A possibilidade de acesso das mulheres a posições de combate nas Forças Armadas intensificou o debate, no Brasil, sobre a relação entre defesa e construções de gênero. Desde 1980, quando da entrada das primeiras militares na Marinha do Brasil (MB), as mulheres foram ganhando cada vez mais espaço nas três forças, o que não ocorreu, contudo, sem dificuldades. A presente pesquisa aborda esses desafios e foca nos avanços que permitiram a atuação das mulheres na chamada “linha de frente”, ou seja, no exercício de funções de combate.
A pesquisa realizada abordou os desafios práticos e subjetivos para a plena integração de mulheres nas Forças Armadas do Brasil. Foram também analisados os parâmetros, as boas práticas e as lições extraídas da experiência de países selecionados, em especial na Europa e na América Latina. Tal seleção reflete a promoção de esforços, por esses países, que incentivam a participação de mulheres em suas respectivas Forças Armadas, inclusive em posições de combate. Para o caso brasileiro, a pesquisa desenvolveu-se a partir de três estudos de caso: a Escola Naval (EN), a Academia Militar de Agulhas Negras (AMAN) e a Academia da Força Aérea (AFA). Essas são as três principais escolas de formação de oficiais das Forças Armadas brasileiras.
As principais observações decorrentes da pesquisa indicam que:
Há uma clara distinção de percepção sobre o exercício, por mulheres, de atividades de linha de frente, ou combate direto, e o exercício, por mulheres, de funções de apoio ao combate, como intendência e material bélico;
Apesar disso, existem cerca de 20 países no mundo – a maioria na Europa - que retiraram todas as restrições para que mulheres possam atuar como combatentes em suas forças armadas;
No caso do Brasil, há uma forte diferença de percepção, entre as três Forças, quanto à possibilidade de mulheres exercerem ou não funções de combate, especificamente a função-fim da força. Na Aeronáutica, as mulheres podem exercer a função de aviadoras há mais de 10 anos. No caso do Exército e da Marinha, elas ainda não podem atuar em posições de combate. Avanços importantes devem ser notados, como a abertura da Intendência (Marinha e Exército) e Material Bélico (Exército), além do anúncio da abertura do Corpos da Armada e de Fuzileiros Navais para mulheres até 2023 (Marinha). Essa diferença também se repete em vários países analisados, que não abriram as portas para a atuação de mulheres em algumas posições de combate;
Os desafios de ordem subjetiva parecem ser maiores que os práticos e têm implicações concretas para uma efetiva participação de mulheres nas forças armadas. O principal deles refere-se à ideia de que na guerra não há espaço para mulheres, não só por serem fisicamente mais fracas, mas também por conta da valorização do papel tradicional da mulher como esposas, filhas, irmãs e mães a serem protegidas (e não como protetoras).
Este Artigo Estratégico está dividido em duas seções principais. A primeira aborda a importância de se incorporar uma perspectiva de gênero nas forças armadas e identifica alguns dos principais argumentos contrários à entrada de mulheres em posições de combate. Essa seção trata também dos avanços e desafios encontrados para a plena integração de mulheres às forças armadas em diversos países do mundo. A segunda seção traz o caso brasileiro, a partir do trabalho de campo nas três principais escolas de formação de oficiais das Forças Armadas do Brasil. As considerações finais, por sua vez, incluem algumas recomendações para a plena integração de mulheres brasileiras às forças armadas do país.
Gênero e forças armadas são, com frequência, temas vistos como antagônicos. A guerra é “naturalmente” encarada como um ambiente masculino e à mulher é geralmente reservado o papel de vítima. Apesar disso, mulheres sempre participaram da guerra, ainda que focadas em funções de apoio, em uma espécie de divisão de trabalho que persiste até hoje. O entendimento sobre a importância da incorporação de uma perspectiva de gênero, inclusive o aumento da participação de mulheres na instituição castrense, é ainda limitado e focado na necessidade de proteção de outras mulheres.
Embora importante, essa não é a única razão. As Forças Armadas, como uma instituição total, têm um sistema de regras, comportamentos e relações distintos do restante da sociedade. Busca-se uma identidade comum àqueles que ali ingressam. A ausência de mulheres desse universo é uma consequência direta da exclusão dos considerados fisicamente “mais fracos”, mas também implica em excluir as perspectivas e capacidades de uma parcela significativa da população que poderia contribuir, inclusive, para um melhor desempenho das atividades.
De certa forma, a questão de gênero e, especificamente, de mulheres nas Forças Armadas, reflete os avanços desse tema na sociedade. Muitos dos desafios encontrados por mulheres civis em seus respectivos ambientes de trabalho estão também presentes nas Forças Armadas. Por ser uma instituição total, no entanto, a disseminação de normas relacionadas à igualdade de gênero é tardia e quase desafia o conceito construído histórica e socialmente ao longo dos anos.
Além disso, a relação quase automática entre masculinidade e força acaba, por vezes, equalizando masculinidade com violência, e as consequências podem ser catastróficas, inclusive no âmbito da defesa da pátria. A agenda sobre mulheres, paz e segurança foca na promoção da agência de mulheres na resolução de conflitos e na promoção da paz e segurança internacional. Parte fundamental dessa discussão é o papel desempenhado por mulheres uniformizadas – militares e policiais - em contextos instáveis. A simples presença de mulheres uniformizadas, no entanto, não é suficiente. É necessária também uma análise qualitativa sobre o papel por elas exercido, que posições ocupam e que desafios enfrentam para permanecer e ascender na carreira.
Assim, a entrada das mulheres nas armas de combate nas Forças Armadas gera diferentes interpretações sobre o impacto que essa mudança provocará tanto na instituição Força Armada quanto na operacionalidade das atividades militares. Embora esse processo seja muito recente no Brasil, em outros países ele já vem ocorrendo há algum tempo. Apesar disso, o debate é ainda carregado de estereótipos sobre o papel da mulher e sobre a sua capacidade de atuar em um ambiente visto majoritariamente como “masculino”. De forma geral, aceita-se amplamente que as mulheres têm um papel a desempenhar nas forças, geralmente em áreas como logística e administração e até mesmo apoio ao combate. Mas essas funções, de certa forma, reforçam estereótipos e excluem as mulheres do principal caminho para ascender a posições de poder.
O assunto é considerado o calcanhar de Aquiles das Forças Armadas. Justificam-se medidas que reforçam a desigualdade de gênero como forma de proteção. Argumenta-se, por exemplo, que a possibilidade de que sejam mães ou de que sofram assédio e/ou abuso são um impeditivo para que trabalhem em certos meios ou que ingressem em certas armas. São premissas que desafiam a transformação das sociedades e são incoerentes com a própria natureza dos conflitos armados contemporâneos.
Para melhor tratar desse assunto, o artigo passa a descrever, a seguir, uma série de argumentos sobre a participação de mulheres na linha de frente com vistas a dar um primeiro passo para a desconstrução de alguns mitos, muitos deles coletados na fase de pesquisa de campo, realizada nas três escolas de formação de oficiais do Brasil. Alguns dos mitos identificados são vastamente documentados e já foram utilizados em outros países para impedir ou restringir o acesso. Ao mesmo tempo, porém, há muitas pesquisas que os desconstroem, o que também será compartilhado a seguir.
Tabela 1. Alguns mitos sobre a entrada de mulheres nas Forças Armadas do Brasil
MITOS
REALIDADE
EXEMPLO
As mulheres, por serem mais fracas, não podem exercer funções de combate. Sua presença pode prejudicar a operacionalidade da missão.
Existem requisitos físicos que devem ser cumpridos para o exercício de certas funções de combate.
Esses requisitos variam no tempo e no espaço e baseiam-se não no gênero do militar, mas nos critérios necessários para se preencher certas funções.
Construções sociais sobre masculinidade e força trazem difculdades extras para que mulheres sejam vistas como militares, em especial em posições de combate.
Vários países permitem que mulheres exerçam qualquer função em suas forças armadas.
Na Noruega, mulheres militares podem eleger armas de combate desde 1985. Em 2014, reconhecendose que a ausência de mulheres prejudicava a efcácia operacional das forças especiais norueguesas em ações no Afeganistão, criou-se uma Unidade de Forças Especiais exclusiva para mulheres. Desde 2015, o país adota a conscrição universal.
No Reino Unido, após minucioso estudo sobre o impacto de mulheres militares em posições de combate, realizado pelo Ministério da Defesa britânico em 2016, o comandante do Exército recomendou que mulheres também sejam autorizadas a ingressar na infantaria e cavalaria.
A presença de mulheres afeta a moral e a coesão das tropas. Homens se ocupariam mais com sua proteção do que com a missão. Se, por exemplo, forem mortas ou feridas em combate, o impacto nos companheiros do sexo masculino será maior.
Estudos demonstram que a integração melhora a moral e o profssionalismo.
A ideia de que os homens estarão mais preocupados em proteger colegas do sexo feminino do que em cumprir a sua missão baseia-se em um estereótipo de gênero. Mulheres são vistas não como profssionais, mas como mães, irmãs e flhas que precisam ser protegidas.
A Noruega adotou banheiros e dormitórios unissex e, desde então, as pesquisas revelam que a convivência entre os sexos melhorou e certos estereótipos de gênero diminuíram ou desapareceram por completo.
Nas operações das Forças Armadas dos EUA no Afeganistão, ofciais homens das equipes de operações especiais e ofciais mulheres das equipes de apoio cultural norte-americanas compartilharam banheiro, barracas e outras estruturas sem prejuízo para a efcácia da missão.
A menstruação, a tensão pré-menstrual e a gravidez são empecilhos para que mulheres atuem em posições de combate.
Mulheres são profssionais e podem lidar com as condições severas dos locais em que são empregadas como qualquer outro soldado.
Contraceptivos hormonais podem suprimir a menstruação se soldados do sexo feminino assim preferirem.
Homens e mulheres podem ocupar-se do cuidado e educação dos flhos.
Existem maneiras de se evitar que o tempo de afastamento causado pela gravidez tenha impacto desproporcional na carreira de mulheres militares. O Reino Unido, por exemplo, permite que os que os homens e as mulheres decidam como distribuir o tempo de afastamento com remuneração, a denominada licença parental, que se aplica também para cônjuges civis.
A presença de mulheres causa tensão sexual no treinamento e no combate.
O assédio, o abuso e outros tipos de violências baseadas no gênero, inclusive a sexual, são uma expressão da desigualdade de gênero. Impedir a entrada de mulheres não as protegerá desses abusos, somente reforçará essa desigualdade e a perpetuação de um modelo de masculinidade baseado na virilidade e na força física.
Inúmeros casos de abuso e violência contra mulheres militares vieram à tona em diversos países como Austrália, França e Estados Unidos.
A resposta foi a de buscar entender a magnitude do problema para implementar políticas e atualizar legislações de forma a melhor proteger as mulheres.
Mulheres não têm condições físicas nem psicológicas de exercer posições de combate na guerra.
Há inúmeros registros históricos de mulheres que participaram de combates. Mais recentemente, mulheres de diversos países do Atlântico Norte exerceram funções de combate e foram bem-sucedidas.
A natureza dos conflitos internacionais mudou bastante e, na guerra assimétrica, há pouca distinção entre combate e apoio ao combate.
No Iraque e no Afeganistão, dispositivos explosivos improvisados e homens-bomba fzeram vítimas indistintamente do papel que exerciam em sua unidade militar.
Entre 2001 e 2015, as forças de Coalizão perderam cerca de 160 militares mulheres, a maioria atuando em funções de apoio ao combate.
Homens não aceitam ser comandados por mulheres.
Mulheres podem exercer o papel de liderança tão bem quanto homens.
Homens que não aceitam ser comandados tendem a refletir visões estereotipadas sobre os papéis que mulheres e homens exercem na sociedade.
Há inúmeros relatos de operações bem-sucedidas comandadas por mulheres. Recentemente, a almirante Michelle Howard, dos EUA, assumiu o Comando Aliado de Forças Conjuntas da OTAN em Nápoles, após ter comandado navios e missões pela Marinha norteamericana.
Depois de mais de dois anos de atuação no posto de Force Commander, a General Kristin Lund, da Noruega, acaba de passar o comando da Força de Paz da ONU no Chipre.
Mulheres não querem atuar no combate.
A atuação de mulheres no combate direto já é uma realidade. Além disso, o acesso a posições de combate é voluntário.
Segundo uma pesquisa realizada nas Forças Armadas dos Estados Unidos, 22% das mulheres do Exército e 40% do Corpo de Fuzileiros Navais norte-americano gostariam de ter oportunidade de servir em posições de combate. Essas porcentagens representam um universo de mais de 50 mil mulheres. Na Nova Zelândia, cerca de 6% dos ofciais em postos operacionais/de combate são mulheres.
Como demonstrado acima, são vários os mitos sobre a atuação de mulheres em posições de combate e o seu impacto na operacionalidade das forças. E há exemplos concretos, em diferentes países, sobre o que tem efetivamente ocorrido no terreno. No Brasil, apesar dos últimos avanços, ainda persistem inúmeros desafios de ordem objetiva e, principalmente, subjetiva para que mulheres possam exercer funções de combate nas suas Forças Armadas. A ausência de um consenso sobre a presença de mulheres em posições de combate no Brasil acaba corroborando para que alguns mitos circulem e sejam reproduzidos como verdades absolutas. Assim, e para contribuir com o debate no Brasil, a próxima subseção fará uma breve análise, a partir de casos concretos, sobre a presença de mulheres nas Forças Armadas de outros países.
A presença de mulheres nas Forças Armadas de diferentes países
Diferente do que se argumenta com frequência, não são somente os países em guerra que têm mulheres em posição de combate. Há cerca de 20 países, inclusive na América Latina, que permitem às mulheres o acesso a quaisquer atividades que queiram exercer nas Forças Armadas. A exemplo do que vem ocorrendo no Brasil, a abertura das instituições castrenses a mulheres tem sido gradual. Algumas exceções incluem Canadá, Noruega e Suécia, que permitiram o acesso a todas as posições de combate e de apoio ao combate ainda na década de 1980.
O primeiro país a regulamentar a entrada de mulheres em posição de combate foi a Noruega. Desde 1985, mulheres podem escolher qualquer atividade nas Forças Armadas norueguesas. O país foi também o primeiro a estender a conscrição obrigatória a mulheres que, desde 2015, ingressam no serviço militar obrigatório. Apesar disso, o país não conseguiu aumentar a proporção de mulheres militares, ainda em cerca de 10%, porcentagem bem abaixo da meta de 20% do efetivo. Apesar do número reduzido, a distribuição das funções e o papel exercido por mulheres militares norueguesas são mais amplos do que na maioria das forças armadas ao redor do mundo. Vale mencionar que a Noruega possui contingente feminino nas forças especiais.
Tanto a Suécia como o Canadá permitem o acesso total desde 1989. Nesses países, mulheres representam cerca de 13% e 15% de seus respectivos efetivos militares. Outros países europeus que também retiraram as restrições a mulheres nas forças armadas foram Alemanha, Dinamarca, Espanha, França, Polônia, Portugal e Romênia. A França é o país europeu com a maior proporção de mulheres militares: 15,4%. Nesse país, em razão de inúmeros casos de abuso sexual contra militares no âmbito das Forças Armadas, diversas mudanças foram realizadas para que a legislação pertinente penalizasse tais crimes.
Entre os países anglo-saxônicos, a Austrália, os Estados Unidos (desde 2015) e a Nova Zelândia tampouco apresentam obstáculos para que mulheres exerçam funções de combate. Nesses casos, a atuação de mulheres militares nas guerras do Afeganistão e Iraque é bem documentada. Evidencia-se que a sua presença contribuiu efetivamente para a operacionalidade das missões, em especial no que tange ao acesso à informação por parte de mulheres locais.
Entre os países em desenvolvimento, destacam-se a África do Sul e alguns países latinoamericanos que permitem a plena participação de mulheres em suas Forças Armadas e têm uma proporção relativamente alta de militares do sexo feminino. Na África do Sul, as mulheres chegam a representar 25% do efetivo, enquanto que, na América Latina, os países com maior proporção de mulheres são Chile (17,5%), Uruguai (16,9%) e Argentina (16,3%).
Tabela 2. Proporção e acesso de mulheres em Forças Armadas ao redor do mundo
PAÍS
% de MULHERES
ACESSO GERAL
ACESSO
* O governo chinês diz permitir mulheres em posições de combate, mas não oferece dados ofciais sobre o número de mulheres em suas Forças Armadas. Circula, em veículos online, a porcentagem de 7,5%, mas não foi possível confrmar a veracidade da informação. ** Em 2016, a Índia anunciou oficialmente que em breve permitirá a atuação de mulheres em todas as posições de combate. *** Os dados sobre a Rússia são de 2013. **** A França – que, desde 1993, permite o acesso de mulheres a posições de combate nas três forças - permitirá que estejam a bordo de submarinos a partir de 2017. ***** O Reino Unido anunciou que mulheres poderão ingressar em todas as posições de combate até 2018.
Brasil
7,6%
Permitida atuação somente na aviação, intendência e material bélico.
África do Sul
25%
Permitida atuação em todas posições de combate desde 1994
China*
7,5%
Permitida a atuação somente na aviação e na unidade de lançamento de mísseis.
Índia**
2,5%
Não permite mulheres em posições de combate.
Rússia***
10%
Permite mulheres em algumas posições de combate.
Espanha
12,4%
Permitida atuação em todas posições de combate desde 1999.
França****
15,4%
Permitida a atuação somente na aviação e na unidade de lançamento de mísseis.
Noruega
10%
Permitida atuação em todas posições de combate desde 1985.
Portugal
11%
Não há restrições às mulheres desde 2008.
Reino Unido*****
9,4%
Fuzileiros Navais, Cavalaria, Armada, Regimento da Aviação.
Suécia
13%
Permitida atuação em todas posições de combate desde 1989.
Canadá
15%
Permitida atuação em todas posições de combate desde 1989.
Estados Unidos
14,6%
Permitida atuação em todas posições de combate desde 2015.
Austrália
15%
Permitidas em algumas posições de combate desde 2011, e sem qualquer restrição desde 2013.
Nova Zelândia
15%
Permitida atuação em todas posições de combate desde 2000.
Na América Latina, a incorporação de mulheres a essas Forças Armadas se deu por diversas razões históricas, culturais e políticas. Hoje, seis países permitem o acesso total de mulheres às suas respectivas Forças: Argentina, Bolívia, Colômbia, Nicarágua, Uruguai e Venezuela. Apesar de o progresso ser heterogêneo na região, pode-se distinguir três momentos principais compartilhados pela maioria desses países.
O primeiro tem início com a necessidade de completar as vagas militares necessárias para atuar em momentos históricos específicos, a exemplo das guerras de independência e outras guerras de que participaram esses países até meados do século XX. Nesse momento, as mulheres desempenharam funções administrativas e de saúde, e não tiveram sua entrada necessariamente regulamentada.
O segundo momento se dá com a redemocratização, na segunda metade do século XX, quando houve pressão pela ressignificação e revalorização das Forças Armadas. Nesse período, as mulheres são autorizadas a ingressar nos chamados “corpos profissionais”, ou seja, adquirem uma profissão quando civis e são depois incorporadas à carreira militar. Em alguns casos, mulheres são autorizadas a ingressar em escolas de formação militar ligadas a serviços como administração, saúde e engenharia. Nesses casos, as possibilidades de ascensão são melhores, ainda que tenham uma série de restrições no que tange aos estágios e cursos específicos que podem realizar depois de formadas.
A terceira fase iniciou-se já no século XXI, quando mulheres são autorizadas a ingressar nas chamadas “escolas matrizes de formação” e, em alguns casos, passam a receber formação para se tornar combatentes. Embora as discussões sobre a entrada de mulheres como combatentes sejam ainda dominadas por estereótipos variados, elas permitem importantes avanços na promoção de uma cultura democrática e inclusiva e que conta, cada vez mais, com insumos da sociedade civil. Temas como o sistema de recrutamento, ascensão, educação e doutrina precisam ser revistos. A legislação específica e a forma como certos crimes são tratados, a exemplo de crimes de natureza sexual, precisam ser adaptadas a um contexto em que cada vez mais mulheres ingressam em um ambiente em que diversos comportamentos violentos eram vistos como naturais.
Em 2015, 1 em cada 4 países da região latinoamericana já permitiam às mulheres o acesso a todas as especialidades militares disponíveis. É notável a evolução na abertura das Forças Armadas da região às mulheres, sobretudo quando se compara o acesso em dois momentos recentes, 2009 e 2016, como ficará evidente na tabela a seguir. A entrada das mulheres nas armas de combate das Forças Armadas tem sido gradual e é resultante, em grande parte dos casos, de uma decisão política e não de iniciativa própria das instituições militares. A relação entre o acesso e o fator político é certamente motivo para resistências.
Tabela 3. Acesso a armas de combate na América Latina em dois momentos: 2009 e 2016.
Exército
Marinha
Força Aérea
País
2009
2016
2009
2016
2009
2016
Fonte: RESDAL (2016). Notas: O acesso parcial significa que houve restrições de participação nas seguintes armas, quadros ou serviços (os números estão relacionados aos países da tabela acima): 1. Infantaria e cavalaria. 3. No exército: infantaria, cavalaria, comunicações, engenharia e artilharia; na marinha: infantaria, fuzileiros e submarino; e na força aérea: infantaria. 4. No exército: infantaria e cavalaria; na marinha: infantaria, submarino e mergulho. 6. No exército: infantaria, cavalaria e aviação; na marinha: submarino e aviação; na força aérea: piloto, infantaria e oficial de ligação. 7. Não há acesso a posições de combate no exército e na marinha. 8. No exército: artilharia, engenharia e cavalaria. 9. No exército: artilharia, engenharia e cavalaria. 11. No exército: infantaria, cavalaria e artilharia; na marinha: submarino, infantaria, operações especiais, mergulho e salvamento; na força aérea: piloto de combate, defesa aérea e operações especiais; 12. No exército: artilharia, infantaria, cavalaria e serviços religiosos; na marinha: submarino, inteligência e operações especiais; na força aérea: piloto de combate e inteligência.
Argentina
Parcial
Total
Total
Total
Total
Total
Bolívia
Total
Total
Não ingressavam
Total
Total
Total
Brasil
Não ingressavam
Parcial
Não ingressavam
Parcial
Parcial
Parcial
Chile
Parcial
Total
Parcial
Parcial
Total
Total
Colômbia
Total
Total
Total
Total
Total
Total
Equador
Parcial
Parcial
Parcial
Parcial
Parcial
Parcial
El Salvador
Parcial
Parcial
Não ingressavam
Parcial
Parcial
Parcial
Guatemala
Parcial
Parcial
Total
Total
Total
Total
Honduras
Parcial
Parcial
Total
Total
Total
Total
Nicaragua
Total
Total
Total
Total
Total
Total
Paraguai
Total
Parcial
Total
Parcial
Total
Parcial
Peru
Parcial
Parcial
Parcial
Parcial
Parcial
Parcial
Uruguai
Total
Total
Total
Total
Total
Total
Venezuela
Total
Total
Total
Total
Total
Total
Tabela 4. Efetivos militares por sexo, 2016
País
Homens
Mulheres
%
Total
* Os dados da Bolívia são de 2015 e os do Peru, de 2014. Fonte: RESDAL (2016); Ministério da Defesa do Brasil (2016).
Argentina
66.163
13.709
17,01%
79.845
Bolívia*
33.415
663
1,95%
34.078
Brasil
309.658
25.507
7,61%
335.165
Chile
61.511
6.172
9,12%
67.683
Equador
40.202
1.201
2,90%
41.403
El Salvador
22.711
1312
5,46%
24.023
Guatemala
16.789
1.392
7,66%
18.181
Honduras
14.574
642
4,22%
15.216
México
246.297
21.359
7,98%
267.656
Paraguai
15.179
908
5,64%
16.087
Peru*
74.438
3.858
4,93%
78.296
República Dominicana
49.563
13.786
21,76%
63.349
Uruguai
18.294
4.022
18,02%
22.316
Venezuela
288.455
76.860
21,00%
365.315
O caso brasileiro: evolução histórica e desdobramentos recentes
Apesar de o Brasil ainda apresentar diversas restrições à participação de mulheres na linha de frente, é do século XIX o primeiro registro de uma mulher brasileira empregada em combate. Respondendo pelo nome de soldado Medeiros, Maria Quitéria de Jesus Medeiros tornou-se a primeira brasileira a integrar uma unidade militar no país. Em 1822, ela juntou-se às tropas que combatiam os portugueses no movimento de independência do Brasil. Sua atuação foi reconhecida por D. Pedro I em 1823, quando recebeu a Ordem Imperial do Cruzeiro.
Maria Quitéria abriu um importante precedente no século XIX. Mas foi somente em 1943, durante a Segunda Guerra Mundial, que as primeiras mulheres ingressaram de maneira oficial no Exército Brasileiro. Na ocasião, 73 enfermeiras e 6 especialistas em transporte aéreo se voluntariaram para atuar em hospitais do Exército norteamericano. Com o fim da guerra, a maioria delas foi condecorada e ganhou a patente de oficial, sendo depois licenciadas do serviço militar ativo.
Como nos vizinhos latinoamericanos, a entrada de brasileiras nas Forças Armadas foi regulamentada somente a partir da redemocratização e ainda está restrita às áreas de administração, engenharia e saúde. Em 1980, a Marinha do Brasil (MB) tornou-se a força pioneira na admissão de mulheres em seus quadros. No princípio, elas integravam o Corpo Auxiliar Feminino da Reserva da Marinha (CAFRM). A atuação das mulheres era, portanto, restrita a funções técnicas e administrativas em terra. Somente após a extinção da CAFRM, na segunda metade da década de 1990, o acesso das oficiais foi estendido aos Corpos de Saúde e de Engenheiros Navais. A partir de então, as militares passaram a ingressar por meio da estrutura oficial de Corpos e Quadros da Marinha.
O ingresso das primeiras mulheres na Força Aérea Brasileira (FAB) aconteceu em 1982, quando foram criados o Quadro Feminino de Oficiais da Reserva da Aeronáutica (QFO) e o Quadro Feminino de Graduados da Reserva da Aeronáutica (QFG). Já o Exército Brasileiro (EB) passou a admitir mulheres em seu Quadro Complementar de Oficiais (QCO) a partir de 1992. O ingresso das futuras militares de carreira dava-se através da Escola de Administração do Exército (EsAEX), atual Escola de Formação Complementar do Exército (EsFCEX). As profissionais atuavam em diversas áreas, incluindo de administração, saúde e informática. Desde então, as mulheres foram paulatinamente ingressando nas diversas armas e especialidades das Forças Armadas brasileiras, tanto como oficiais como suboficiais, à exceção daquelas relacionadas ao combate direto ou no nível mais básico, como soldados e cabos (o último é somente acessado pelas militares da Marinha).
Em 1996, a Academia da Força Aérea (AFA) permitiu a entrada de mulheres em sua escola de formação de oficiais, no Quadro de Oficiais Intendentes. Em 2003, a FAB voltou a inovar ao permitir a entrada de mulheres na atividade-fim da instituição, quando recebeu as pioneiras para o Curso de Formação de Oficiais Aviadores. No futuro próximo, as primeiras mulheres da FAB atingirão a maior patente da instituição, a de tenente-brigadeiro-do-ar.
A Lei 12.705, 12 de agosto de 2012, contribuiu para que as Forças Armadas, em especial o Exército, abrissem as portas para mulheres. Na Escola de Formação de Oficiais da Marinha do Brasil, também chamada de Escola Naval (EN), a entrada foi permitida em 2014, quando as mulheres foram autorizadas a integrar o Quadro de Oficiais Intendentes. Além disso, foi anunciado em abril de 2013 que até 2017 elas também ingressariam os corpos da Armada e dos Fuzileiros Navais. Atualmente, o Exército já atua com a primeira turma mista da Escola Preparatória de Cadetes do Exército (EsPCEx) e se prepara para receber, em janeiro de 2018, as primeiras mulheres em sua principal escola de formação de oficiais, a Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN). Será permitida a participação das cadetes em quadros e serviços de apoio, como Intendência e Material Bélico. Em 2016, concurso para ingresso na EsPCEx, que antecede o ingresso na AMAN, teve concorrência de 192 candidatas por vaga, deixando claro o interesse das mulheres em ingressar nessa escola, até então fechada para elas.
A presença de mulheres nas Forças Armadas brasileiras nos tempos atuais
Em 2016, as mulheres somaram 8% do efetivo total das Forças Armadas do Brasil, com um quantitativo de 25.507 militares do sexo feminino. Desse total, 30% estão na Marinha, 32% no Exército e 39% na Força Aérea. A distribuição de mulheres de acordo com os círculos e com os postos varia de forma significativa entre as Forças. Na Marinha, a maior parte das mulheres é oficial (65%). Já no Exército e na Força Aérea, a maior parte das mulheres é Subtenente/Suboficial ou Sargento, 55% e 61%, respectivamente. Cabe destacar que a maioria do efetivo feminino, seja de oficiais, seja de subtenentes/suboficiais ou sargentos, é do quadro temporário (70%). Na Marinha e no Exército há cabos mulheres e a única oficial general das Forças Armadas do Brasil também está na Marinha.
Gráfico 1. Participação das mulheres na Marinha do Brasil (2016)
Gráfico 2. Participação das mulheres no Exército Brasileiro (2016)
Gráfico 3. Participação das mulheres na Força Aérea Brasileira (2016)
Em 2016, entre as três forças, a FAB concentra o maior número de mulheres em relação ao seu efetivo total, são 10.192 mulheres, o que corresponde a 15% do total, seguida pela Marinha, com 7.549 (13%) e pelo Exército, com 8.110 (4%).
Gráficos 4, 5 e 6. Efetivo total de cada Força Armada brasileira de acordo com o sexo (2016)
Entre os Oficiais, as mulheres representam 22% do efetivo total das três forças e, entre Subtenentes/Suboficiais e Sargentos, o número chega a 13%. No entanto, entre os oficiais generais e os cabos/soldados/marinheiros, os percentuais são irrisórios.
Gráfico 7. Distribuição do efetivo das Forças Armadas brasileiras por sexo e por círculo (2016)
Entre 2012 e 2016, houve um incremento de 23% no efetivo feminino das Forças Armadas brasileiras, sendo a Força Aérea a que mais incorporou mulheres nesse período, em termos percentuais (27%) e absolutos (2.097 militares). Esse período coincide com o início da vigência da Lei nº 12.705, de 2012, que dispôs sobre a incorporação das mulheres nas academias militares. No entanto, o aumento ocorreu principalmente no posto de sargento, para o qual o ingresso não exige a passagem pelas academias de formação.
Gráfico 8. Efetivo das Forças Armadas do Brasil, por sexo (2012 -2016)
Gráfico 9. Efetivo das Forças Armadas brasileiras, por círculos e por sexo (2012 - 2016)
O incremento dos últimos anos é significativo e pode alterar, em alguma medida, a perspectiva cultural e sociológica sobre a mulher militar. No entanto, cabe destacar que as mulheres ocupam, em sua grande maioria, os postos temporários das carreiras, o que limita a sua atuação na atividade finalística das Forças.
A título de exemplificação, nota-se que de 2004 a 2016 a porcentagem de mulheres que compõem o quadro de oficiais do Exército aumentou em 5%, passando de 15,4% em 2004 para 20,9% em 2016. No entanto, a principal forma de ingresso de mulheres no Exército - e nas Forças Armadas brasileiras como um todo - ocorre através de cargos temporários, com conhecidos desafios para a ascensão na carreira. Considerando-se assim a presença de mulheres oficiais no Exército brasileiro, observa-se que 70% delas são temporárias. Para os homens, os números são exatamente o inverso, com 70% deles figurando como oficiais de carreira em 2016. Em outras palavras, observando-se somente o número total de oficiais de carreira (22.762), as mulheres são apenas 1.343, ou somente 5,9% do universo de oficiais de carreira do Exército.
Essa constatação é reforçada pelo fato de ainda haver um quantitativo extremamente baixo, ou irrisório, de mulheres como cabos, soldados e marinheiros (postos de menor patente) e como oficiais generais (postos de mais alta patente que comandam as diversas atividades das forças, seja em tempos de paz ou de guerra).
A integração de cadetes/aspirantes mulheres às academias militares
A entrada de mulheres nas três principais academias militares para formação de oficiais no Brasil é um importante passo para a promoção de políticas de inclusão nas Forças Armadas brasileiras. Ao mesmo tempo, coloca em evidência a persistente desigualdade de gênero na sociedade. As Forças Armadas, embora com ethos próprio, refletem e, de certa maneira, intensificam as tendências presentes em nossa sociedade.
Com efeito, a pesquisa realizada mostrou que muitas das dificuldades enfrentadas por mulheres que optaram pela carreira militar são também compartilhadas por mulheres civis. Incluem, por exemplo, a expectativa social sobre seu papel diferenciado como mãe e esposa, as dificuldades de reinserção após a maternidade, e a associação entre fragilidade, sensibilidade e emoção à mulher, o que insere desafios extras para que possam ascender na carreira.
Para entender melhor essas questões no Brasil, foi realizada uma extensa pesquisa de campo nas três escolas de formação de oficiais das Forças Armadas brasileiras. A partir da análise das entrevistas com oficiais e cadetes, os seguintes temas emergiram:
Desafios de ordem subjetiva, relacionados aos estereótipos e construções sociais sobre o que é masculinidade e feminilidade e ao papel incumbido a cada grupo de gênero na sociedade;
Desafios de ordem prática, relacionados ao acesso limitado das mulheres a certas armas e especialidades das Forças Armadas, infraestrutura e restrições quanto às formas de ingresso e ausência de legislação;
Papel das forças armadas, características da guerra no mundo atual e a necessidade de manutenção de um “exército de fortes”.
Metodologia
Esta pesquisa desenvolveu-se em duas etapas. A primeira delas baseou-se em abordagem qualitativa, a partir de extensa revisão bibliográfica e análise de fontes primárias (como legislações, códigos de conduta, etc.) sobre a integração das mulheres às Forças Armadas no Brasil e no exterior. Focou-se, em especial, no impacto que a presença delas acarretou para diferentes Forças Armadas. A segunda etapa incluiu a realização de entrevistas com grupos focais e indivíduos chave a partir de um questionário semiestruturado nas academias militares de formação de oficiais das três Forças Armadas. Utilizou-se também o método de observação participante a partir da imersão da equipe pesquisadora nas escolas militares que foram objeto desse estudo.
O questionário visou captar: (1) noções de masculinidade e feminidade e sua relação com valores militares; (2) percepções a respeito do impacto da incorporação de mulheres nas Forças Armadas e, mais especificamente, nas academias militares; e (3) obstáculos concretos e subjetivos para sua plena integração. Para o Exército, bastante atuante em operações de manutenção da paz, buscou-se também identificar um quarto elemento: (4) percepções sobre o papel das mulheres na promoção da paz sustentável, bem como práticas que contribuam para a proteção de civis contra violência de natureza sexual.
Com vistas a melhor captar esses aspectos, o questionário abordou questões como valores, competências e habilidades necessárias para a carreira militar, características de um bom líder e em que medida homens e mulheres apresentam características de liderança distintas. Também foram abordados aspectos notoriamente desafiadores para o ingresso das mulheres na linha militar bélica, a exemplo dos treinamentos físicos, adequação de infraestrutura e regulamentos internos, bem como o impacto da carreira na família.
A partir da análise das entrevistas, o estudo esteve centrado em questões que afetam as condições de acesso, ascensão e permanência nas Forças Armadas.
Principais resultados
Como já mencionado, a integração de mulheres às Forças Armadas brasileiras teve importante impulso na última década, quando a Marinha e o Exército anunciaram e implementaram o projeto de abrir as suas escolas de formação de oficiais para cadetes do sexo feminino, a partir da Lei 12.705. Apesar da existência de quotas específicas e da limitação com relação às armas que podem ser escolhidas pelas cadetes, a entrada por meio das escolas de formação permite, ao longo da carreira, maiores possibilidades de ascensão. Atualmente, a principal porta de entrada para mulheres é ainda o quadro complementar, que limita suas possibilidades de acesso e ascensão.
Nas três escolas militares optou-se por uma quota de 10% que seria somada ao total de vagas. Argumentou-se que, para viabilizar a entrada de mulheres, seria importante que a princípio elas não disputassem as vagas dos homens. Nesse sentido, as mulheres concorreriam somente entre si para o ingresso nessas escolas. Com o tempo, o concurso passou a ser unificado e sem quota na AFA. O primeiro concurso de mulheres para a Escola Preparatória de Cadetes do Exército, realizado em 2016, também foi com quota de 10%. Na EN, a quota permanece.
As vagas são limitadas por corpo: não sabiam se a gente ia tomar as vagas entre 33 dos homens, ou se abririam vagas extras para a gente. Então, decidiram que iam abrir 12 vagas a mais para as mulheres, não tomamos vaga de ninguém.
A partir do momento em as vagas para mulheres deixaram de ser reservadas na AFA, duas tendências foram observadas. No caso da intendência, aumentou-se consideravelmente o número de cadetes mulheres, a ponto de, na turma de 2016, haver mais mulheres que homens. No caso da aviação, no entanto, diminuiu-se o número de cadetes mulheres. Tal diminuição é utilizada como argumento contrário à presença da mulher nessas instituições, apresentado como justificativa para que o acesso continue restrito. Entre os críticos, argumenta-se que mulheres não têm interesse em ser aviadoras ou que têm habilidades psicomotoras inferiores às dos homens, daí a taxa de atrito (ou desligamento) maior entre mulheres.
Na verdade, a aviação não atrai mulheres. As mulheres, em geral, não gostam muito de pilotar. Preferem funções mais organizativas e são boas comunicadoras.
Eu constatei que existem diferenças na velocidade de aprendizado. Por exemplo, homem tem habilidade motora mais apurada, mulher tem mais cognitiva.
Acho que tem algo psicomotor — temos facilidade em umas coisas e dificuldades em outras. Mas tem mulher aqui que voa muito melhor que o homem. Aqui a gente constrói a igualdade, reforça que fazemos tudo igual ao homem.
Acompanhei várias cadetes mulheres e a maior dificuldade que eu percebi relaciona-se a justamente àquela brincadeira de mulher não saber estacionar. Há de fato uma diferente noção espacial. Elas têm mais dificuldade com exercícios de aproximação de pouso
Ainda com relação ao ingresso nas academias militares de formação de oficiais, é importante destacar uma particularidade da Marinha e da Força Aérea. Até 2016, meninas não podiam ingressar nas escolas militares (Colegio Naval e Escola Preparatória de Cadetes do Ar), em regime de internato, o que impactava em seu acesso às academias. Assim, para ingressar nas academias, a elas só restava a possibilidade de prestar concurso público. O impacto era sentido também após o ingresso. Os ingressantes do meio civil são conhecidos internamente como “PQD” (em referência a “caiu de paraquedas”) na AFA e como “Quebec” (em referência à letra “Q” do alfabeto fonético) na EN. As entrevistas demonstram que existem algumas diferenças consideráveis entre cadetes/aspirantes provenientes dos colégios militares, em especial no que tange ao preparo físico e à adaptação ao meio militar. Eles geralmente têm afinidade entre si e muitas vezes chegam com um patrono de turma definido, gerando desgaste entre os colegas quando é sugerido que mudem. Por sua vez, os ingressantes provenientes do meio civil - que seria o caso de todas as meninas que ingressam na Marinha e na FAB - teriam, no primeiro ano, dificuldades extras de adaptação e estariam mais propensos a lesões.
Escolhemos um patrono no Colégio Naval que não foi aceito aqui na EN. Acabou sendo o Almirante Gastão Motta, que é almirante intendente. Mulheres só podem ser intendentes e influenciaram a decisão do patrono. Éramos a primeira turma com mulheres
O teste físico inicial para entrada na Academia é muito fraco, os parâmetros são muito baixos. Então, o que ocorre é que o cara passa muito tempo estudando para o concurso e não faz exercícios. Isso faz com que ocorram muitas lesões por estresse no período inicial. Nesse sentido, o povo que vem da EPCAr tem vantagem, está mais preparado. Quem não vem de lá leva mais tempo para se adaptar
A partir de 2017, no entanto, a Escola Preparatória de Cadetes do Ar (EPCAr) permitirá o acesso de meninas, o que deverá impactar positivamente em sua presença nas academias de formação de oficiais dessa força. O Colégio Naval, por outro lado, continua fechado à entrada de mulheres.
O maior empecilho para o acesso de mulheres, no entanto, ocorre já no âmbito das academias e se refere à restrição a algumas armas. Na Força Aérea, somente a infantaria permanece fechada para mulheres. De fato, as entrevistas com os cadetes da AFA revelam um consenso sobre a possibilidade de mulheres serem intendentes e até aviadoras, porém não há consenso sobre a infantaria. Entre os oficiais instrutores existem visões a favor de mulheres na infantaria desde que não se modifiquem os requisitos operacionais mínimos.
Acho que qualquer área de atuação deveria ser aberta, mas desde que houvesse um requisito operacional mínimo. Não posso abrir para a mulher e por isso deixar de fazer uma atividade de infantaria. Com parâmetros operacionais idênticos é válido. O que não é saudável para inserção feminina é diminuir parâmetro para favorecer inserção
Um aspecto importante destacado nas entrevistas na AFA foi a percepção de que a primeira turma de aviadoras foi “protegida” e que havia pressão para que não houvesse desligamento. Em entrevista com oficiais que presenciaram a entrada das primeiras mulheres aviadoras, destacou-se também a percepção entre os colegas de que elas eram “estrelinha”. Chamou-se a atenção para a presença constante da mídia para entrevistas e fotos, e foi necessário retirá-la de exercícios de adaptação e outras atividades em sala de aula. Essas ações, por parte da AFA, contribuíram para um sentimento de injustiça em relação aos colegas do sexo masculino, gerando, inclusive, uma competição negativa entre eles.
Quando entramos, tinha muita imprensa em cima da gente. Quando chegamos como estagiárias, tinha Globo, Fantástico, todo mundo filmando. Isso causou estranheza para todos os cadetes. ‘Ah, elas são as estrelas!’. Não pedimos nada, mas gerou um desconforto horrível. Tiraram a gente da entrevista para filmar, entrar em forma, tudo para aparecer para a mídia. Os cadetes mais antigos e da nossa turma já ficaram com raiva. Esse tratamento diferenciado acabou prejudicando a gente.
Ficamos com estigma de estrela. Os cadetes mais acima ficavam indignados com toda curiosidade e interesse em cima da gente. Isso começou a refletir porque teve muita gente de fora querendo fazer estudos com a gente — tese, monografia — e começaram a estudar nossa parte física e começou a fazer educação física para criar músculo — tudo para fazer esse teste. No final de semana íamos para faculdade de São Carlos para fazermos testes físicos. Esse tratamento diferenciado aguçava a raiva. Isso despertava o estrelismo. Tudo que a gente não conseguia fazer eles diziam ‘ué, mas vocês não têm treinamento especial, por que não está aguentando?’
A primeira turma de intendência sofreu as mesmas resistências. Em entrevista com oficial que fez parte dessa turma, foi destacada também a existência de piadas sobre os colegas do sexo masculino, que eram com frequência comparados a mulheres, já que integravam uma “turma de mulheres” e não uma “turma com mulheres”. Houve ainda a modificação da grade curricular, excluindo-se, por exemplo, o salto de paraquedas, o que gerou desconforto entre os cadetes e aumentou as piadas com todos daquela primeira turma.
Quando entrou mulher, tiraram paraquedismo da Intendência. A primeira turma [de mulheres] tinha muita lesão. Então tiraram da intendência. Foi difícil não achar que não foi pela mulher. Mas quando entrou mulher na Aviação, voltou o salto pra todo mundo, inclusive na Intendência.
A modificação da grade curricular foi observada também na primeira turma de intendentes da Escola Naval, em 2014. Diferente da AFA, em que os cadetes prestam concurso para uma arma específica, na EN é somente após os dois primeiros anos que o aspirante escolhe a arma que quer seguir. A escolha se dá pela classificação geral. Por essa razão, nos dois primeiros anos do curso básico, a grade curricular de todos os aspirantes é idêntica. A grade curricular das mulheres que ingressaram em 2014 foi a única exceção.
Na EN, os aspirantes podem escolher três armas: Intendência, Armada e Fuzileiros Navais. Às mulheres só é permitida a entrada para a Intendência, o que significa que, diferente dos aspirantes homens, elas sabem, desde o ingresso, a que arma pertencerão. Inicialmente, argumentou-se que, por essa razão, não precisariam cursar certas aulas, como a de física, necessárias principalmente para os aspirantes da Armada. Com o tempo, percebeu-se que estavam capacitando intendentes com formação diferente e a primeira turma acabou fazendo um supletivo de física no segundo ano.
No primeiro ano elas não tiveram física, mas a Marinha viu que estaria formando dois intendentes distintos. Então, foi feito estudo: se questionaram, será que podemos fazer a escolha de corpo ao invés do terceiro ano, passar para o primeiro ano? Mas a diretoria decidiu: não vamos mudar o período de escolha, mas vamos fazer com que elas tenham o CV igual. Ainda que aquilo não seja tão relevante para um intendente, elas terão CV igual. Eu acho que isso para elas foi muito importante
Essa diferenciação trouxe desafios extras, de ordem subjetiva, para as aspirantes, que foram motivo de chacota por parte de alguns colegas. Em entrevista, oficiais instrutores da EN relataram que os colegas de turma perguntavam às meninas sobre notas em física:
“E aí passou em física?” No primeiro ano substituíram física por cultura organizacional militar. Isso foi um dos impactos do primeiro ano, tivemos que escutar que estávamos sendo favorecidas, acochadas, etc.
No Exército, em janeiro de 2017, as cadetes do sexo feminino puderam ingressar na Escola Preparatória de Cadetes do Exército (EsPCEx), formação que ocorre antes do ingresso na AMAN. No início de 2019, já na AMAN, as futuras cadetes poderão escolher entre o serviço de intendência e o quadro de material bélico. Nesse momento, será importante que, a partir das lições aprendidas na AFA e EN, mantenha-se na AMAN o curso básico idêntico para todos os cadetes, independente do sexo, evitando-se diferenças que podem gerar maior competição e sentimento de injustiça. A atenção provocada pela mídia deve também ser de alguma forma controlada.
Deve-se ressaltar que, como na EN e na AFA, há a percepção entre vários cadetes da AMAN (por enquanto todos do sexo masculino) de que as mulheres não poderiam escolher qualquer uma das armas-base ou de apoio ao combate (infantaria, cavalaria, artilharia, engenharia e comunicação). Essa percepção, ainda que não seja consensual, corresponde à da maioria e está também presente em grande parte nas entrevistas de oficiais e instrutores. De modo geral, existe consenso sobre as habilidades femininas para a administração e logística, identificadas com as funções desempenhadas pelos intendentes. Essa percepção baseia-se, muitas vezes, em estereótipos, presentes nas entrevistas de homens e de mulheres – inclusive cadetes intendentes da Aeronáutica e da Marinha - sobre as habilidades e competências específicas das mulheres.
As exigências físicas são altas, é preciso ver a necessidade de submeter a mulher a isso. Não sei se ela aguentaria, é desgastante. Talvez ela possa contribuir mais em material bélico e intendência
[A entrada das mulheres] para a linha bélica, ok. Mas não para todas as armas, pelas restrições fisiológicas. Nos EUA, as condições são idênticas às do homem, várias mulheres já ficaram estéreis. As condições de higiene não são boas, há casos de distúrbios hormonais etc. Combate exige atributos físicos
Mulher se enquadra bem na área logística, capacidade de planejamento, organização, preparar comboio. Melhor empregada neste setor
Ser combatente envolve carregar peso. O Tenente dá as instruções básicas para o soldado, como rastejar, etc. Depois é que entram as partes específicas de cada área. A área de combatente atrapalharia a mulher. Mas a parte específica de logística, Material Bélico, etc, seria ótima
Nas atividades logísticas nos destacamos, temos um olhar diferente para as necessidades. Os impactos ainda estão sendo gerados, a entrada das mulheres ainda é muito recente, mas as mulheres agregam no sentido de estarem mais abertas e perceberam melhor as necessidades dos outros. Elas lidam melhor com as pessoas.
Na nossa área administrativa somos mais inteligentes, sagazes, conseguimos conciliar várias coisas ao mesmo tempo. A mulher se desempenha muito melhor do que o homem nisso. O homem pára para pensar etc., a mulher resolve. Mas, por outro lado, o físico do homem é mais apurado e, dependendo da situação, ele pode ser mais útil
Acima de tudo somos militares, e temos que cumprir a missão atribuída independente do sexo. Acho que as mulheres têm umas qualidades e os homens, outras. Em termos de planejamento e logística a gente trabalha bem melhor do que eles.
Observa-se, assim, que há uma valorização do papel da mulher nas Forças Armadas, ainda que restrita a certas armas e especialidades. Permanecem dúvidas, porém, sobre a capacidade de mulheres participarem das armas diretamente relacionados ao combate.
Temas mais controversos, levantados a partir das entrevistas
Com vistas a evidenciar os pontos mais controversos, será analisada, a seguir, a percepção dos cadetes/aspirantes e oficiais sobre cinco temas:
Valores, habilidades e competências para ser militar;
Aspectos necessários para uma boa liderança;
Adaptações logísticas e de infraestrutura;
Impacto das mulheres no comportamento de cadetes/aspirantes e oficiais;
Relacionamento, gravidez e família.
(I) Valores, habilidades e competência para ser militar
As entrevistas com instrutores e cadetes/aspirantes das três escolas militares mostraram que homens e mulheres compartilham quase de forma homogênea os valores militares e a importância que eles têm para o cumprimento de sua função. Os valores citados pelos entrevistados incluem disciplina, hierarquia, patriotismo, honestidade, abnegação, honra, responsabilidade, cumprimento da missão, camaradagem, entre outros. Isso evidencia que são valores compartilhados por todos, a despeito do sexo e da função desempenhada nas escolas.
Duas entrevistadas destacaram, ainda, a função paralela que a disciplina pode ter para ajudá-las a superar alguns desafios de ordem subjetiva: “Para as mulheres, a coragem é o valor mais arraigado. Para nós, é preciso, além de coragem, muita disciplina para conseguirmos enfrentar a rotina diária e nos mantermos dentro da Força”. Outra entrevistada acrescentou: “A disciplina é de fato fundamental, sobretudo porque há uma enorme pressão para que a gente não chore. Se choramos, viramos alvo de críticas e brincadeiras”.
Apesar dessas semelhanças, algumas diferenças significativas também foram observadas ao avaliar as competências e habilidades que os militares devem ter ou adquirir para cumprir a sua função. Nesse caso, importantes diferenças pautadas pelo sexo foram observadas, muitas vezes baseadas em estereótipos.
De forma geral, os entrevistados destacaram que, para o cumprimento de sua função, são necessárias habilidades psicomotoras, físicas e emocionais que tanto homens como mulheres têm. No entanto, a maioria dos entrevistados afirmou que a manifestação das habilidades e competências pode mudar conforme o sexo. As mulheres teriam maiores habilidades para atividades de inteligência, pois a percepção feminina seria mais aguçada que a do homem. A mulher teria também maior capacidade de resistência e resiliência. Já os homens teriam maior propensão a ações que exigem vigor físico. De forma geral, cadetes/aspirantes e instrutores também destacaram a defasagem física das mulheres como um fator a ser considerado, em especial os entrevistados que são das armas relacionadas ao combate.
Temos que pensar que nos preparamos para ir para guerra. Por isso, temos que avaliar: é interessante ter a presença feminina? Ou será que não estamos querendo promover a entrada em lugares que ela pode não ser tão eficiente? Temos que pensar que o bem maior é proteger a nação. Em uma guerra você tem que mandar tropas para o combate e corre-se o risco de a atuação da mulher reduzir a eficácia da tropa. Será que é interessante correr esse risco?
Estava conversando uma vez com um cara do Reino Unido e ele disse que eles estavam avaliando se mulheres iriam poder entrar nas armas de combate direto. Ele disse que no Exército israelense, que tem mulher combatente, o homem se arriscava mais; que ele se arriscava e se expunha mais ao risco para salvar a mulher.
Os EUA usaram mulheres em vários combates, basicamente na área de logística. Todas as vezes em que colocaram no terreno, na área de infantaria, olho no olho, tiveram problemas. Menstruação, TPM, etc.
Alguns entrevistados, inclusive cadetes e oficiais mulheres e alguns do sexo masculino – em especial aqueles que estão na intendência - destacaram que mulheres podem ocupar qualquer função nas forças armadas. Trata-se de atitude positiva que pode facilitar a inserção plena de mulheres no futuro. Atitudes positivas foram identificadas principalmente entre os militares mais jovens, as militares mulheres e também entre os militares de armas e especialidades relacionadas ao apoio ao combate.
Incorporar a mulher é uma maneira de evoluir. Nos EUA. No próprio Brasil, AFA e Escola Naval já têm, o EB precisa evoluir. Mulher no combate pode ter opinião diferente, percepção diferente, pode agregar na missão. Adiciona uma perspectiva à situação. Acham que comunicações e artilharia, armas técnicas, podem também ser abertas. Mas armas base, infantaria e cavalaria, que exigem esforço físico maior, precisa de estudo maior para futuramente inserir nessas armas, de modo que não seja prejudicial para elas nem para o EB. Vai depender do desempenho delas, para saber se vai abrir para outras armas ou não.
Sou totalmente favorável. Acho que inicialmente é interessante ela não entrar diretamente no combate. É preciso haver adaptação; e com o tempo ela vai estar apta a entrar em outras armas. A história diz isso: vimos as rangers americanas, elas entraram.
Eu já vi situações aqui que a mulher se mostra até mais disposta que os homens, cantando com mais intensidade. Já vi exercícios com os homens acabados e as mulheres se mostrando bem. Agora, ela tem que ter liberdade de escolha, a infantaria e cavalaria, eu acho que poderia estar aberta, eu não vejo problema.
Os fuzileiros já tem gente [mulher] fazendo curso. Ela estará apta a comandar corpo de infantaria dos fuzileiros. Por que não?
Já temos exemplos, EUA, Reino Unido, já vimos o que deu certo e errado. Isso na parte dos fuzileiros deveriam estudar os exemplos porque teríamos menos margem para errar. Porque no mundo já existem exemplos, não estaríamos inventando nada. Tem onde pesquisar, tem campo para estudar isso.
Acho que qualquer área de atuação deveria ser aberta, desde que houvesse um requisito operacional mínimo. Não posso abrir para a mulher e por isso deixar de fazer uma atividade de infantaria. Com parâmetros operacionais idênticos é válido. O que não é saudável para a inserção feminina é diminuir parâmetro para favorecer inserção.
Eu acho que não se deve restringir [a entrada das mulheres na Infantaria]; se ela quer, ela tem que ter a chance. E ela tem que ter ciência das consequências que isso pode ocasionar; ela tem que saber que pode a impactar ou não, inclusive negativamente. O homem também pode gerar impacto negativo; ela tem que estar dentro dos requisitos. Acho que a mulher só estará engajada no militarismo quando a Força começar a ver como militar e não como mulher
Alguns entrevistados também demonstraram atitudes positivas com relação à possibilidade de ingresso, por mulheres, em outras especialidades, como a Armada na Marinha e comunicações e engenharia no Exército. No caso da Armada, argumentou-se que os principais empecilhos referem-se à infraestrutura, já que os navios da Marinha não estão adaptados para a presença de mulheres, o que dificultaria o embarque. Apesar disso, houve manifestações positivas que ressaltaram a existência de embarcações que já possibilitam o embarque de homens e mulheres, como é o caso da Marinha mercante, e que diversas marinhas no mundo entendem que a presença de mulheres seja um importante indicativo de modernidade - e o Brasil não deveria ficar para trás.
Ao longo da carreira ouvi vários mitos, já ouvi que mulher não pode voar em caça de alta performance (aí eu fui e perguntei para um comandante nos EUA e ele disse que lá mulher voava F18). Então é tudo mito, não há restrição física. Lá elas comandam submarino etc. Não há restrição física, mas há problema social e problema de adequação dos meios. Colocar mulher nos nossos navios de combate seria muito difícil. Teríamos que adaptar muito.
Na AMAN, algumas entrevistas aventaram a possibilidade de que comunicações e engenharia também fossem abertas às mulheres, já que são armas de apoio ao combate de certa forma semelhantes a intendência e material bélico. Apesar das diversas manifestações positivas, algumas entrevistas na AMAN mostraram que ainda há receios. Mencionou-se, por exemplo, que o especialista em comunicações está, muitas vezes, na linha de frente, posição vista como inadequada para mulheres. No caso da engenharia, falou-se sobre a dificuldade enfrentada pelos times de engenheiros que muitas vezes vão à frente das tropas para construção de pontes, por exemplo.
Sou a favor da entrada na linha bélica, mas principalmente na linha da logística, pelo menos até a gente ter mais dados de que a presença dela não afetará a operacionalidade. Nas armas de primeira linha, infantaria, cavalaria, engenharia, a condição física da mulher impossibilita um bom trabalho. A engenharia é um trabalho penoso para o homem e inviável fisicamente para a mulher, sem preconceito, isso é questão física
Em um primeiro momento acho que não [devem ser abertas todas as Armas às mulheres]. Talvez deveria ter sido aberto Comunicação no lugar de Material Bélico, por ser algo técnico. A parte de tecnologia, de cibernética é compatível com os dois sexos. Então, abrir para outras armas dependeria da experiência com essas duas. Abrir para outras pode ser prematuro por conta das exigências físicas
Tem partes de comunicação, cibernética etc. que ela pode, é tranquilo, mas tem atividades de linha de frente nisso aí seria restrito
Outra preocupação mencionada é a de que a entrada de mulheres pode gerar um vácuo nas armas ou especialidades no futuro. O receio fundamenta-se na premissa de que um número considerável de mulheres desistiria da carreira, o que poderia gerar um problema no efetivo de algumas armas ou especialidades.
No caso da AFA, há uma aceitação maior quanto à possibilidade de mulheres desempenharem atividades operacionais, inclusive as de infantaria. Os oficiais, independentemente do sexo, defenderam que qualquer arma ou especialidade deveria ser aberta às mulheres. Fez-se a ressalva, contudo, de que é importante que os parâmetros operacionais se mantenham idênticos, ou seja, não é razoável reduzir os parâmetros operacionais em prol da inserção.
Algumas cadetes destacaram que, considerando a importante contribuição que mulheres podem oferecer às demais funções, talvez não fosse necessária a sua exposição aos desgastes da infantaria. Para outras, porém, a entrada da mulher na infantaria seria importante para romper preconceitos. Nesse sentido, entendem que à mulher deveria ser dada a chance de tentar a carreira. Caso não conseguisse alcançar os requisitos necessários, deveria ser desligada, da mesma maneira que o homem.
Os cadetes do sexo masculino, por sua vez, se mostraram mais reticentes à ideia de inserção em armas relacionadas ao combate. Para eles, a fim de que as mulheres suportassem a infantaria, o curso teria que ser adaptado às necessidades delas. Julgaram, portanto, que a Força deve prezar pela excelência e priorizar a defesa nacional. Assim, ponderaram que as exigências da carreira não deveriam ser restringidas para favorecer a integração.
Tabela 5. Citações a favor e contra a inserção de mulheres na infantaria da Força Aérea (a partir de entrevistas realizadas na AFA)
A FAVOR
CONTRA
“É preciso abrir para as mulheres na infantaria. Até porque, aqui temos um currículo básico. Uma pessoa [homem ou mulher] que se tornar infante terá as mesmas aulas e instruções e a mesma preparação para fazer uma patrulha, por exemplo. Estamos aqui para aprender, então, é preciso abrir.” (cadete, sexo feminino, AFA).
“Acho que seria difícil mulher suportar o curso [de Infantaria]. Coisa complicada para mulher é o peso da mochila, que é igual para todos, e mulher tem porte físico menor.
A higiene também é complicada. Mulheres precisam de cuidados especiais e homens não. Na Infantaria fca no carro sem banho. Se as mulheres de infantaria conseguissem passar no teste físico, será que elas conseguiriam acompanhar o curso? Não sei. Tem o caso daquela Marine americana que não conseguiu”. (cadete, sexo masculino, AFA).
“É preciso abrir para as mulheres. Dizem que ela quer tomar o lugar do homem, mas não. Ela tem que estar onde ela quer estar. Se ela quer ser infante, precisa ter o direito.” (Cadete, sexo feminino, AFA).
“Em algumas atividades ela pode prejudicar a força. Por exemplo, em um ambiente de guerra, como um navio afundando, mulher é a primeira a ser salva. É porque ela gera esperança. Tem que ter cuidado por ela ser mãe, tem que amamentar etc.” (Cadete, sexo feminino, AFA).
“Existem muitos homens que não permanecem no curso de infantaria. Se for o mesmo padrão que é para os homens, não vejo porque não abrir para as mulheres. A defesa tem que ser feita, então temos que ver onde ela pode contribuir. Na intendência elas estão sendo um sucesso. Talvez não haja diferença [em relação ao homem] se ela for colocada no combate.” (Cadete, sexo masculino, AFA).
“A preocupação do Ministério da Defesa com relação às forças armadas às vezes aparenta ser uma defesa dos interesses de entrada da mulher, mas não o foco de defesa do país. Exemplo, preciso colocar mulheres se elas demonstrarem que ela tem capacidade para contribuir. Por exemplo, na intendência não tem porque não deixar ela atuar. Mas na infantaria é mais complicado.” (Cadete, sexo masculino, AFA).
“Qualquer área deveria estar aberta desde que houvesse um parâmetro mínimo operacional. Não pode abrir a infantaria e deixar algumas atividades de fora. Diminuir o parâmetro leva a problemas de relacionamento e de operacionalidade.” (Oficial, sexo masculino, AFA).
“A AFA é de excelência porque ela não se adequa à pessoa. A pessoa é que tem que se adequar a ela. Não podemos baixar o nível da academia só para trazer mais pessoas. Mudanças são necessárias, seria interessante trazer mulher para infantaria. Mas precisamos ver se isso ocasionaria em prejuízo. A efcácia seria diminuída? O oficial continuaria de excelência? Até que ponto é interessante facilitar?” (Cadete, sexo masculino, AFA)
“Demorou 6 anos para ver que mulher também podia ser aviadora e estamos na aviação há 13 anos. Não se cogita realmente possibilidade de ter mulher na infantaria, mas acho que em 20 anos, quem sabe.” (Cadete, sexo feminino, AFA).
“Tem que ver a necessidade. Embora tenha em outros países, eu acho que não há necessidade de submeter a mulher a isso, a não ser que ela queira. Não tem necessidade de submetê-las a uma coisa que não sei se ela vai aguentar. A infantaria é atividade de risco e desgastante, talvez ela possa colaborar mais no material bélico; em algumas atividades ela vai prejudicar a Força.” (cadete, sexo feminino, AFA).
Portanto, apesar de não haver consenso, as entrevistas realizadas na AFA indicam que há um considerável grau de aceitação na Força Aérea de que as mulheres devem ser permitidas a atuarem em posições de combate, inclusive na infantaria. Essa maior abertura é ainda mais notável quando comparada ao posicionamento externado pelos entrevistados nas academias de formação de oficiais da Marinha e do Exército.
Outro tema sem consenso refere-se à política de quotas. No caso do EB, há uma quota inicial de 10% para as mulheres do efetivo total que o ingresso na Escola Preparatória. No futuro, há expectativas de que o efetivo feminino não exceda 30% do efetivo total de cada especialidade, para não afetar a operabilidade. A EN, até o momento, também possui uma quota de 10% para as ingressantes da intendência e não há informações disponíveis sobre como será ou mesmo se haverá incorporação na Armada e Fuzileiros. Na Força Aérea, por sua vez, não há atualmente qualquer quota. É interessante reforçar que , como já mencionado, a atual turma de intendentes (primeiro ano) tem uma pequena maioria de mulheres (51%).
Assim, conclui-se que, além dos argumentos fundamentados especificamente na diferenciação da força física entre homens e mulheres, persistem desafios de ordem subjetiva para o acesso de mulheres a funções da linha de frente. Verifica-se que as entrevistas replicam muitos dos argumentos elencados como mitos no início dessa publicação, sobretudo os que se baseiam na associação da imagem da mulher à da mãe, da irmã e da filha, e não necessariamente como profissional e colega.
Embora esses argumentos pareçam misóginos e exagerados, é importante destacar que, guardadas as devidas proporções, também se observa no “mundo civil” a imediata associação da mulher ao papel de vítima e não necessariamente chefe da família, forte e profissional. A própria agenda sobre mulheres, paz e segurança das Nações Unidas é constantemente alvo de críticas por parte do movimento feminista pois associa a necessidade de presença de mulheres, justamente para melhor atender as vítimas dos conflitos contemporâneos – mulheres e crianças – e não necessariamente para contribuir para a promoção e manutenção da paz e segurança internacionais.
(II) Aspectos necessários para uma boa liderança
As academias militares são voltadas para a formação de oficiais das forças armadas brasileiras e, como consequência, a capacidade de liderança é um aspecto central a ser analisado.
No âmbito das competências e habilidades, alguns cadetes/aspirantes e instrutores ressaltaram que as mulheres podem enfrentar dificuldades no exercício da liderança em razão da defasagem física, já que o exemplo seria a principal competência de um bom líder. Vários recorreram à máxima “a palavra convence e o exemplo arrasta”. Destacou-se, por outro lado, que as mulheres têm algumas habilidades emocionais importantes para o exercício da liderança.
[A liderança] independe do sexo, tem mais a ver com a competência. Isso vai ser gradativo, o soldado vai olhar diferente para a mulher, pelo menos no começo. Com certeza a mulher combatente formada pela AMAN vai ter autoridade com a tropa.
Se eu fizesse um questionário: o mundo pertence a quem? Homens ou mulheres? Aos homens. Por que é dos homens? Por conta da força física. O que determina o mundo ainda é a força e em regra geral homens são mais altos, mais pesados, possuem mais força física e mais agilidade. Por isso, os homens mandam no mundo. Ainda é assim que funciona o mundo. Mas o interessante é que mulheres que venceram no nosso mundo venceram agindo como os homens. Por exemplo, a [Margaret] Thatcher, ela trabalhava como homem. Líderes mulheres trabalham como homens. Quando mulheres se destacam, elas agem como um homem. O que vai mudar o mundo é quando mulheres começarem a atuar como mulheres.
Vai ser diferente ser chefiado por mulher, o modo de ser líder é outro. A mulher é mais sensível. O homem é criado para retrair emoções.
As mulheres, talvez por uma herança do que se criou na sociedade, ela tem essa abertura para ouvir e para conhecer o outro — talvez pelo lado materno e características da formação social, [o que] permite a elas ouvir um pouco mais e conhecer um pouco mais e aí, pela formação ao longo da academia e carreira, ela agrega no aspecto liderança. O que talvez algumas tenham dificuldades seja talvez no impor, seja no tom de voz. Mas o dom é o mesmo, esse lance do conhecer e da abertura que se tem é diferente. São mais abertas ao diálogo e às diferenças
O papel é o mesmo, porém acho que a gente toma um pouco a frente dos homens na questão da liderança emocional, nossa percepção é mais sensível com relação a um subordinado que está passando por situação difícil (se eles estão com problemas na família, por exemplo); temos sensibilidade, a gente percebe mais esse tipo de problema.
A liderança é encarada diferente, ano passado só tínhamos líderes homens em contato com a gente, e não tínhamos muito a quem recorrer em situações que a gente precisava. A gente precisa de uma opinião de alguém que entenda a gente. Esse ano, a gente tem uma oficial mulher a recorrer. Nossa, é uma diferença muito grande!
Vai ser mais difícil trabalhar, [as mulheres] têm pensamentos e necessidades diferentes. A relação entre pares, subordinados e superiores vai ser afetada. Homens já passaram pelo lugar dos subordinados e vão entender melhor as necessidades. As mulheres não.
Acho que a maneira como a liderança dela será acatada pelos subordinados pode ser diferente por conta da formação. Pessoas aqui podem ter receio e questionar a liderança dela, sobretudo pela entrada delas ser algo muito recente. Pode haver questionamento à liderança e às decisões tomadas por elas.
As falas acima apontam que há diferenças entre homens e mulheres, embora não haja consenso sobre o tipo de impacto (positivo ou negativo) que essas diferenças exercerão na questão da liderança. Outros entrevistados, porém, ressaltaram que não há diferença entre homens e mulheres e que as escolas de formação existem justamente para reforçar habilidades de liderança de todos os alunos, independentemente do sexo.
Não sei se tem diferença de homem ou mulher, mas existem lideranças diferentes. Não sei se está ligado ao gênero
[Diferença da líder mulher]: nada a ver. Minha filha é oficial, ela lidera todo um departamento.
Eu não vejo diferença nenhuma em termos de liderança na carreira militar. Por exemplo, na área de saúde, ela executa liderança, ganha experiência e aprende a ser líder. Ela vê pelo exemplo.
Eu acho que não é diferente. Há a diferença na questão da fisiologia, mas ela tem capacidade e, muitas vezes, até mais do que os homens, de assumir alguns cargos de chefia.
Eu acho que o papel de militar é um só, e o líder tem que levar o subordinado a cumprir a missão. Então, não tem diferença entre homem ou mulher em papel de liderança. Homem e mulher tem que exercer a mesma liderança com a sua tropa. Não tem que ter diferença nenhuma de relação de liderança.
A liderança do homem e da mulher seria a mesma. Até porque, ela teria a mesma formação que temos hoje. Ninguém nasce líder, somos ensinados a sermos líderes
Não tem nenhuma diferença, o que conta é o profissionalismo
Não tem diferença. Fui liderado por uma Coronel mulher, que era a chefe da divisão de ensino na época. Tudo era muito direito, tudo saia perfeito. Ela era uma das melhores e uma das mais respeitadas. Ela ficava na frente da tropa, comandava a formatura, etc.
Não muda. Até porque, temos uma carga doutrinária que não faz diferenciação. Aqui eles moldam o líder igual, homem e mulher. A gente percebe que elas conseguem fazer tudo que a gente faz.
Outro aspecto que apareceu nas entrevistas e merece ser ressaltado é a percepção sobre como a liderança das mulheres é aceita/recebida pelos subordinados. Nesse ponto há, de fato, diferenças na liderança entre homens e mulheres. Ainda que não tenha sido apontada como diferença significativa, alguns aspectos como a idade e a sensibilidade podem alterar a percepção sobre o papel da liderança feminina por parte de seus subordinados, sobretudo quando os subordinados são mais velhos. Por essa razão, destacou-se a necessidade de que oficiais mulheres se esforcem mais do que um oficial do sexo masculino, pois as dúvidas acerca de sua capacidade serão maiores.
Não é natural para nós, mais velhos, sermos chefiados por mulheres. Ser superado em atividade psicomotora. É o machismo latino-americano. Temos a tendência a proteger.
Mulheres podem ter dificuldade de liderar gente mais velha do que elas, ainda que elas sejam hierarquicamente superiores.
Tem homem que tem dificuldade de aceitar a liderança da mulher, com certeza. Mas isso uma hora vai acabar, é questão de tempo. É porque ainda não é tão comum uma mulher na liderança.
Na instrução aérea, eu vejo que, tudo o que acontece, eles acham que é porque é mulher. Se um homem não for tão bem na prova, ele fica camuflado no meio; mas se a mulher não foi tão bem eles vão dizer que é por conta dela ser mulher.
(III) Adaptações logísticas e de infraestrutura
A entrada de mulheres nas academias militares gerou uma série de adaptações estruturais para recebê-las, com destaque para a criação de dormitórios e banheiros femininos, leitos nas enfermarias, entre outros. Os custos financeiros e políticos dessas adaptações são, muitas vezes, colocados como obstáculos para a maior abertura da instituição castrense a mulheres. Exemplo disso são os navios ainda não adaptados para receber mulheres e a impossibilidade de que mulheres escolham a Armada na EN.
Há questões de ordem material, nossos navios são de década de 1970, não previa uma mulher a bordo. Tem fragatas com um banheiro para todos os oficiais. Como inserir a mulher? Temos que mudar os horários, navios teriam que passar por obras que custam dinheiro e não seria prioritário agora fazer. Com o país em crise, a prioridade tem que ser operar o navio e não fazer obra para a mulher.
Apesar de já termos mulher na Marinha há um tempo, por aqui ser ainda um ambiente majoritariamente masculino (a parte alta de formação militar sempre foi muito masculina), até hoje temos dificuldade. Tem hora que temos que ir até o alojamento para usar o banheiro. Então, tivemos que fazer adequação para o ingresso delas. Mas, por exemplo, no prédio de ensino só tem um banheiro feminino (no terceiro andar). São 3 turmas, espalhadas pelo pavimento, mas banheiro feminino só no terceiro andar. Ainda vivemos um momento de transição.
A AFA, apesar de receber mulheres há 20 anos, também enfrenta desafios. Não se trata apenas de criar ou adaptar estruturas para recebê-las, mas também de garantir que o local utilizado pelas novas ingressantes esteja nas mesmas condições que o dos cadetes do sexo masculino, evitando-se qualquer percepção de favorecimento. Um dos exemplos citados foi o dos alojamentos masculino e feminino, que deveriam ser próximos para evitar rixas ou predisposição à percepção de tratamento diferenciado.
Tem a questão de que ficamos em alojamento formatado para o quarto ano dos cadetes aqui e as mulheres ficam os 4 anos nesse alojamento, onde o quarto é melhor estruturado, tem armário maior. A gente tem esse alojamento desde o primeiro ano. A gente não pediu por isso, mas eles não querem saber se pedimos ou não. Então reclamavam muito que a gente estava sendo beneficiada.
Um desafio extra elencado em entrevistas na AFA e EN foi a chamada “ditadura da igualdade”: os mesmos uniformes e sapatos utilizados pelos homens foram entregues às cadetes, prejudicando o seu desempenho e promovendo, com ou sem intenção, a masculinização das cadetes. Para serem aceitas, elas deveriam ser como eles, inclusive se vestir e se comportar de acordo com a imagem socialmente construída do profissional militar, baseado no “padrão” masculino.
Tentou-se tratar igual a qualquer preço. Dentro desse contexto, exagerou em alguns pontos. Duas garotas perderam a turma por lesão no joelho porque a cobrança foi igual. E muito igual. Quando chegaram aqui, as meninas usavam o mesmo uniforme. A camisa, o chapéu, o sapato, tudo igual. Por um lado era ruim, menina era ‘joãozinho’. Mas há alguns ritos de passagem necessários para se inserir. No passado, o cabelo era curto os 4 anos. Agora não. Por que as meninas têm que cortar o cabelo no primeiro ano? Porque eles também têm que cortar.
Eu pensei a mesma coisa hoje, eu falei com uma amiga que eu não vejo motivo para cortar o cabelo das mulheres. E ela disse que isso é importante, porque tem uma parte do primeiro ano que é ‘modificação do eu’. As pessoas têm que deixar de lado a parte civil e passar a tratar o coletivo como mais importante, têm que deixar vaidade de lado, esquecer a saudade de casa. Então por isso é importante, porque cabelo é parte importante para a mulher, e você fazer ela cortar cabelo, você faz com que ela deixe de lado da parte mais individualista e ela passa a fazer parte do grupo
Quando falaram que teríamos que fazer o corte curto, acho que 10 meninas desistiram da vaga por conta disso. Isso cria desafio, se a mulher topa qualquer coisa por ela ser militar. Se ela desistiu por conta do cabelo, como seria em uma outra situação?
A regra do cabelo: (...) mulher pode ter cabelo curto, o cabelo pode ficar solto? Aqui é assim, se o cabelo é longo e ela estiver fardada, tem que ficar de coque. Na educação física, pode ser rabo de cavalo. Acho discriminação, mulher pode ter cabelo grande, mas o homem não. Aqui elas não têm que cortar o cabelo
Com relação à AMAN, ao longo dos cinco anos de preparação para a recepção das mulheres (entre 2012/2013 e 2017/2018), houve um planejamento dividido em medidas administrativas (alojamento, banheiro, etc.) e medidas normativas (como regras de convivência, relacionamento, etc.). Entre as medidas administrativas estão modificações nas estruturas físicas – reformas, adaptações, construções – e adequações administrativas propriamente ditas – logística, educação, pessoal, documentação e saúde
Outro aspecto destacado nas entrevistas, relacionado a adaptações logísticas, foi a discussão sobre separação física entre homens e mulheres. Se, de um lado, a entrada das mulheres representa uma mudança significativa nas academias, por outro, é preciso tratar com cautela o reforço de estereótipos sociais de homens e mulheres que pode causar a separação dos militares por segmentos masculino e feminino. Além disso, a segregação afeta a própria noção de espírito de corpo, tão necessária ao cumprimento das missões militares.
No exercício de campanha [quando as cadetes da AFA estiveram na AMAN], sugeri que as meninas da AFA não ficassem em barracas separadas, para evitar segregar muito, para que elas pegassem o ‘bizu’ [dica] e não sentissem tanto frio. Elas teriam a barraca separada apenas para trocar de roupa.
Todo mundo tem que entender que ela é um cadete, independente de como tratam as mulheres no dia a dia.
Desde que a mulher entrou, ela desfila em grupamento separado - não pode. Tem que ser grupamento misto, homens e mulheres oficiais, homens e mulheres praças. Quando separa, segrega. Tem que integrar. A própria instituição separa.
A gente quer tudo igual mas, como está em reforma, a gente não está conseguindo. A minha turma do terceiro ano, elas moraram junto com primeiro ano dos cadetes homens. Isso foi um ganho muito grande. Era o mesmo prédio com uma divisória.
No primeiro ano que elas chegaram, os homens ficaram em alojamentos que em um andar cabem 80 homens. Mas por proporções não tinha espaço para colocá-las nessa condição. O que fizemos foi colocar todas juntas em um espaço menor, mas com proporções diferentes do que os homens. Quando passaram para o segundo ano, as condições começaram a ficar muito parecidas, os camarotes eram muito semelhantes. E no terceiro ano estudaram se elas permaneceriam no mesmo local onde estavam outras mulheres ou se poderiam ir para o lugar onde fica o terceiro ano masculino. E elas decidiram (com autorização do comando) que iriam para o mesmo local onde ficam os meninos. Há uma divisão de madeira entre os alojamentos. Acredito que no quarto ano vão seguir a mesma linha.
(IV) Impacto das mulheres no comportamento de cadetes/aspirantes e oficiais
A entrada das mulheres nas academias de formação de oficiais das três forças exigiu não só adaptações de infraestrutura, como também provocou mudanças importantes de cunho comportamental. Ao mesmo tempo, enfatiza-se que a efetiva participação de mulheres nas forças armadas deve ocorrer somente na medida em que não cause impacto no perfil do combatente ou das habilidades militares.
Nas entrevistas realizadas na AFA e na EN, houve consenso de que a entrada de mulheres nessas escolas gerou uma série de mudanças comportamentais nos oficiais e cadetes/aspirantes do sexo masculino. Entre os aspectos mais notados, destaca-se uma adaptação positiva no vocabulário do segmento masculino. Tanto os oficiais quantos os cadetes/aspirantes (de ambos os sexos) reconheceram que os homens passaram a adotar linguagem e comportamentos mais polidos. Na AMAN, que ainda não tem a vivência das mulheres cadetes, a expectativa compartilhada é a de que o código de conduta e disciplina adotado pela Academia já é bastante eficaz no sentido de coibir comportamentos considerados inadequados.
Acaba mudando comportamento, as brincadeiras são diferentes. Com mulher, eles amadurecem mais.
É mais na parte do instrutor em sala de aula, às vezes deixa de fazer umas brincadeiras e piadas em sala de aula porque tem mulher na sala.
A presença feminina depura nossos atos e comportamentos. Ela meio que melhora nossos atos. O linguajar muda com certeza.
A agressividade dos homens é balanceada com a presença da mulher. Os homens tendem a dosar sua agressividade. Em termos de estudo, o homem começa a ser mais atento. Tem um pouco do machismo, não quer fazer feio frente à mulher.
Eu tenho convicção de que a presença da mulher vai coibir comportamentos inadequados.
A presença da mulher tem impacto positivo no comportamento do homem. Por exemplo, um instrutor na hora de contar uma estória, se tiver mulher presente ele não falará palavrão. Alguns poucos cadetes falam e agem de forma incisiva quando só tem homem. Quando é com mulher, ele [cadete] é incisivo, mas não grosseiro. Isso é reflexo de nossa cultura de tratar a mulher bem e de não poder bater em mulher, por exemplo.
Quando chegaram as primeiras meninas as turmas de cima tinham preconceito por conta dessa “perda de liberdade”, já que antes se falava mais palavrão, por exemplo. Com chegada da mulher o homem ficou mais polido.
Houve mudança nas palavras, no modo de falar, eles medem muito mais as palavras com a nossa presença
Outro aspecto bastante notado pelos entrevistados diz respeito ao comportamento dos instrutores diante da presença de mulheres. Os oficiais homens reconheceram que esses tendem a ser menos ríspidos com as mulheres. Foi notado que os instrutores das primeiras turmas com aviadoras possuíam uma postura bastante paternalista e cética com relação à capacidade das mulheres. A dificuldade em tratá-las com a rigidez necessária teria, portanto, contribuído para a percepção de que elas eram excessivamente beneficiadas, o que acabou por dificultar o processo de integração das mesmas.
Tinha diferença de tratamento. Agora as novas já têm menos, já sabemos as limitações, etc. Tem menos diferença de tratamento. Os instrutores iniciais eram mais paternalistas. Tem essa influência.
Em momentos parecia que ela estava sendo facilitada, ela levou nota mínima e ao invés de ter tratamento igual ao do homem, o instrutor pegou ela e levou para um lugar e ela ficou treinando mais. Em outro episódio, vimos que ela foi beneficiada.
O treinamento militar é algo mais rígido, muito formal e severo. Porém, às vezes, alguns instrutores tiveram dificuldade de ter rigidez com a mulher. Não deveria ser assim, mas a mulher é o sexo frágil. Não bater em meninas e não falar palavrão na frente delas, por exemplo, são valores que vêm da família. Então, quando as mulheres chegaram aqui, os caras não tinham liberdade. Isso, por vezes, prejudicava o processo [de integração], pois o tratamento tinha que ser o mesmo e não diferenciado.
Temos instrutores que tratam mulher com maior carinho, mas tem instrutores que tratam da mesma maneira.
As oficiais compartilharam ponto de vista semelhante e pontuaram que a excessiva atenção dada às aviadoras pioneiras teria criado uma espécie de rivalidade entre os segmentos feminino e masculino. De maneira geral, os oficiais (de ambos os sexos) disseram ter percebido, ao longo do tempo, uma notória evolução em direção ao tratamento igualitário dos cadetes/aspirantes por seus instrutores. De acordo com eles, a maior familiaridade com a presença de mulheres teria o efeito de naturalizar a igualdade de tratamento entre instrutores e cadetes de sexos opostos.
Hoje eu já não vejo muita diferença. Antes tinha menos mulheres e a cobrança era diferente. Na primeira turma de mulheres você via que, se fossem homens, elas não passariam. Na época tinha um fator político muito grande, porque era primeira turma com mulher e não queriam que pegasse mal elas saírem. Hoje em dia não tem mais isso. Concurso é igual, etc.; hoje não tem mais diferença. Hoje já não se diz ‘ah, é mulher’.
No primeiro ano [de Escola Naval] elas não tiveram aula de física, por decisão da Marinha. Isso fez com que elas fossem marginalizadas, alvo de piadas. Física é a disciplina que tem o maior índice de reprovação, então isso era visto como uma facilidade que elas estariam tendo. Elas queriam fazer a aula e ficaram felizes quando a Marinha decidiu que elas fariam um supletivo para recuperar. Elas são as primeiras a não quererem tratamento diferenciado.
Por fim, os cadetes/aspirantes reforçaram sua oposição a qualquer tipo de tratamento diferenciado. Para eles, a diferenciação geraria rivalidades e criaria a percepção de que mulheres são especiais, quando todos devem ser tratados como iguais. Entre as entrevistadas do sexo feminino, levantouse uma preocupação com a generalização, no sentido de que os erros (e acertos) de uma pessoa acabe representando todas elas. Por isso, defendeu-se a importância do tratamento igualitário. Uma entrevistada sublinhou que “a inserção da mulher só será integral quando a Força enxergá-la primeiro como militar e depois como mulher”.
Existem mulheres que contribuem para a visão negativa da mulher aqui dentro. Porque, como sabemos, todo ano muitas mulheres se machucam. É natural. Mas algumas se usam disso. Porque, quando se machuca, a pessoa é dispensada, e tem mulheres que se usam disso para não fazer nada o tempo todo. Então, mesmo que sejam poucas que fazem isso, o círculo pequeno reflete para a imagem da mulher como todo.
A gente diferencia o homem, cada um é cada um. Mas o pensamento deles [sobre nós, mulheres] é generalizado. Como se todas fôssemos de um jeito ou de outro. Então, se uma faz algo errado, é como se todas tivessem feito ou fossem fazer.
Nossa turma só tem uma aviadora, então antes você via o medo do desligamento. O tratamento diferenciado gerava uma rixa dentro da turma.
Uma coisa que me marcou para sempre. Quando recebi platina, quem entregou foi uma mulher e ela não disse parabéns, mas ela disse assim: ‘você vai ter que se esforçar mais do que qualquer um aqui dentro’. Isso me chateou muito! Naquele momento de celebração eu queria um parabéns. Eu não tenho que ser melhor que ninguém; tenho que ser igual.
Já vimos situações de tratamento diferente por sermos mulheres. Tem homem com pensamento arcaico e machista. Tem homem que não sabe lidar com profissionalismo, vamos ver isso ao longo da carreira. Já vimos gente com o pensamento: ‘não vou fazer isso porque ela é mulher’. Vamos ter que lidar muito com essas situações, de atribuírem coisas para fazermos por sermos mulheres ou de não deixarem a gente fazer alguma coisa porque somos mulheres.
Cadetes/aspirantes do sexo masculino da AFA e EN também destacaram que as relações de instrutores/professores com cadetes foram afetadas pela entrada das mulheres. Muitos apontam que o instrutor/professor teve de equilibrar bem o processo e houve treinamento para eles durante a fase de planejamento e adaptação.
O principal problema vai ser com o instrutor. Ele vai passar a mão na cabeça ou vai puxar mais pesado. Se o instrutor tratar diferente, ou deixar de cobrar algo por ser mulher, isso pode ser negativo para os demais cadetes.
Algumas coisas já estão mudando, a parte do tratamento dos instrutores. As cobranças serão mais abrandadas para todos.
O que foi muito bem orientado pelo comandante da época era: tratar com igualdade sempre e respeitando diferença de gênero. Cobrança é a mesma, mas tem que respeitar. Exemplo: cólica menstrual. Por isso a importância de terem vindo três oficiais (intendente, pedagoga e psicóloga), porque elas podem dizer: olha, isso não é cólica, etc.
No começo, acho que sim, porque o tratamento é diferente. Os professores agem diferente em sala de aula (os professores homens). Professora mulher é a mesma coisa.
No primeiro ano aqui eu tive adaptadoras mulheres. Isso fez com que a relação ficasse mais natural.
Teve um exercício que eu fiz na AMAN. E tinha a questão que os instrutores de lá não estão acostumados a tratar cadetes mulheres e eu vi diferença; enquanto eles davam esporro nos meninos, com a gente tinha cuidado maior; eles eram mais cuidadosos. Mas aqui, que é um ambiente mais familiarizado, o tratamento é igual. Aqui tem a questão do costume e do entendimento da igualdade.
Outra mudança aparentemente simples, mas que pareceu incomodar na EN, refere-se a uma restrição de liberdade dentro do alojamento que inclui, por exemplo, não mais andar sem camisa no andar dos dormitórios. Com a chegada das mulheres e, portanto, das instrutoras mulheres, os aspirantes deveriam estar sempre vestidos, o que implicaria, segundo eles, em uma perda da liberdade.
Foram criadas regras de relacionamento e isso foi visto de maneira negativa. Tivemos restrições. Exemplo: antes podíamos andar sem camisa no corredor do pavimento.
No início realmente houve um estranhamento por parte da gente que já estava aqui na EN e era livre andar descalço, sem camisa, de toalha, cueca. Era normal. Tenente não reclamava disso.
A competição foi outro aspecto destacado nas três academias como importante fator que influencia o comportamento de cadetes/aspirantes. Quando perguntadas sobre o impacto gerado pela entrada de mulheres na intendência e aviação da Força Aérea, as oficiais mencionaram que esses foram mais sentidos pelas pioneiras, que teriam sofrido com a falta de preparo da AFA para recebê-las. Já entre os oficiais, houve quem pontuasse que o empenho das pioneiras em ganhar espaço na AFA fez com que elas fossem altamente estudiosas e disciplinadas. Por consequência, o esforço dos homens para acompanhá-las teria elevado o nível intelectual e disciplinar do grupo como um todo.
Na aviação, alguns homens acabam se acomodando durante o curso, enquanto mulheres, por serem minorias, elas tentam se superar mais do que os homens.
Acho que as cadetes do primeiro ano, por serem as primeiras na Academia, elas estavam buscando espaço e um lugar. Elas estudavam muito mais e procuravam ter muita disciplina. Então, elas elevaram o nível disciplinar mais para cima e nós homens começamos a correr atrás disso. Começamos a ter uma fama de estudiosos por conta disso. Por precisar se impor elas se dedicavam um pouco mais e isso acabou atraindo o grupo como um todo.
O homem fica mais responsável para estudar, não quer fazer feio na frente da mulher
Elas serão mais disciplinadas do que os homens, sobretudo na fase inicial. Isso pode até gerar uma mudança no comportamento dos homens, como indutor de melhorias na parte disciplinar, porque começa uma competição natural, salutar.
A única diferença é que até agora nenhuma mulher repetiu ano. Na verdade, isso é uma baita diferença, temos uma taxa de repetência alta. Mas, até agora, tivemos duas turmas com mulheres e nenhuma mulher repetiu. Nos primeiros anos, o insucesso acadêmico é o que mais leva à repetência. Os dois primeiros anos são muito difíceis. Física, cálculo. É muito puxado. Então a diferença é que a mulher não reprovou.
A maioria dos cadetes da AFA e aspirantes da EN expuseram perspectiva semelhante com relação aos impactos positivos da competição. Para eles, enquanto os homens tendem a se acomodar ao longo do curso, as mulheres buscam a superação, o que poderia contribuir para o crescimento de todos. As cadetes da AFA, por outro lado, destacaram que os ganhos teriam sido mais sentidos pelas próprias mulheres. Isso porque a elas teria sido dada a oportunidade de acesso a uma carreira promissora e de se mostrarem capazes. Houve quem mencionasse, também, os ganhos para a sociedade, uma vez que a presença de mulheres em um ambiente predominantemente masculino contribuiria para romper preconceitos.
Eu vejo o lado positivo de um impacto para a sociedade. Porque um menino olha para um homem fardado e vê possibilidade de se tornar um deles um dia; então, uma mulher, olhando para mulher, ela vai ver que pode ser também, ela vai ver que ela pode chegar lá. Então rompe com o preconceito.
Por outro lado, houve também quem destacasse os aspectos negativos da competição entre homens e mulheres nas Forças Armadas, em especial no que diz respeito à parte física, que pode provocar indignação e sensação de injustiça por parte dos rapazes. Muitos afirmaram, por exemplo, que a prova física das mulheres é mais fácil e que acabam tirando uma nota melhor. A nota influencia a classificação final dos cadetes e, portanto, tem impacto direto na escolha de armas (como no caso da AMAN) e no local em que servirão quando formados.
Tem que ser proporcional, porque tem diferenças fisiológicas, porém o teste físico favorece as mulheres. A maior parte das mulheres tiram 10 no teste físico, já os homens, não.
Tem que haver equidade e índices diferentes. O grau de esforço e dificuldade deve ser o mesmo. Isso já acontece na EsFCEx, na Escola de Saúde. Sobre o impacto dos testes diferentes, há um grupo que está trabalhando esse impacto, vai preparar os cadetes para quando as mulheres entrarem. Seção Psicopedagógica, trabalhos de grupo.
Tem também receio de que mulher é capaz, consegue fazer várias coisas ao mesmo tempo, é mais capaz. Vai ser 01, 02. Mas a parte física vai ser o fiel da balança, tanto como preconceito, como para a aceitação. Vai ser alvo de preconceito, ainda que ela seja boa cognitivamente, ela vai ser beneficiada em relação à parte física - já é boa, mais inteligente, e ainda vai ser beneficiada? Vai causar sensação de injustiça.
Uma coisa que talvez eles devem levantar como negativo é a questão da concorrência, porque elas já entram no quadro de intendência. Isso provocou alguma alteração no currículo. Elas não teriam cálculo e matemática (que os homens têm) e elas teriam outras matérias que os homens não [têm]. Isso gerou uma questão: mas com o CV diferente, como seriam as notas? Então, teve uma mudança depois, colocaram a grade curricular idêntica.
No caso da escolha das armas na AMAN, elas terão somente duas opções e já têm 30% das vagas para os cursos de intendência e material bélico. Assim, a partir do momento em que ingressarem, haverá oferta menor de vagas a cadetes do sexo masculino para os dois cursos mencionados. Ao mesmo tempo, espera-se que, justamente por causa da quota de mulheres, as selecionadas estejam bem preparadas, o que terá um impacto em sua classificação quando terminado o curso de formação.
Durante o primeiro ano de curso, os cadetes têm noção geral sobre todas as armas, serviços e quadros. E, no segundo ano, com base na classificação, eles podem escolher as armas. Como as mulheres só terão a opção de escolher entre material bélico e intendência, elas terão vagas separadas e só competirão entre elas.
Vale acrescentar que, tanto na EN como na AFA, o teste físico é diferente e integra a classificação. A diferença de opinião sobre esse tema é bastante marcada entre homens e mulheres. Em ambas as escolas, mulheres e homens realizam os mesmos exercícios, porém as mulheres seguem índices diferentes: por exemplo, têm mais tempo para realizar uma corrida. A exceção é a barra, que só existe para os homens (na EN). A barra não foi cobrada para entrar na EsPCEx, mas é cobrada progressivamente durante o curso em Campinas e também o será na AMAN. O índice, porém, é diferente.
De forma geral, as cadetes/aspirantes destacam que a diferença de índices é bem aceita e que estudos demonstram que elas realizam o mesmo esforço que os colegas ainda que tenham índices distintos. Já os cadetes/aspirantes reconhecem que existe a diferença fisiológica, porém a maneira como os testes são realizados é desigual e acaba favorecendo as mulheres. Em entrevista com oficiais da AFA, destacou-se que a avaliação deveria ser qualitativa, com conceitos de “apto” e “não apto”, e não contar para a classificação.
O teste físico sempre contou como classificação. Tanto é que eu tinha uma frustração enorme. Eu me matava de tanto treinar e só tirei 10 uma vez na vida. E eu via a colega que não tinha esse esforço todo e tirava 10. E essa é uma nota que vale para a vida inteira.
Teste físico diferente é bem aceito. Ninguém se sente lesado se o teste dela for mais aliviado. Eu fiz curso fora da EN, lá o teste era diferente e não dava problema
O teste físico tem uma faixa comum para o homem - que é uma nota mediana - para as mulheres você vê que o comum é uma nota alta. É preciso fazer um estudo e analisar: o que seria um 10 em uma corrida para a mulher? É preciso estudo para tornar mais igual e proporcional.
Tem que ser diferente. Alguns dizem que tem que ser igual, mas uso argumento: você vai colocar o Bolt para correr com uma corredora feminina?
Esses aspectos, subjetivos, impactam sobremaneira no dia a dia de cadetes/aspirantes e podem influenciar uma sensação de desconforto com a carreira. Situações semelhantes àquelas relatadas nas academias de formação foram também relatadas por ofciais em seus espaços de trabalho.
(V) Relacionamento, gravidez e família
As regras sobre relacionamento afetivo entre alunos de escolas militares, incluindo a gravidez e as possibilidades de compor uma família, também afetam a carreira e o dia a dia de mulheres que optam pela vida militar.
Nas academias de formação, há regras rígidas sobre relacionamento afetivo. Cadetes da AFA e aspirantes da EN destacaram a obrigação de informar ao comando quando começam um namoro, o que acaba por acelerar relacionamentos. Além disso, parte dos cadetes/aspirantes também ponderou que a regra da distância mínima entre alunos de sexos opostos, que deve ser a de um braço, parece exagerada. Isso porque a exigência muda a cultura interpessoal de tal forma que acaba por inibir o contato até mesmo em momentos de celebração por cumprimento de missões. Em contrapartida, houve cadetes da AFA que reconheceram que, embora seja exagerada, a regra pode ser necessária para evitar potenciais desvios de conduta.
Essa questão afetiva eu não concordo, um braço de distância. Quero falar coisa mais reservada e não posso. Não posso cumprimentar um colega por abraço, não posso. Dar aperto de mão de mais de três segundos não pode.
Quando tem comemoração, os meninos chegam e se abraçam. No primeiro voo solo, o povo se abraça; mas, quando é mulher, não pode. Todo mundo deu parabéns ou tapa nas minhas costas, não deu abraço. Talvez não fosse ser prejudicial permitir nessas situações; mas isso é complicado.
Na parte baixa [que é a área do campo de futebol] o deslocamento pode ser ou sozinho ou a três. Não pode ter dois homens ou duas mulheres juntos, ou casal. Isso foi algo que mudou com a entrada delas. Gera desconforto.
As entrevistas na AMAN mostraram que os cadetes estão antecipando mudanças semelhantes e que haverá impacto nas relações entre eles a partir da entrada das mulheres. Boa parte das percepções é de que esse processo poderá acarretar problemas. Outra parte acredita que será difícil inicialmente, mas depois as relações serão normalizadas.
Aqui temos o problema do confnamento. As necessidades afetivas e fsiológicas existem. Isso pode gerar problemas para a nossa estrutura hierárquica.
A presença das mulheres vai, num primeiro momento, impactar a relação com colegas. Vai ser muito mais difícil. A fobia contra mulheres vai ser um impacto.
Entre o pessoal do mesmo ano não vai ter diferença, a sociedade já é heterogênea. Vêm de escolas heterogêneas. O frisson vai ser em relação à primeira turma e os demais cadetes do segundo, terceiro e quarto ano.
A normatização para a entrada de mulheres também prevê casos de gravidez durante o período de internato, tanto na AMAN quanto na AFA. O próprio regime de internato e de rígida rotina de atividades, focadas no treinamento militar, não condiz com um ambiente familiar adequado para um bebê ou criança. A gravidez não é proibida nessas academias, pois poderia servir como incentivo ao aborto, prática criminosa no Brasil. Mas, se a mulher engravida, deve comunicar a seus superiores e é obrigada a trancar o curso. Ela mantém o direito de receber salário e poderá se rematricular até três anos depois, quando terá de realizar exames físico e de saúde. Se não passar, terá uma segunda chance. Se tiver uma segunda gravidez, o desligamento será automático por causa do tempo máximo permitido dentro das academias. O desligamento automático também acontecerá em caso de aborto. No caso da EN, a gravidez é proibida.
Existe, de forma geral, um consenso entre homens e mulheres, e entre oficiais e cadetes/aspirantes, sobre o papel da mulher na família e as implicações para a carreira. Para a maioria dos entrevistados, a mulher desempenha um papel mais central que o homem no seio familiar, em especial no que diz respeito aos flhos. A associação da função da mulher como mãe e esposa, em alguns círculos, parece não condizer com a sua condição de militar, sendo a mobilidade o fator apontado como o mais desafador. As cadetes/aspirantes da AFA e EN mostraram-se mais otimistas que os demais. As oficiais, a maioria já casadas e com filhos, falaram sobre os sacrifícios e a necessidade de contar com um parceiro compreensivo e participativo.
A mulher tem papel maior na família. Ela gera o flho, é a ligação maior. Estudamos aqui: quando criança, você é totalmente satisfeito se tem a sua mãe. Em qualquer carreira que você segue, você tem que ser uma mãe presente. O pai é pai, mas não precisa ser tão presente quanto a mãe.
A gente ainda não sabe se poderemos embarcar: tem navios que não têm estrutura. Mas se a gente se formar e tiver que embarcar, e tivermos flhos, isso será complicado. Coloca no extremo: missão para o Haiti, Líbano e ficar 6 meses. Isso seria inviável se tiver um flho.
Eu acho que tem desafos diferentes, mas ela tem que optar. Se ela quer vida dedicada à carreira, então ela tem que se dedicar como os homens fazem. Ela tem a questão da maternidade, que homem não tem. Se ela quer se dedicar a algo, opção dela, vida que segue.
Vai ter impacto na carreira e na família. Nós militares temos um dilema sempre. Buscamos caminhar os dois juntos, a família e o profissional. Se damos muito valor a um, o outro pode fcar prejudicado.
Estou com 31 anos, a minha família cobra, mas tenho minha meta na carreira e não vou ter flho agora.
Mulher militar tem obstáculo extra. A carreira militar demanda mobilidade considerável. Hoje tenho colega de turma que foi movimentada o ano passado, morou no Rio por seis anos e está com flho pequeno e foi movimentada de novo. Na aviação, um casamento e a maternidade podem criar pausa que talvez ela não consiga retomar no futuro. Na intendência, a tendência é o casamento entre militares. Isso facilita.
A mulher, mesmo sendo militar, ela não perde atribuições dentro de casa; continua sendo mulher da casa.
Com a família a responsabilidade [da mulher] é igual à o homem. Com filho, não é tão igual assim. Varia de família para família, tem família que o filho tem mais relação com o pai, tem outras que com as mulheres.
A cadete vai ser muito pior, vai ser interna. E o filho de uma cadete com um cadete, se ambos serão internos? É um problema social. Não deveria ser um problema da instituição, é um problema do casal, é uma escolha. Mas vai acabar explodindo na instituição.
Mulheres e homens militares têm atribuições diferentes com a família, assumem mais responsabilidades. A mulher acumula. Tá mudando. Não é só no meio militar, qualquer meio profssional. Operações que duram dias, serviços de escala, etc., obrigações que privam do lado pessoal.
As esposas dos militares que eu conheço fcam sozinhas com os flhos, que fcam sem o pai. Ficar sem um pai é uma coisa, mas fcar sem a mãe é outra coisa.
Mulheres assumem muito mais responsabilidades. Não só a mulher militar, mas a mulher profissional em geral. Isso está sendo modificado, mas observamos nas Forças Armadas e na sociedade, que a mulher acumula o aspecto profissional e doméstico. Isso precisa ser bem administrado, pois temos que viajar, ficar fora, temos serviços de escala. Essas são obrigações que nos priva muito do lado pessoal, que é um aspecto que também tem que ser administrado pelas mulheres.
É interessante notar, ainda, que vários dos entrevistados de ambos os sexos apontaram para a difculdade da mulher militar de se casar com civis, já que seria difícil para um homem ter uma mulher como a “cabeça” da família e “se submeter” a isso.
Porque a mulher casada com civil tem mais difculdade, ela passa a ser a cabeça da relação. O homem nem sempre se submete a essa mobilidade dela.
A maioria das mulheres militares se relacionam com militar, porque o homem civil não vai entender o modo de vida. Em geral não entendem.
Militarismo tem muita transferência. Para a gente não é tanto problema, mas as mulheres tendem a se relacionar com militares porque ainda temos a questão cultural do homem ser responsável pelo sustento da casa.
Elas vão acabar casando com militar, uma ou outra vai fugir disso, mas o núcleo social é fechado.
Ao mesmo tempo, as dúvidas sobre a possibilidade de conciliação entre carreira e família referem-se também ao tipo de função exercida. Aquelas que exercem funções mais relacionadas à administração teriam maior facilidade para gerenciar as obrigações da profissão com aquelas da família. No entanto, aquelas que escolhessem a função-fm da força, como a aviação, enfrentariam mais desafos.
No caso da aviação, por exemplo, os aviadores têm muito mais mobilidade do que aqueles de outras armas, e nem todas as organizações militares contam com infraestrutura para bebês, crianças pequenas e salas de amamentação. A gravidez também geraria gastos extras para a Força Aérea, já que implica no afastamento de uma piloto por mais de 1 ano, desde a gravidez até a licença maternidade, e possivelmente um período posterior para amamentação. Além disso, acarretaria para a própria militar uma difculdade extra pois ela fcaria muito tempo sem voar.
Na aviação tem um caso sério. Se a mulher descobre que está grávida, é afastada do vôo. Ela pode, então, chegar a ficar dois anos fora. Ela terá que ter treinamento rígido para voltar a ser operacional. Também fazemos muitas missões fora, viajamos muito. Se ela quiser manter a operacionalidade e se destacar terá que optar por ter flho mais tarde. Por volta dos 35 anos, quando voamos menos.
No caso da Marinha, além de argumentar que os navios brasileiros não estão preparados para receber mulheres, destacou-se também que o tempo embarcado dos ofciais da Armada impossibilitaria a constituição de famílias por parte das mulheres. Nesses casos, é interessante comparar com a Marinha de outros países, como a norte-americana e a britânica, que têm regras específcas sobre o tempo em que fcam embarcados e “na base”. Existe um período em que militares dessas forças sabem que não estarão embarcados e poderão se dedicar à família. Também existem regras específcas sobre não embarcar casais ao mesmo tempo, para que um deles possa fcar com os flhos. Ainda não há regras como essas no Brasil.
Agora, afastamentos para missões pode ser complicado. Nos EUA, eles fazem períodos. Por três anos não pode engravidar, é o período operacional. E depois tem um período mais relaxado que ela pode fazer tudo. Depois, volta para o período operacional, mas aí o flho já está maior. No nosso modelo é misturado, ela tem que nas entrelinhas conciliar tudo: ter flho, manter carreira, etc. Isso pode complicar. A gente podia aprender com os EUA.
Na AMAN, destacou-se os diferentes papéis entre homens e mulheres no seio familiar, em especial àqueles relacionados à fsiologia e que implicam em um peso mais preponderante da mulher nesta fase inicial. As entrevistas na AMAN também focaram mais na vida do cadete e na possibilidade, enquanto ainda cadete, de constituir família. Diferente das outras duas escolas de formação de ofciais, a AMAN permite o casamento e, como na AFA, as cadetes mulheres poderão engravidar. No entanto, como estão em regime de internato, dependeriam de alguém de fora do núcleo familiar para cuidar dos flhos, o que difcultaria.
É interessante notar, ainda, que o casamento aparece como um passo quase “natural” dos militares. Todos os ofciais entrevistados eram casados e, no caso da AFA, chegou-se a comentar que vários dos cadetes tinham pressa em se casar.
Existe a pressão pelo casamento. Faz parte do status quo do militar. Depois que terminam o curso, todo mundo casa junto. Tem filho junto. Assim não quebra. Eles seguem padrões de comportamento.
O que enfrentamos aqui na posição dos cadetes: ansiedade pelo casamento, eles querem casar. Eles falam que a gente está violando a constituição à medida que a gente veda a constituição de família.
Outro tema importante refere-se aos crimes de abuso e violência sexual, que tendem a aumentar em ambientes mistos. Apesar da rigidez disciplinar nessas escolas, é importante que a legislação nacional dê conta de questões como o abuso sexual, além de crimes de violência baseada no gênero, para que as devidas medidas penais cabíveis sejam implementadas. No entanto, existe um défcit legislativo e o Código Penal Militar não contempla todos os atos relacionados à exploração e abusos sexuais, inclusive o assédio sexual - um ponto fundamental no contexto em que mais mulheres passam a integrar as forças armadas. Atualmente, constam no Código crimes como estupro, atentado violento ao pudor, corrupção de menores, atos de libidinagem e ato obsceno.
Breves reflexões sobre o conjunto das entrevistas
O questionário aplicado nas escolas de formação de ofciais das Forças Armadas Brasileiras teve como principal objetivo analisar a capacidade institucional dessas instituições de receber mulheres e identifcar os desafos a serem superados para que mulheres possam plena e efetivamente se integrar às Forças. De forma geral, observou-se que os desafios de ordem subjetiva associam-se a estereótipos e expectativas sociais sobre o papel das mulheres, vistos quase naturalmente como inconciliáveis com a função-fim da carreira militar. Embora nem todos os entrevistados tenham expressado essa percepção, houve certo consenso ao descrever as difculdades em aceitar a mulher na linha de frente, exercendo funções mais diretamente relacionadas ao combate. De modo geral, houve consenso sobre a atuação das mulheres em áreas-meio, como administração e saúde.
Há uma série de medidas de cunho prático, como a melhoria da infraestrutura e da legislação, que possibilitarão a melhor integração das mulheres à carreira militar. No entanto, é ainda maior o desafio de ordem subjetiva, também compartilhado pela sociedade de forma geral. No militarismo, apesar de se observar a existência da igualdade em alguns aspectos - como os salários e benefícios – apresenta difculdades para a disseminação de outros avanços no campo do feminismo e da igualdade de gênero.
Os desafos de ordem subjetiva acabam por se refletir nas normas, na estrutura e no dia a dia das mulheres que optam por essa carreira, trazendo desafos extras para o pleno desenvolvimento de suas funções. Observou-se que, de forma geral, existe a aceitação de que mulheres têm um papel importante e central a cumprir nas forças armadas. Esse papel, no entanto, é ainda restrito a certas funções consensualmente aceitas como femininas. Em outras palavras, permanece uma divisão de trabalho entre homens e mulheres. Nesse contexto, o grande desafo é que as mulheres permanecem restritas a algumas opções e, com isso, também fcam limitadas as principais formas de ingresso na carreira, o que difculta a sua ascensão.
Considerações finais: impacto na Força e em sua operacionalidade
A inserção das mulheres no quadro de oficiais das Forças Armadas Brasileiras é uma realidade de décadas e ganha nova dimensão a partir do ingresso das mesmas nas Academias Militares. O acesso das mulheres está restrito a especialidades de apoio ao combate, no caso da Marinha e do Exército e ainda há diversas sensibilidades inerentes ao tema. A maioria relaciona-se ao impacto que a entrada de mulheres pode ter para a operacionalidade e efcácia das Forças Armadas Brasileiras. O consenso de que mulheres têm habilidades cognitivas comparáveis a homens não se traduziu em consenso sobre o papel de mulheres em atividades operacionais. Nesse contexto, é importante conhecer a experiência positiva de outros países e eventualmente verifcar em que medida seriam úteis à realidade brasileira.
Entre os cadetes e os instrutores, notou-se que ainda existe, embora não de forma generalizada, uma visão estereotipada da mulher e de seu papel social. É importante trabalhar para a desconstrução dessa visão a fim de mensurar o real impacto das mulheres na linha bélica militar, em seus aspectos objetivo, subjetivo e operacional. No caso do Brasil, o impacto operacional é ainda relacionado a exercícios operacionais, uma vez que não há dados ou índices de combate para comparação e eventual mensuração. Assim, é ainda uma hipótese, a ser reforçada ou refutada com futuras evidências, o argumento de que haverá uma queda operacional ou mudança estrutural na cultura da Força com a entrada de mulheres. Por conseguinte, pode-se inferir que o argumento de que a mulher é inábil para o combate é parte da construção de um discurso para justificar certas resistências ao ingresso das mulheres nas Forças, mesmo após a Lei 12.705/2012.
Enquanto não se falar abertamente sobre essas questões, dificilmente haverá soluções para muitos dos desafios. Gênero e forças armadas não são assuntos antagônicos. Ao contrário, gênero é uma ferramenta para compreender que muitas das diferenças entre homens e mulheres são socialmente construídas. É preciso atentar para que as diferenças fisiológicas são sejam usadas para justificar ideias baseadas em estereótipos.
Anexo 1: Questionário base
Nota.
PERGUNTAS DE IDENTIFICAÇÃO
Ano? Curso (arma/serviço/quadro)?
Questões demográfcas: casado solteiro, região de origem, idade.
MÓDULO 1 – VALORES, HABILIDADES E COMPETÊNCIAS
Conte-nos um pouco sobre sua história e como chegou até aqui. Por que você escolheu a carreira militar?
Que valores você associa à carreira militar?
Quais são as habilidades, competências e conhecimentos necessários para a carreira militar?
Como você qualifca um bom soldado?
Por que você acha que a carreira militar combina com você?
MÓDULO 2 – LIDERANÇA
Em sua opinião, quais os atributos de um bom líder?
Em comparação com os homens, qual papel liderança pode ser desempenhado por mulheres na carreira militar? Por quê?
Como você acha que a presença de mulheres ofciais combatentes afetará a efcácia da missão (seja ela qual for)? Por quê?
Você acha que é diferente ser chefado por um homem ou por uma mulher? Por quê?
MÓDULO 3 – TREINAMENTO E FORMAÇÃO
Você acha que cadetes do sexo masculino e feminino devem ser submetidos a testes de aptidões física diferentes? E com relação ao nível de exigência (no ingresso e durante o curso)? Por quê?
Que impacto testes e exigências diferenciados podem ter?
Quais as suas recomendações no que tange ao treinamento físico de homens e mulheres?
MÓDULO 4 – IMPACTO DA ENTRADA DAS MULHERES
O que você acha da entrada do segmento feminino para o combate?
Você acha que as mulheres têm os valores, habilidades, competência e conhecimentos necessários à carreira militar?
Acha que as habilidades, competências, conhecimentos e valores das mulheres são diferentes?
O que é ser um homem soldado e uma mulher soldado?
Que impacto a entrada das mulheres gerará na carreira militar?
Você acha que as demais armas deveriam ser abertas às mulheres? Se sim, quais? Por quê?
Como você acha que a presença de mulheres nas escolas militares (como a AMAN) impactarão as relações entre colegas?
MÓDULO 5 – CONDUTA, DISCIPLINA E COMPORTAMENTO
Como a presença do segmento feminino pode gerar uma mudança de comportamento no segmento masculino? De que tipo?
Como a presença de mulheres no corpo discente põe em risco a conduta e a disciplina de alunos e instrutores? Por quê?
Que tipo de mudanças (se necessário) devem ocorrer no código de conduta e disciplina ao incluir mulheres no corpo discente da escola?
Você acha que a presença de mulheres pode coibir comportamentos considerados inadequados? De que maneira?
MÓDULO 6 – CARREIRA MILITAR E FAMÍLIA
Você acha que mulheres conseguirão conciliar a carreira com a família? Por quê?
Você acha que homens e mulheres militares têm atribuições, deveres e exigências diferentes com sua própria família? Por quê?
MÓDULO 7 - VIOLÊNCIA SEXUAL EM CONFLITOS
Desde o ano 2000, a ONU reconheceu o papel que mulheres desempenham em atividades relacionadas à paz e segurança internacional. E encorajou a participação de mulheres em todas as atividades relacionadas à consolidação da paz, a exemplo das operações de paz. Ao mesmo tempo, o Conselho de Segurança da ONU reconheceu que a violência sexual é utilizada como arma de guerra em vários contextos instáveis. Mesmo quando não utilizada como parte integrante de tática de guerra, há evidências de um aumento considerável deste tipo de violência, não somente contra mulheres, mas também contra meninas, meninos e homens. É um sintoma da normalização da violência.
Sobre o assunto:
Que papel as tropas militares podem desempenhar em ambientes onde a ocorrência de violência sexual é comum - seja como arma de guerra, seja como sintoma da normalização da violência?
Qual é o papel que mulheres e homens peacekeepers desempenham no terreno?
Qual o papel que mulheres e homens peacekeepers desempenham no tratamento da violência sexual em ambientes instáveis?
O que você acha da presença de mulheres em patrulhas (em operações de paz)?
Você acha que a presença de mulheres afetará a missão? E o comportamento dos demais colegas? E o relacionamento com os civis?
O que você acha que pode ser feito para diminuir casos de abuso e exploração sexual em operações de paz?
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