Meça sua indignação, parça!
Por Ana Paula Pellegrino
Trabalho em um instituto de pesquisa e articulação política onde se respira diariamente segurança pública. Brincamos que nossa meta é diminuir pela metade o número de homicídios no sul global. Na verdade, não é brincadeira nenhuma – no fundo, trabalhamos para isso mesmo, aficionados como somos pela ideia de que um mundo melhor pode ser construído a partir de muita pesquisa, políticas públicas bem desenhadas, reformas legislativas e redes de pessoas dispostas a abrir debates e promover mudanças na sociedade.
Estou lá desde setembro do ano passado e, de lá pra cá, foram várias crises no Rio de Janeiro, algumas das quais geraram debates hoje nacionais. A rotina é a mesma – manchetes de jornais repetidas ad nauseum, acuando a população. Tiroteio. Balas perdidas. Menino morto na maré, ocupação do exército. Arrastões nas praias da Zona Sul, revista em ônibus que vem da Zona Norte. UPP do asfalto, crise nas UPPs. Esfaqueiam ciclista na lagoa, esfaqueiam pedestre na Rio Branco. Morre outro ciclista esfaqueado na lagoa.
Lá no escritório, é um corre-corre. Damos entrevistas, mandamos dados, tentamos articular um debate mais profundo. Mas é difícil fazer-se ouvir no mar de vozes que querem gritar cada vez mais alto o quão insuportável está a situação. E ela está mesmo, para todo mundo. Não só na Lagoa, na Zona Sul, no Rio de Janeiro, no estado. A questão é nacional, regional até. A América Latina registra recordes – temos só 8% da população mundial, 33% dos homicídios do planeta ocorrem aqui. Dá uma olhada nesse mapa, onde estamos todos pintados de vermelho. O Brasil ainda é recordista – foram 56.000 mortos em 2013 (no mesmo ano, foram menos de 70 homicídios na Suécia). Das 50 cidades mais violentas do mundo, 19 são brasileiras. A verdade é que matamos muito – e essa matança tem idade, gênero e cor: são jovens, homens e negros os que mais morrem por aqui.
Acometida por um misto de indignação cega e vontade de ver uma melhora na situação, a população pede a resposta mais imediata. Que se achem os culpados e os joguem na cadeia! Que seja por muito tempo!! (e isso quando não pedem pior, como a adoção da pena de morte, ou a reduçã- opa, isso já estão pedindo, esquece). Mas, convenhamos, a crise é muito mais séria. Achar um culpado para o crime da vez é dar uma de capitão do Titanic – basta desviar daquela ponta de gelo ali que tá sussa. Não tá. E não vai ficar. Vai ter outro assalto a mão armada, outro arrastão no metrô, outro tiroteio na Linha Vermelha para fazer sua mãe te ligar preocupada querendo saber por onde você anda.
A verdade é que segurança pública não se faz só de polícia e prisão. Se ficarmos batendo repetidamente nessas duas teclas, só vamos ter mais do mesmo. E a intenção desde o início não era mudar? Pois então precisamos mudar de verdade – até porque esse sistema está realmente falido – e as cadeias já estão superlotadas: são hoje mais 570 mil presos em 220 mil vagas (só que prendemos mal, imagine, um quarto desses são por tráfico de drogas, presos com pequenas quantidades de entorpecentes, 40% ainda aguardando julgamento, muitos deles réus primários não-violentos). E tudo isso ainda custa caro demais – 5,4% do PIB em 2013, um montante 258 bilhões de reais, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Mas a boa notícia é que muita coisa pode ser feita.
Está tudo interligado. Se quisermos deixar de ficar reféns do medo da morte violenta, temos que discutir, para ontem e com toda a seriedade, questões como democratização da política, reforma da atual política de drogas, regulação responsável de armas, e, principalmente, políticas públicas de prevenção da violência.
Para só um minuto para pensar o que você tem ouvido falar esses dias. Alguém falou em políticas de prevenção, como programas para evitar evasão escolar, incentivo ao acesso à educação e cultura, projetos de combate ao racismo, programas de fomento ao emprego formal de jovens? Provavelmente não. Se você ouviu isso de alguém, dê um abraço nessa pessoa. E chama para bater um papo e trocar ideia.
Está na hora de começarmos ser realistas, olhar os dados e conversar, deixando de dar ouvidos a esse debate de surdos que acontece cada vez que um novo caso de violência choca a sociedade. É horrível que as pessoas estão sendo esfaqueadas? É. Mas cada um precisa respirar 10 segundos antes de sair pedindo a cabeça de qualquer pessoa. Tá tudo muito ruim. Só que, para melhorar, todos precisam cooperar. E tem pessoas dispostas a comprar essa ideia, tanto na sociedade civil, quanto na imprensa, no governo, legislativo, judiciário, na vizinhança…e por aí vai.
O primeiro passo para construir uma sociedade mais segura para todos é mais simples do que parece e não envolve perseguições policiais e operações com atiradores francos. Se der certo, na verdade, cada vez menos precisaremos disso. Experimente: pesquise, se informe e converse com alguém que pensa diferente (fora do Facebook, amigos, nem venham com essa). Argumente. Pergunte. Tente achar, no discurso do outro, uma brecha para a dúvida de que tem algo errado. Pressione políticos eleitos, abra debates. Demonstre seu apoio a projetos de lei que sigam essa linha e seu repúdio àqueles que só chovem no molhado. Mostre que, apesar do problema precisar ser resolvido para ontem, uma resposta rápida não dá conta, porque não dá mesmo. Transformar toda essa indignação coletiva em debate qualificado não vai ser fácil.
Mas também, quem disse que ia ser moleza?
A propósito, uns lugares bacanas por onde começar essa jornada:
Instituto Igarapé – Observatório de Homicídios
Fórum Brasileiro de Segurança Pública – 8o Anuário com dados de 2013
Instituto Sou da Paz – Agenda Prioritária de Segurança Pública
Mapa da Violência – Mapa 2015: mortes por arma de fogo
Centro de Estudos de Segurança e Cidadania
Instituto de Segurança Pública (para iniciados, com dados sobre Rio de Janeiro em tabelas excel)