Para acelerar o estado de direito, é necessária uma abordagem abrangente para medir a segurança pessoal na Amazônia Legal brasileira

Robert Muggah

Julho 2024

 

A escala e a diversidade da Amazônia Legal brasileira são fatores significativos quando o objetivo é mensurar a segurança pessoal. A região abrange 772 municípios distribuídos pelos estados do Acre, Amapá, Amazonas, Maranhão, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins, e se estende por mais de 5,2 milhões de km² (IBGE 2022). Um pouco mais de dois terços dos 28 milhões de habitantes do território vivem em áreas urbanas, incluindo algumas grandes cidades e vários assentamentos secundários e terciários (Santos et al 2023). Além disso, a Amazônia abriga grandes áreas protegidas, incluindo 335 Unidades de Conservação, 424 Terras Indígenas e 175 Territórios Quilombolas. Dadas as grandes distâncias envolvidas e os diferentes níveis de capacidade do estado e das organizações não governamentais de coletar informações, a disponibilidade, acessibilidade e precisão dos dados sobre segurança pessoal variam dentro da região.

 

O Índice de Progresso Social na Amazônia Brasileira (IPS) atualmente foca em três métricas para medir a segurança pessoal na região: homicídios, homicídios de jovens e mortalidade relacionada ao trânsito. Em 2023, a pontuação média de segurança pessoal foi de 53,06, considerada “crítica” e um “problema social crônico” na época. Os dados utilizados para calcular as taxas de homicídio, homicídio de jovens e mortalidade no trânsito foram obtidos do Ministério da Saúde e do censo nacional. Como esperado, houve uma grande variação espacial tanto no índice composto quanto nos indicadores separados na Amazônia Legal, com “pontos críticos” em uma série de municípios urbanos e rurais. Embora o IPS seja útil, ele oferece uma visão limitada das dinâmicas temporais, demográficas e não letais da segurança pessoal.

 

Embora a morte violenta seja apenas uma dimensão da segurança pessoal, o foco do IPS na mortalidade é justificado. Afinal, os estados e municípios da Amazônia Legal registram algumas das maiores taxas de violência letal no Brasil. Em 2020, por exemplo, a taxa de mortes violentas intencionais da região foi de 29,6 por 100.000 habitantes, comparada à média nacional de 23,9. No Amapá, a taxa foi de 41,7; no Acre, 32,9; e no Pará, 32,5. Embora mais de dois terços de todas as mortes violentas intencionais ocorram em áreas urbanas, os municípios rurais também registram um índice relativamente alto. Estudos sugerem que municípios com altas taxas de desmatamento e conflitos fundiários geralmente apresentam taxas desproporcionalmente altas de mortes violentas em comparação com as médias nacionais e regionais.

 

Vários fatores parecem estar relacionados com o aumento da violência letal e não letal na Amazônia Legal. Entre eles estão a disseminação do crime organizado e interpessoal, as disputas de terras e conflitos associados, e os crimes ambientais, como grilagem, desmatamento ilegal, mineração ilegal e caça furtiva. Um dos principais fatores que contribuem para os altos níveis de violência interpessoal e decorrente do crime organizado é a concentração de facções criminosas organizadas envolvidas no tráfico de drogas e em crimes ambientais. O aumento da produção de coca e do tráfico de cocaína da Colômbia, Peru e Bolívia levou ao crescimento de organizações de tráfico de drogas e ao agravamento das disputas entre facções. A proliferação das redes criminosas também está impulsionando uma interligação entre as diferentes formas  de criminalidade na Amazônia, incluindo o narco-desmatamento. Outros fatores que reforçam as altas taxas de violência letal estão relacionados a deficiências do estado de direito – incluindo forças de segurança, promotores e instituições penais – e à corrupção e impunidade associadas.

 

Uma abordagem abrangente para medir a segurança pessoal poderia incluir um espectro mais amplo de “mortes violentas intencionais e não intencionais” relatadas pelas autoridades de saúde (ver Figura 1). Além das categorias de homicídio intencional e homicídio juvenil apresentadas no IPS, poderiam ser adicionados feminicídios e mortes relacionadas a operações policiais (comumente referidas como “autos de resistência”). As informações poderiam ser coletadas não apenas nas bases de dados do Ministério da Saúde, mas também das nove secretarias estaduais de segurança pública. Além de serem atualizados e padronizados, os dados oficiais de segurança pública geralmente são desagregados por gênero, idade e instrumento utilizado, esclarecendo as características da violência letal intencional. Ao mesmo tempo, existem desvantagens no uso dos dados de segurança pública, uma vez que a coleta de dados pode exigir diversas requisições de informações às agências estaduais e os dados obtidos podem estar incompletos.

 

Uma conceituação ampla da insegurança pessoal poderia também abranger indicadores de “violência não letal”. Em muitos casos, a experiência objetiva de ser alvo da violência pode ter um efeito profundo na percepção subjetiva de segurança. Embora frequentemente mais difícil de medir do que a violência letal devido à subnotificação, a incidência e o medo de crimes violentos e não violentos podem interromper significativamente o acesso às necessidades básicas, a qualidade de vida geral e a confiança nas instituições. Por exemplo, crimes contra a propriedade – incluindo roubos e furtos – são indicadores de segurança real e percebida. O furto de veículos, em particular, é um indicador especialmente confiável pela alta probabilidade de ser reportado para o seguro. Crimes violentos e vítimas de  violência, desde agressões e estupros até outras formas de dano físico e psicológico, também são indicadores reveladores. Por fim, embora dependam principalmente de fontes não governamentais, disputas de terras, violência política, bem como ataques contra defensores ambientais e comunidades indígenas e tradicionais, também podem revelar a escala e a distribuição da insegurança pessoal.

 

Existem várias situações de escolhas conflitantes que devem ser consideradas ao se desenvolver uma abordagem abrangente para avaliar a segurança pessoal. A primeira se refere ao equilíbrio entre fontes de dados oficiais e não oficiais para mensurar a segurança pessoal. Embora existam razões políticas e econômicas para dar destaque às estatísticas governamentais padronizadas e recorrentes sobre violência letal e não letal, existem lacunas temáticas e geográficas que podem ser corrigidas com dados provenientes de fontes não governamentais. Outra situação de escolha conflitante diz respeito à quantidade e relevância de métricas para monitorar a segurança pessoal. Há boas razões para limitar o número de variáveis a uma seleção de crimes capitais. Ainda assim, embora os dados sobre violência letal sejam mais facilmente acessíveis, eles não capturam completamente as atitudes e comportamentos públicos, ou a maneira que os habitantes da Amazônia Legal percebem  a segurança pessoal de forma mais ampla.

 

Figura 1. Métricas propostas para uma avaliação abrangente da segurança pessoal

Categoria Métricas possíveis Fonte de dados (base) Vantagens identificadas Desvantagens identificadas
Morte violenta intencional (relatada pelas autoridades de saúde) Homicídio, homicídio de jovens e mortalidade relacionada a veículos. Ministério da Saúde (Datasus)[1] Disponibilidade de dados padronizados sobre mortes violentas com base na Classificação Internacional de Doenças (CID). Permite comparações nacionais e regionais detalhadas, incluindo características das vítimas. A notificação está sujeita a um atraso de um ano e depende da qualidade da documentação do sistema de saúde, com um possível crescimento de casos de mortes não classificadas como causadas por fatores externos.
Morte violenta intencional (relatada pelas autoridades policiais) Morte violenta intencional, feminicídio e morte resultante de operações policiais. Secretarias de Segurança Pública do Estado Disponibilidade de dados oportunos sobre mortes violentas a nível estadual e municipal, incluindo operações policiais. Permite uma análise detalhada das características do evento e das vítimas (por exemplo, desagregados por gênero, idade, raça, meio utilizado, localização). O acesso à informação pode levar tempo e requer solicitações individuais às autoridades estaduais. A qualidade dos dados varia muito entre estados e municípios. Além disso, a qualidade e a completude dos dados muitas vezes são inconsistentes influenciadas pela notificação e pelo acesso à justiça criminal.

 

Crime contra a propriedade Roubo violento e não violento, invasão e furto (incluindo veículos) Secretarias de Segurança Pública do Estado Disponibilidade de dados a nível estadual e municipal sobre vários tipos de crimes contra a propriedade (por exemplo, desagregados por gênero, idade, raça). As taxas de notificação podem variar significativamente dependendo da categoria de crime contra a propriedade. Existem diferentes definições de roubo e furto e diversos níveis de desagregação dependendo do estado. A disponibilidade dos dados depende da notificação feita por indivíduos ao sistema de justiça criminal.

 

Crime violento Agressão e violência sexual, como estupro e abuso.[1] Secretarias de Segurança Pública do Estado Disponibilidade de dados a nível estadual e municipal sobre vários tipos de crimes contra a propriedade (desagregados por gênero, idade e raça). As taxas de notificação podem variar, dependendo da categoria de agressão e violência sexual. A disponibilidade dos dados depende da notificação feita por indivíduos ao sistema de justiça criminal.
Vítimas de violências Violência física[2], violência psicológica[3] e violência econômica[4] Datasus – Ministério da Saúde.[5] Disponibilidade de dados padronizados sobre violência não letal e vítimas de violência. Alto nível de consistência nacional e subnacional e variáveis detalhadas sobre vítimas e eventos. A notificação está sujeita a  atraso de um ano. Os relatórios também são baseados na notificação da incidência de violência interpessoal e autoinfligida ao sistema de saúde. Portanto, estão sujeitos à subnotificação, especialmente em áreas com baixa cobertura da rede pública de saúde.

 

Disputas de terra e conflitos Conflitos interpessoais por terra e água e vítimas de violências associadas. Comissão Pastoral da Terra (CPT).[1] Disponibilidade de dados padronizados em séries temporais e geoespaciais sobre conflitos relatados por recursos relacionados à terra e à água. Também há dados sobre violência letal e não letal relatada, incluindo assassinato, intimidação, agressão, perseguição e outras formas de criminalidade.  A notificação é realizada por uma organização não governamental e focada em áreas rurais, o que pode resultar em superamostragem e supernotificação de métricas selecionadas. A qualidade e a credibilidade dos dados podem ser questionadas por fontes oficiais. 
Violência política e protestos  Conflitos, protestos, motins, violência contra civis.  Projeto de Dados sobre Localização e Eventos de Conflitos Armados(ACLED)[2] Disponibilidade de dados padronizados em séries temporais e geoespaciais de alta resolução sobre incidentes relatados pela mídia envolvendo conflitos, protestos, disputas e outras variáveis.  A notificação é realizada por uma organização não governamental e baseada em relatórios da mídia e de direitos humanos, o que pode resultar em relatórios tendenciosos, especialmente nas cidades. A qualidade e a credibilidade dos dados podem ser questionadas por fontes oficiais.
Violência contra população indígena e povos originários Violência contra pessoas, incluindo assassinato, agressão física e ameaças.  Conselho Indigenista Missionário (Cimi)[3] Disponibilidade de dados mistos inéditos de várias fontes (por exemplo, registros de forças de segurança estaduais, Ministério Público Federal (MPF), Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), Fundação Nacional do Índio (Funai), Lei de Acesso à Informação (LAI), conjunto de dados do Cimi, denúncias documentadas e meios de comunicação, etc.   A notificação é realizada por uma organização não governamental e não é padronizada, podendo sofrer uma série de limitações em relação à cobertura, precisão dos dados, amostragem tendenciosa e desafios na verificação dos dados. A qualidade e a credibilidade dos dados podem ser questionadas por fontes oficiais.  

 

Violência contra defensores Ataques contra defensores sociais (direitos humanos, indígenas, meio ambiente) Terra de Resistentes A disponibilidade de dados está conectada à cobertura da mídia e entrevistas com informantes-chave. Pode ser complementada com dados coletados por outras organizações internacionais, como a Global Witness e a FrontLine Defenders. A notificação é realizada por uma rede de mídia colaborativa transfronteiriça focada na investigação da violência contra defensores na América Latina. Os dados não são atualizados regularmente (a última  atualização foi em 2019). A qualidade e a credibilidade dos dados podem ser questionadas por fontes oficiais.

 

 

Referências

 

Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2023). Mapeando a violência na região Amazônica  

 

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2022). Amazônia Legal  

Muggah, R. (2023). How Drugs are Destroying the Amazon. Foreign Policy Magazine, 6 de agosto de 2023. 

 

Santos, D., Lima, M. Wilm, M., Seifer, P. e B. Verissimo (2023). Índice de Progresso Social na Amazônia Brasileira: IPS Amazônia 2023

 

Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime – UNODC (2023). The Nexus Between Drugs and Crimes That Affect the Environment and Convergent Crime in the Amazon Basin

 

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