Ilona Szabó: “Com as UPPs, há uma nova geração livre do poder do tráfico”

A cientista social diz que o projeto das UPPs não é solução para todos os males, mas deu início à construção de uma sociedade mais saudável

ISABEL CLEMENTE

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A cientista social Ilona Szabó (Foto: Daryan Dornelles/ÉPOCA)

A cientista social Ilona Szabó é uma entusiasta das Unidades de Polícia Pacificadora, que considera um dos cartões-postais das políticas sociais brasileiras, mas reconhece que o momento é delicado. Investimentos públicos foram cortados. O setor privado, segundo ela, sumiu. Faltam apoio e projetos para resgatar os jovens que estavam sob o domínio do tráfico. Um retrocesso, no entanto, seria inadmissível. “Não gosto nem de pensar nessa hipótese.” A pacificação, argumenta, está mexendo nas bases da formação de uma nova sociedade. “Queremos que essas crianças (nascidas em comunidades pacificadas) cresçam num mundo descontaminado.”

Ilona, nomeada para a rede de Jovens Lideranças Globais 2015 – um braço do Fórum Econômico Mundial formado por líderes de até 40 anos por sua capacidade de influenciar as futuras gerações com propostas inovadoras para as problemas da humanidade –, acumula prestígio à medida que divulga suas ideias e as pesquisas do Instituto Igarapé, que fundou em 2011 ao retornar para o Brasil depois de uma longa temporada no exterior. Leia abaixo trechos da entrevista da pesquisadora a ÉPOCA.

ÉPOCA – Qual é o maior mérito das UPPs?
Ilona Szabó – É um experimento único, que não acontece nessa escala em lugar nenhum do mundo. Um tempo atrás, se perguntássemos para qualquer especialista se era possível um projeto de policiamento tirar tantas comunidades do domínio do tráfico em tão pouco tempo, a resposta seria não. No entanto, há jovens se tornando adultos em comunidades onde a violência não é mais a norma. Estamos testemunhando a construção de um tecido social mais saudável. Tem crianças que nasceram no Dona Marta (morro da zona sul carioca, um dos primeiros beneficiados por UPPs) e cresceram sem saber o que é o poder do tráfico. Essas crianças agora estão com seis anos e não desenham bandidos com armas nas mãos nem caveirão (o veículo blindado da polícia que impunha medo a bandidos e moradores de favelas). Queremos que elas cresçam nesse mundo descontaminado porque é essa geração que será capaz de construir um mundo melhor.

ÉPOCA – A reforma da polícia, considerada primordial por estudiosos, não avança, mas as UPPs inseriram na sociedade o conceito de um novo policial. Foi um atalho para uma reforma prática?
Ilona – Sem dúvida. O coronel Robson Rodrigues (chefe do Estado Maior, segundo na hierarquia da Polícia Militar do Rio) foi nosso pesquisador. É um homem que participou da elaboração desse projeto e quer ver a polícia transformada. É bom lembrar que essa crise que discutimos atingiu um terço das UPPs – a maior parte, portanto, progrediu. Essas comunidades terão que dar um passo atrás antes de caminhar para a frente porque o policial da UPP não tem que estar no front em áreas conflagradas. Ele não está pronto para isso. O Complexo do Alemão e a Rocinha são áreas muito grandes e eram os quartéis generais de facções criminosas que disputavam o tráfico local. Se olharmos a geografia dos lugares e os mapas, veremos becos onde nem a força mais preparada do Exército americano entraria porque sabem que se tornariam alvo fácil. O policial entra lá com medo, atira para se defender. O momento exige que não se deixe esse policial, sem preparo para a guerra, no meio de tanta tensão. O despreparo explica muito dos incidentes.

ÉPOCA – O repique de violência veio num momento de crise, com cortes no orçamento público e retração do setor privado. Como fazer frente a isso?
Ilona – A situação é muito preocupante. Financiamento é a parte delicada do projeto. A sociedade civil organizada não tem apoio quase nenhum. Os empresários que chegaram a fazer doações para facilitar a compra de equipamentos sumiram. O Eike Batista foi um dos grandes colaboradores, mas o que restou foi a desmobilização. Faltam recursos. Nós que trabalhamos na área somos poucos, estamos esgarçados diante de uma demanda enorme e sem contar com apoio de fundações, empresas, pessoas físicas, nada. O Igarapé, que está bem estruturado, funciona com 90% de doações internacionais. Imagina outras iniciativas menos conhecidas, mas que poderiam fazer muita diferença? Cadê a elite do Rio? Segurança é um bem público e isso não virá só do governo. Está faltando um pilar nesse projeto coletivo.

ÉPOCA – A senhora teme um retrocesso?
Ilona – A gente não gosta nem de pensar nessa hipótese. Acho que está fora de cogitação voltar ao que era antes. A sociedade acordaria antes. Eu preciso acreditar nisso ou não tenho mais o que fazer aqui. Mas há sim um enorme risco. O novo comando da polícia assumiu com uma série de projetos que não serão implantados por causa do corte orçamentário. Segurança pública, educação e saúde são áreas prioritárias para o brasileiro. É um momento para que todos se unam. Alguns investimentos pequenos geram resultados enormes. Diagnósticos mais precisos e tecnologia podem melhorar a atuação da polícia, otimizando os recursos. As melhores práticas já são conhecidas. Não precisamos inventar a roda. Se unirmos forças, saímos todos. Se mantivermos a perspectiva individualista, vamos todos para o buraco.

ÉPOCA – Como usar a crise para melhorar as UPPs?
Ilona – Essa crise traz a oportunidade para mudarmos do pensamento individualista, que é a marca da sociedade contemporânea, para a cultura do coletivo. Esse foi o pulo do gato nos países mais desenvolvidos, onde a identidade cívica prospera e os indivíduos sabem o seu papel, cuidam da sua parte para o bem de todos, como melhorar a sua calçada, pensar no seu vizinho, abraçar o refugiado. Estamos sofrendo com a total ausência de lideranças capazes de construir as pontes necessárias. E se essas lideranças não surgirem, a sociedade precisa construir essas pontes para vencer a barreira do pensamento individual e integrar-se ao coletivo. É a chave para a justiça social.

ÉPOCA – Quando as UPPs começaram, muitas pessoas acreditavam que o crime estava apenas mudando de lugar, e o aumento de índices de violência em alguns locais do Estado do Rio reforçou a ideia. O que aconteceu afinal?
Ilona – Quando você conversa com moradores de Niterói e São Gonçalo, percebe certa mágoa. Eles reclamam que o lugar era tranquilo e ficou perigoso. Tem duas questões aí. Primeiro é que já estava ocorrendo no Brasil a interiorização da violência. Pesquisas mostram que cidades pequenas e médias vêm se tornando mais violentas em várias partes do país. Nesse sentido, as pessoas viram o resultado de um fenômeno que não começou com as UPPs. A outra questão é reconhecer que houve alguma migração sim porque temos relatos de chefes de morro que se instalaram em outro lugar, mas não se pode atribuir exclusivamente a essa mudança o aumento da violência em certos lugares. O trabalho de inteligência da polícia é investigar e identificar essa migração até para desmistificar essa crença porque o que acontece quando a polícia entra numa comunidade é que a maior parte das pessoas envolvidas no crime permanecem onde estavam. Elas não têm para onde ir. Quem sai é o comando, e aí a cadeia se enfraquece. Os reminiscentes não fazem parte do alto comando nem têm condições para se sustentar em outro lugar.

ÉPOCA – Esses ex-servidores do tráfico não podem reinstalar o crime?
Ilona – Esses jovens precisam ser resgatados. A criminalidade aumenta não porque a maior parte dessa população tenha um caráter ruim, como muita gente acredita. Se essas pessoas tivessem outras opções, muitas fariam uma escolha que não envolvesse o risco de ser assassinado antes dos 25 anos. Temos que competir com os incentivos que levam essa turma a optar pela criminalidade, e os incentivos não são apenas financeiros. O acolhimento proporcionado pelo crime preenche o vazio de algo que a sociedade não oferece. Eu digo que são jovens empreendedores sem microcrédito. Se jovens bem nascidos fossem colocados em situação de total escassez, muitos fariam a opção errada também. Imagina os que não têm família, não são educados? A batalha tem que ser ganha nessa área com incentivos reais. Precisamos mapear as vocações das comunidades para unir oferta com demanda. O que esses jovens gostariam de fazer? Vamos capacitá-los para isso. Há uma lacuna muito grande aí. É verdade que não há instituições suficientes, mas é possível integrar melhor o que temos, e não é pouco. Isso já é feito em lugares em crises humanitárias. São plataformas digitais em que doadores se manifestam e os candidatos aparecem. É preciso mapear e cadastrar a demanda dessa comunidade e isso não está sendo feito. Esses jovens estão em busca de uma identidade, querem sair da invisibilidade, daí a atração das crianças pelos policiais das UPPs. Eles são os únicos modelos que apareceram ali, o policial que brinca, joga bola. Quantos outros modelos podemos inserir? A Defensoria Pública tem um projeto para entrar nas comunidades com UPPs para as pessoas pararem de achar que a polícia é quem resolve tudo.

ÉPOCA – A decepção de alguns moradores teria a ver com o desconhecimento do real papel de uma UPP?
Ilona – Num ambiente com tantas demandas, as expectativas também acabam sendo muito altas. Temos que entender o papel da polícia de proximidade e dos demais atores. Houve sim um descasamento, como se a UPP fosse uma panaceia, a resposta para todos os males, algo que talvez tenha sido usado por questões eleitorais para o bem e para o mal, tanto pela necessidade de valorizar como de questionar o prestígio. O policiamento de proximidade faz a transição da segurança da ditadura para uma mais democrática. Pode aproximar mundos e abrir espaço para o desenvolvimento socioeconômico. Só não é papel das UPPs fazer isso sozinhas.

ÉPOCA – Até que ponto as UPPs ajudam a mudar a imagem do país, apesar de ainda sermos recordistas em homicídios no mundo?
Ilona – Tem um impacto incrível. Nas conversas com os comandantes das UPPs, ouço relatos de dezenas de visitas todos os meses, de gente de fora e daqui. Há muito interesse. As UPPs são um cartão-postal porque o Brasil tem esse perfil de exportar tecnologias sociais. Foi assim na agricultura, no combate ao HIV, no bolsa-família. Tem cooperação para implantar UPPs no Panamá e não se fala muito nisso. Com todos os desafios, é uma inspiração, um modelo que precisa ser aprimorado, mas que trouxe esperança e a gente não pode deixar morrer.

Publicado em 11/04/2015 na Revista Época.

 

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