Vítimas de despejo são só estatísticas no Brasil, diz Muggah

 

Setembro, 2015

 

Leia aqui o artigo completo sobre as dinâmicas do desalojamento no Brasil, por Robert Muggah

São Paulo – Segundo dados do Instituto Igarapé, entre 2009 e 2016, aproximadamente 1,6 milhão de brasileiros serão obrigados a sair de suas casas por causa de obras de infraestrutura, desastres naturais ou ameaças de violência.

Para vias de comparação, o número equivale a retirar de suas casas todos os moradores de Recife (PE) — a nona maior cidade do país.

Sem políticas claras de ressarcimento e reinserção social aos cidadãos, o Brasil está hoje entre os 20 primeiros no ranking de países que mais tira habitantes de suas casas para construir obras de infraestrutura no lugar.

Só em construções para os Jogos Olímpicos de 2016, no Rio de Janeiro, cerca de 100 mil pessoas podem ser forçadas a deixar seus lares entre 2009 e 2016.

Tendo em vista o problema, o Instituto Igarapé publicou o estudo “O deslocamento invisível: um conceito unificado dos deslocamentos no Brasil”, que elenca as causas do problema e procurar saídas mais dignas à população deslocada no Brasil.

Entre as propostas estariam a criação de um comitê que monitore os deslocados, além da substituição de grandes obras de infraestrutura por projetos de menor impacto na vida das pessoas.

O texto é assinado pelo diretor do instituto, Robert Muggah, que explica em entrevista a EXAME.com quais os principais pontos a serem combatidos e qual o papel do governo para aliviar a vida de quem precisa se mudar de forma forçada. Veja abaixo.

 

EXAME.com: O que o governo deveria fazer para aliviar os deslocamentos de tantas pessoas para obras de estrutura esportiva?
Robert Muggah: Em qualquer sociedade que quer se modernizar haverá apropriação de terras e movimento de pessoas. O ponto chave é não fazer o mal propositalmente. Parte do problema no Brasil é um desenvolvimento movido a “turbo”. Isso gera danos adicionais e aconteceu também com as obras dos jogos.

O país perdeu uma grande chance de aproveitar esse momento de estar sob os holofotes [por causa da Copa do Mundo e Olimpíadas] para se desenvolver de forma mais planejada. A ênfase foi em infraestrutura de arenas, em vez de algo que será aproveitado por todos, como transportes.

São 250 mil pessoas deslocadas ao ano. É bem dramático o cenário nacional, mas o estrago está feito. A tensão sobre o assunto continua porque ainda há obras por fazer no Rio, pessoas serão deslocadas e não serão ressarcidas da maneira justa. O desafio seria tentar fazer isso da forma mais humana possível.

 

Quão grande é nosso problema em comparação com o resto do mundo?
O Brasil está em 16º no [ranking de] deslocamentos causados por obras de infraestrutura. O líder absoluto é a China, com cerca de 49 milhões de pessoas deslocadas nos últimos cinco anos. Em seguida, vem a Índia. Veja que são países de grande número populacional.

Em desastres naturais, o país nunca foi visto como um grande sofredor, mas isso vem mudando. Nos últimos cinco anos, houve um crescimento desse tipo de desastre que impacta muita gente, como as enchentes em Santa Catarina (2008) e no Rio de Janeiro (2011) que colocaram o Brasil em 22º do mundo nesse quesito. Foram episódios que deixaram milhares de desabrigados, algo como 150 mil por ano, segundo nossas estimativas.

Com relação à violência, não conseguimos nem estimar. Sabemos que o Brasil é referência em números absolutos de homicídios, com mais de 56 mil por ano, são altos os índices de crimes, mas muitos não prestam queixa ou fogem sem registros.

 

No estudo, o senhor afirma que os deslocamentos são um problema pouco analisado no país. Por que isso acontece?
Em várias partes do mundo, em especial na América do Norte, Europa Ocidental e Austrália, os problemas de deslocamentos que envolvam obras de infraestrutura, desastres ou violência demoraram um pouco para ganhar atenção e entrar no radar dos pesquisadores. A sociedade foi ganhando percepção desse problema graças ao enfoque em direitos humanos e civis. Em outros casos, pelo conflito armado.

O caso da Colômbia resultou no maior número de deslocados por guerra no mundo — mais de 6 milhões de pessoas foram realocadas internamente. Desastres naturais como os tsunamis no leste da Ásia ou o furacão Katrina, nos Estados Unidos, também ajudam a gerar engajamento.

O que acontece com o Brasil é que aqui se está relativamente livre de algum evento desses acontecer. Há obras de infraestrutura, há deslocados por violência e há desastres naturais, mas nada disso aconteceu em uma escala tão grande como lá fora. Não houve uma comoção tão grande como deveria.

Como o país tem dimensões continentais, os problemas ficam distantes a ponto de unir toda a sociedade, por maiores que sejam as usinas, projeto de plantio de soja ou mesmo ameaças violentas a um grupo de pessoas. Ainda não é um problema que tocou a sociedade urbana do país, por exemplo. Fora que a Constituição prevê direitos aos proprietários de terra, mas não aos que saem dela de maneira forçada. As vítimas viram estatísticas e para por aí.

 

Como dar mais visibilidade e viabilizar a obtenção de dados sobre esse assunto?
Se você não identifica e reconhece um problema, mais difícil e lento é o processo para dar uma resposta adequada. A informação hoje é extremamente esparsa e fragmentada. Seria importante criar um observatório ou um sistema de coleta de dados para que possamos entender melhor a distribuição dos deslocamentos pelo país.

Serão 1,6 milhão de pessoas [despejadas] entre 2009 e 2016, apenas por projetos de infraestrutura e desastres. Hoje, não temos como saber quantas delas foram deslocadas por pressões de violência.

O que acontece é que, geralmente, as pessoas são deslocadas por mais do que uma razão apenas, as causas estão conectadas. Quando o governo constrói um estádio e desloca os moradores, a violência é usada para coagir essas pessoas a não protestar pelas suas terras ou pedir maior compensação às empresas para atender seus interesses.

E o problema é que os governos, organizações ou empresas que tentam resolver o problema, só olham para uma das causas.

 

Como se pode lutar por uma compensação financeira mais digna para garantir uma saída justa?
O primeiro passo é que a população esteja ciente do tamanho do problema. O segundo é pensar nas brechas da lei vigente e como trabalhar com elas da melhor forma. Nos estados do Rio de Janeiro e Bahia, já estão surgindo leis que garantem alguma proteção para casos de deslocamento. O terceiro é fazer com pessoas deslocadas tenham consciência dos seus direitos ao serem despejados. E junto com isso, fornecermos, através de políticas públicas, todo o suporte que eles precisam para se defender propriamente. É um grande trabalho a fazer.

Como começar a fazer isso em um momento em que o país vive uma crise e não tem dinheiro para investir?
Enquanto não tivermos o problema mapeado em um só lugar, nem se pode pensar em dinheiro. Junto com as medidas de fortalecimento da defesa de deslocados, é a hora de criar um comitê e juntar os dados, algo que nunca foi feito. Só isso já seria uma ótima contribuição.

O segundo fator é repensar nossas obras de infraestrutura. Há uma cultura de criar “super projetos” que, além de despejar muitas famílias e gastar rios de dinheiro dos cofres públicos, frequentemente têm obras atrasadas. Você desloca as pessoas, tem gasto com compensações e a construção demora a entrar em atividade e se pagar.

Poderíamos ter projetos menores, com impactos muito mais leves e ação mais rápida. Usinas do tamanho de Belo Monte têm uma imagem bonita do mercado, trazem prestígio. Mas ela está aí, cheia de atrasos e com milhares de pessoas impactadas e grandes efeitos no meio ambiente. Só essa mudança, aliviaria muito a vida de várias pessoas que perderam suas casas.

A lógica por agora é evitar ao máximo novos grandes números de deslocamento.

 

Raphael Martins, Exame.com

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