnologias e a criação do que ele chamou de “dispositivos participativos” para exercer pressão sobre as opções tecnológicas feita pelas gigantes da internet.
FÓRUM DEBATE CIDADES NO ÚLTIMO DIA
O Fórum do Amanhã se encerrou neste sábado, após três dias de discussões sobre os caminhos para o desenvolvimento futuro do Brasil com intelectuais como Domenico de Masi e Eduardo Giannetti. No último dia de debates, a cidade foi um dos temas de discussão. Philip Yang, ex-diplomata fundador do instituto Urbem, afirmou que o processo de ocupação urbana tem sido determinado por assimetrias que geram fricção social e resultam em cidades excludentes.
— Primeiro, o estoque de terras é muito determinado pelo poder privado. Outra assimetria é o da proporção de áreas verdes para áreas cinzas. Em São Paulo, temos três metros quadrados de verde por habitantes, contra a recomendação da ONU de 12 metros quadrados. E há, claro, a grande assimetria entre disponibilidade da área de trabalho e da área de moradia – criticou.
Segundo ele, essas tendências são intensas no Brasil, que se pautou por uma periferização da cidade, com graves implicações sociais.
— O Minha Casa, Minha Vida alocou centenas de bilhões na construção de moradias na periferia. As incorporadoras criam espaços exclusivos, em vez de inclusivos. O mercado gera assim ruas mortas. A tendência de urbanização do Brasil é de separação, de segregação espacial — observou. — A raiz grega da palavra “idiota” é a incapacidade de conviver com a diferença. Ou seja, se não mudarmos a forma de ocupação urbana, nós vamos caminhar para uma civilização de idiotas.
Ele defendeu a discussão das cidades seja apropriada por todos:
— Cidade é uma coisa séria demais para ser deixada apenas na mão de urbanista.
Ilona Szabó, cofundadora do Instituto Igarapé, observou que o processo de formação das cidades tem relação direta com o fenômeno da violência.
— O lugar onde você mora e quantos anos você tem determinar sua chance de ser assassinado. E sabemos que isso está concentrado em lugares e grupos demográficos definidos: a desigualdade e a rapidez de crescimento criou lugares informais onde o tecido social está fragilizado — disse.
Ela citou esse processo de urbanização como um dos principais motivos para o Brasil ter 32 das 50 cidades mais violentas do mundo e para o fato de que 81% da população têm medo de morrer assassinados. A distribuição desses problemas também é desigual. Segundo ela, nos últimos anos, a população de classe média branca ficou mais segura no Brasil, enquanto a situação das populações negras e pobres está cada vez mais vulnerável.