Próximo a julgamento no STF, documento sugere quantias para distinguir usuário de traficante

por Dandara Tinoco

RIO – A iminência do julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) de recurso extraordinário que pode descriminalizar o porte de drogas para uso próprio impeliu um grupo de especialistas das áreas médica, jurídica e criminal a dar um novo passo no debate. Em ação coordenada pelo Igarapé, instituto dedicado às agendas de segurança e desenvolvimento, eles elaboraram nota técnica sugerindo quantidades de maconha, cocaína e crack que distinguiriam usuários de traficantes. Entre os que assinam o documento, que será divulgado hoje, estão os ex-ministros José Gomes Temporão (Saúde) e Paulo Vannuchi (Direitos Humanos); o coordenador da “Pesquisa nacional sobre o uso de crack”, Francisco Inácio Bastos; e o defensor público geral do Estado do Rio André Luís Machado de Castro.

Previsto para a próxima quinta-feira, o julgamento no STF analisará a constitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas, que prevê punições para quem adquire, guarda, transporta ou traz consigo drogas para consumo pessoal. Embora uma condenação pelo crime não signifique prisão, ela tira da pessoa a condição de réu primário. O argumento do recurso é que o item fere o direito à intimidade e à vida privada, princípios constitucionais.

 

CRITÉRIOS HOJE SÃO SUBJETIVOS

Os signatários do documento do Igarapé entendem que, caso a Corte decida que criminalizar usuários é inconstitucional, o estabelecimento de parâmetros objetivos daria mais segurança à aplicação da lei. Hoje, os critérios previstos para distinguir consumidores e usuários são subjetivos e vão do local onde as substâncias foram apreendidas às circunstâncias sociais do flagrado. A quantidade também está elencada na lei, embora o texto não aponte porções exatas. Citando estudos científicos e experiências internacionais, a nota sugere três diferentes cenários em que as quantias indicadas variam de 25g a 100g, no caso da maconha; e de 10g a 15g, quando se trata da cocaína e do crack.

— Resolvemos reunir saberes jurídicos, científicos e sociais, confrontando isso com experiências internacionais. Estamos oferecendo uma contribuição para um debate — argumenta Ilona Szabó, diretora-executiva do instituto, explicando que os especialistas optaram por prever variados cenários levando em conta a existência de diferentes padrões de uso.

O ponto de partida do grupo, explica o texto, é o diagnóstico de que há, no Brasil, um “superencarceramento insustentável”, que teria sido impulsionado pelo crescimento dos presos classificados como traficantes de drogas. “A maioria dos presos provisórios e condenados por tráfico de drogas no Brasil é composta de réus primários, que levavam consigo pequenas quantidades de substância ilícita, flagrados em operações de policiamento de rotina, desarmados, sem provas de envolvimento com a criminalidade”, diz. De acordo com dados do mais recente Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias do Ministério da Justiça, em junho de 2014 o Brasil tinha 608 mil presos, e um déficit de 231 mil vagas. A proporção de registros de tráfico chega a 27% do total, maior fatia entre os tipos de crime.

— A Lei de Drogas supostamente teria o grande benefício de discriminar quem é traficante e quem é usuário, mas todas as evidências mostram que isso não ocorreu. Como não há critério objetivo, a decisão fica nas mãos do policial. O nível de arbitrariedade é absurdo. A chance de ser classificado como traficante é muito maior quando se trata de um negro e pobre — opina o psiquiatra Dartiu Xavier da Silveira, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), um dos que subscrevem a nota.

O texto ressalta que a adoção de parâmetros objetivos não deve levar à caracterização automática como traficantes de pessoas flagradas com quantidades acima das indicadas. A posse de quantias menores que as indicadas, por sua vez, não deve descartar a análise dos outros critérios, defendem os especialistas.

Os argumentos do grupo são contestados por Ronaldo Laranjeira, coordenador da Comissão de Dependência Química da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), entidade que reprova a flexibilização das políticas de drogas.

— Temos total oposição a qualquer uma dessas mudanças. É totalmente irrelevante e incorreto mudar a política de drogas quando não se está fazendo o beabá. Não há prevenção sistematizada para a população, rede de saúde para amparar usuários e famílias ou políticas para conter o tráfico. Em relação à questão específica da quantidade, quando a lei atual foi elaborada, isso foi discutido à exaustão, e a conclusão foi que, se fosse estabelecida quantidade, no momento seguinte não haveria um traficante sequer com uma dose maior que ela — prevê.

Defensor público e signatário do documento, Rodrigo Pacheco rebate a crítica:

— Caberá à Polícia Civil e ao próprio policial militar obter elementos que identifiquem aquele indivíduo como usuário ou traficante. O fato de a pessoa portar uma quantidade abaixo do que seja eventualmente fixado pelo STF não significa que ela tenha um salvo-conduto para sair vendendo.

Para o secretário Nacional de Políticas sobre Drogas, Vitore Maximiano, se o Supremo considerar a criminalização do porte para uso inconstitucional, fixar uma quantidade significaria preencher um vazio deixado pela legislação atual:

— A quantidade já está prevista na própria Lei de Drogas como um dos elementos que devem ser considerados para fazer a distinção entre consumo e tráfico, e hoje nós sabemos que ela é usada como elemento diferenciador em muitos casos. Está claro que a ausência de critérios objetivos tem levado a terríveis injustiças. Hoje há uma lacuna na legislação brasileira. Caso o Supremo declare a inconstitucionalidade, seria importante também preencher esse vazio.

 

MÉDICO FALA EM NOVOS PARÂMETROS

Maximiano cita ainda levantamento da Senad publicado em junho passado que analisou a legislação de drogas em 47 países das Américas e da Europa. De acordo com o estudo, 19 deles descriminalizam a posse de todas as drogas, e 25 adotam critérios objetivos para separar uso e tráfico, descriminalizando ou não.

Autor de acórdão que, em janeiro deste ano, concedeu habeas corpus a acusado de tráfico por portar crack afirmando que a droga é “demonizada”, o desembargador Joaquim Domingos de Almeida Neto diz que ainda que as recomendações da nota do Igarapé não sejam acolhidas pelo Supremo, elas pode servir de baliza para juízes:

— Infelizmente, muitas vezes os argumentos usados por operadores do Direito não são jurídicos ou científicos, por isso é importante ter documentado o que é o uso normal, que não significa uso desejável. Preconceito moral e religioso não deve ser usado para definir o que fazer com alguém flagrado com drogas.

No acórdão de janeiro, o desembargador cita a “Pesquisa nacional sobre o uso de crack”, da Fiocruz, para fundamentar o habeas corpus. Coordenador do estudo, o médico Francisco Inácio Bastos prevê os passos após a descriminalização da posse e da adoção de critérios objetivos:

— No futuro, teremos de evoluir para critérios baseados em estudos toxicológico e médicos sobre as substância ilícitas tão minuciosos como os que existem em relação ao álcool. Por enquanto, as faixas sugestivas são uma boa aproximação inicial para ajudar a definir um campo absolutamente impreciso.

 

RECURSO QUE SERÁ ANALISADO É DE 2011

O recurso cujo julgamento no STF está marcado para quinta-feira se refere a um caso que chegou à Corte em 2011. Disponibilizada pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo, a defesa de Francisco Benedito de Souza questiona a constitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas. O cearense, preso em Diadema (SP) desde junho de 2009 por roubo à mão armada e uso de documento falso, cumpre pena de 11 anos, 6 meses e 16 dias. Um mês após ser preso, foi flagrado com três gramas de maconha na cela que dividia com 32 presos e condenado a dois meses de serviço comunitário.

Se o réu ganhar a causa, a mesma decisão terá de ser aplicada em processos semelhantes. O voto do ministro relator do recurso, Gilmar Mendes, será conhecido apenas na sessão de julgamento. Outros ministros, porém, já mostraram abertura em relação ao tema. Para Marco Aurélio Mello, o consumo de drogas deveria ser tratado como questão de saúde pública, e não com a punição do usuário. Luís Roberto Barroso também já abordou o assunto. Em entrevista ao GLOBO, em maio, ele afirmou que “não se deve prender preventivamente ninguém por tráfico de quantidades insignificantes de drogas”. Disse ainda que associada à análise do artigo 28 está a necessidade de definir com clareza a diferença entre porte para consumo e tráfico.

(Colaborou: Carolina Brígido)
O Globo

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