Sobre mulheres, crack e corpos invisíveis

Dezembro, 2015

Usuários de crack já são normalmente marginalizados pela população. São chamados de “seres sem alma,” cracudos, zumbis e muitos outros nomes que aos poucos vão tirando sua humanidade, escancarando nosso fracasso enquanto sociedade. O fato de usarem a droga parece transformá-los em seres desprovidos de direitos, autocontrole, vontades e cuidados aos olhos de quem (não) os vê.

Como não poderia deixar de ser, esse universo também é repleto de machismo. Se há uma forma de ser ainda mais invisível que seus pares usuários, é sendo uma mulher usuária de crack. Segundo levantamento nacional da Fiocruz, 4 em cada 10 mulheres dependentes do crack se prostituem; 3 em cada 10 sofreram violência sexual e; 5 em cada 10 tiveram gestação durante o uso.

 

Muitas mulheres começam a usar a droga por enfrentarem problemas familiares, algumas desde a infância: falta de afeto, pais e mães alcoólatras e maus tratos criam um ambiente de total abandono. Depois de adultas, o ciclo continua com a violência física e psicológica em suas casas, dependência financeira do marido e até pela dificuldade de inserção no mercado de trabalho. Algumas, inclusive, passam a usar crack por influência e chantagens emocionais do parceiro e por vezes tornam-se traficantes “em nome do amor.”

Já inseridas no contexto de uso, usam seus já frágeis corpos como moeda de troca pela droga, sendo expostas a doenças, violência sexual e abusos dos mais variados tipos. Não usar camisinha é frequentemente a exigência dos clientes nos programas que fazem para obter dinheiro. Não é difícil constatar que são elas as mais atingidas por doenças como HIV e hepatites C e B. Quando gestantes, geralmente não tem acesso a qualquer acompanhamento pré-natal e muitas vezes acabam sendo separadas de seus filhos ao dar a luz, por não terem residência, renda e ainda se declararem usuárias. As crianças, então, são levadas a abrigos e na quase totalidade dos casos não têm mais contato com a mãe.

A repetida exclusão de mulheres se reflete no desenho de políticas públicas que atendem a pessoas que abusam de drogas. Mesmo os programas de atenção mais desenvolvidos, voltados ao tratamento e promoção de cidadania ainda não conseguem dar conta das específicas necessidades de seu público feminino.

Repensar essa lógica significaria considerar os diferentes papeis desempenhados por homens e mulheres em sociedade. Só o ato de usar a droga já configura um tipo de transgressão maior para a mulher do que para o homem. Além disso, ainda recai sobre ela a imagem de ser promíscua e desleixada e, quando mãe, precisa conviver com a culpa de não exercer plenamente a maternidade.

Olhar essas mulheres e entendê-las como seres humanos com aspirações, vontades e sonhos não devia ser uma tarefa tão árdua. Requer apenas empatia e a capacidade de se colocar no lugar do outro. Mas isso parece estar em falta, nesse momento em que vemos tantos ataques às pautas relevantes para mulheres e enfrentamos o real perigo de reversão de conquistas históricas. Por enquanto, escrevo esse artigo na tentativa de tirá-las da invisibilidade. Não é o bastante, mas espero ser ao menos um começo.

Por Paula Napolião, NOO

 

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