Balanço de 1 ano do decreto que mudou o acesso a armas no Brasil
O que mudou e o que ainda não foi implementado?
Em 21 de julho, completa um ano do Decreto 11.615 de 2023, que estabeleceu as novas balizas do acesso a armas de fogo e munições no país, revertendo a política de ampla liberação que esteve vigente entre 2019 e 2022.
Este Decreto foi fruto das discussões de um grupo de trabalho organizado pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública, que contou com amplo processo de escuta e debate conjunto com diversos órgãos e entidades relacionados ao tema, como Ministério da Defesa, Polícia Federal, Conselho Nacional de Justiça, Conselho Nacional do Ministério Público, parlamentares pertencentes à bancada da bala, associações de tiro desportivo e da indústria e instituições de pesquisa ou da sociedade civil sem fins lucrativos especializadas no tema.
Entre as principais mudanças do Decreto, com impacto direto no cotidiano da população, estão:
- Retorno da comprovação por parte do requerente de uma justificativa de necessidade individualizada para acessar armas para defesa pessoal;
- Redução da quantidade anteriormente desproporcional de armas e munições acessíveis para cada pessoa nas categorias de caçadores, atiradores e colecionadores, por exemplo, atiradores desportivos iniciantes passaram de poder comprar 60 armas de fogo, em 2022, para poder comprar 4 armas de fogo. Gradações de níveis foram reativadas permitindo que atiradores mais graduados e com mais experiência possam comprar até 16 armas;
- Redução da potência das armas acessíveis, voltando a tornar de uso restrito os fuzis e as pistolas de calibre igual ou superior aos de uso cotidiano pelas polícias, estas agora acessíveis somente aos atiradores de nível profissional.
- Retirada do porte de armas municiadas e prontas para uso das categorias de caçadores, atiradores e colecionadores, permitindo a estas categorias o porte desmuniciado para seus locais de prática;
- Redução do prazo de validade das autorizações para possuir e portar armas de 10 anos para 3 ou 5 anos, a depender da categoria, reforçando checagens em intervalos mais curtos de que as pessoas seguem dentro dos requisitos legais (sem antecedentes criminais, residência fixa, laudo psicológico favorável e etc).
Essas mudanças são positivas no contexto nacional em que a excessiva liberação do acesso a armas vinha sendo instrumentalizada por organizações criminosas, fomentando violência política, promovendo uma ilusão de capacidade de autodefesa e desobrigando o Estado de realizar investimentos efetivos na melhora da segurança pública.
Nenhuma dessas mudanças implicou na obrigatoriedade de entrega das armas anteriormente compradas e tampouco em uma proibição total do acesso a armas para defesa pessoal ou na proibição de práticas de lazer e desporto individual que as utilizem. O ritmo de entrada de novas armas em circulação diminuiu, como era esperado, mas não houve uma diminuição dos acervos de armas com registro ativo, tampouco na quantidade de clubes de tiros ou de lojas de armas. Em 2023, os clubes de tiro e as lojas de armas apresentaram apenas variação marginal. A quantidade de registros ativos de armas de fogo para pessoas físicas junto à Polícia Federal passou de 1.237.943, em 2022, para 1.266.303, em 2023, segundo o Portal de dados abertos do Sistema Nacional de Armas (SINARM), um crescimento de pouco mais de 2%, enquanto a quantidade de armas pertencentes a CACs com registro ativo passou de 1.261.000, em 2022, para 1.335.764, em 2023, crescimento de 6%.
No entanto, essa política de controle de armas não está consolidada nem plenamente funcional. Existem diversos pontos práticos do Decreto que ainda não estão em funcionamento e existem ameaças de retrocesso normativo.
Um dos pontos mais centrais do Decreto 11.615/2003 está ameaçado por falta de investimentos adequados. Trata-se da transferência da competência de emissão de registros e de fiscalização dos CACs do Exército para a Polícia Federal. Essa transferência se faz necessária dada a precariedade da fiscalização atual que permitiu, entre outras irregularidades, que milhares de pessoas com antecedentes criminais, menores de idade e até falecidas fossem autorizadas a comprar armas e munições, o que se torna mais grave diante dos dados de que as fiscalizações físicas do Exército que não chegam a 4% dos acervos e estão em queda. Essa transferência de competência precisa ser finalizada até janeiro de 2025 e, apesar de haver um plano de trabalho em andamento, ainda não foram garantidas condições para sua efetividade, como a designação de servidores suficientes para exercer tal função na Polícia Federal. O Ministério Público Federal vem acompanhando esta implementação com a instauração de inquérito civil que tramita na Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão, especialmente no que se refere ao compartilhamento de dados entre os sistemas do Exército e da Polícia Federal.
Um segundo exemplo de questão pendente de implementação é o programa de recompra de armas de fogo que não sejam mais desejadas pelos seus proprietários legais ou de proprietários que não cumpram mais com os requisitos legais. Esse programa é importante para reduzir voluntariamente a quantidade de armas em circulação e para evitar que armas de alto potencial letal e de alto valor monetário (muito acima dos valores oferecidos na atual Campanha de Entrega Voluntária) sejam desviadas para o mercado ilegal. Após mencionar um possível orçamento de R$ 100 milhões, o governo passou a alegar que não tinha detectado um interesse considerável, antes mesmo de dizer como o programa funcionaria, e se absteve de promover uma campanha de comunicação sobre os riscos da posse e do porte de armas para viabilizar decisões mais informadas da população.
Ameaçando a estabilidade jurídica do Decreto, o Projeto de Decreto Legislativo 206/2024, que propõe a suspensão de pontos centrais, já foi aprovado na Câmara dos Deputados e agora tramita no Senado – há outros PDLs com o mesmo objetivo também tramitando, como os 190/2023, 193/2023 e 03/2023. Entre os pontos mais preocupantes caso esse PDL seja aprovado estão:
- Permissão para colecionadores adquirirem armas automáticas em bom funcionamento e iguais às de uso das Forças Armadas;
- Eliminação da divisão dos atiradores desportivos por categorias, que viabiliza a diferenciação de tipos e quantidades de armas adequadas às necessidades;
- Retirada das armas de pressão de calibre maior do que 6mm da categoria de uso restrito, sem considerar que são cotidianamente utilizadas em roubos e que podem ser convertidas para disparo de munição real;
- Permissão de que armas compradas por CACs antes de 2023 sejam utilizadas para fins diferentes daqueles inicialmente solicitados;
- Permissão para o funcionamento de clubes de tiro em distâncias inferiores a um quilômetro de estabelecimentos de ensino.
Esse PDL pode minar a continuidade e eficácia do Decreto. Na tramitação na Câmara, chamou atenção a falta de um posicionamento mais firme do governo, demonstrando uma preocupante perda de centralidade desta pauta estruturante para a segurança pública. É necessário que a discussão no Senado conte com um debate mais qualificado e participativo.
O Decreto 11.615/2023 foi um importante avanço na política de segurança pública do Brasil, restaurando um controle de armas mais responsável e coerente com a nossa realidade. No entanto, diversos pontos deste Decreto ainda seguem com sua implementação incompleta, inclusive pontos que podem ser importantes legados institucionais, como a transferência de competência de fiscalização de CACs para a Polícia Federal com os recursos necessários para que seja efetiva. Ao mesmo tempo, o Decreto já enfrenta ameaças de ser parcialmente suspenso pelo Congresso, sendo necessário maior engajamento social e do próprio governo para que seus pilares sejam mantidos tendo como norte a priorização da segurança pública.