Projetos buscam reduzir danos causados por políticas para usuários de droga

 

Março, 2015

 

Publicação do Instituto Igarapé mostra que inovações já vêm sendo adotadas, embora debate sobre tema continue polarizado

POR DANDARA TINOCO

RIO – “O usuário precisa primeiro estar vivo, para depois pensar em parar”, declara, pragmático, Rafael West, gerente geral de Políticas Sobre Drogas do Atitude. West se refere a um dos fundamentos do projeto pernambucano, que acolhe pessoas que usam crack em situação de violência, sem exigir delas a abstenção. Sua afirmação também expressa a orientação de uma série de iniciativas que buscam novas abordagens para o tema drogas no país. Dez delas são apresentadas na publicação “Políticas de Drogas no Brasil: a mudança já começou”, que será lançada, nesta terça-feira, pelo Igarapé, instituto dedicado às agendas de segurança e desenvolvimento. Ao reunir ações desenvolvidas em São Paulo, Rio, Bahia e Pernambuco, a organização pretende mostrar que, na prática, inovações já são adotadas no país e apresentam bons resultados, ainda que o debate sobre o assunto continue polarizado.

— Há uma desconexão entre política e prática. Embora ainda existam reticências no meio político em enfrentar o tema, na prática, as pessoas buscam soluções. Quando as emergências são gritantes, não dá para esperar — opina Ilona Szabó, diretora-executiva do Igarapé. — Procuramos políticas que rompessem paradigmas e fossem alinhadas com o conceito de redução de danos. Em sentido restrito, reduzir danos é aceitar que algumas pessoas não podem parar de usar drogas, o que não torna impossível melhorar a saúde delas. Mas trazemos uma perspectiva mais ampla, com a redução de danos causados pela própria política de drogas, que hoje tem consequências negativas relacionadas à violência, à questão prisional e à marginalização da juventude, por exemplo.

Elencado entre as dez experiências, o Atitude foi criado em 2011 numa tentativa de diminuir altos índices de violência associados ao consumo abusivo de crack. O foco prioritário do programa são usuários ameaçados de morte, com problemas na Justiça, moradores de rua. A eles são oferecidos, em diferentes etapas, desde banho até aluguel social de R$ 600, passando por oficinas educativas. Cerca de 600 são atendidos por dia pelo programa.

— Na nossa avaliação, o usuário em Recife morre mais por problemas de violência do que por saúde. Notamos uma redução de cerca de 10% dos homicídios nos territórios de atuação do Atitude, com trabalho integrado com a segurança pública — diz West.

O gerente geral do Atitude aponta como importante característica do projeto a baixa exigência em relação aos usuários. Ao impor menos condições para que pessoas sejam atendidas — abandonar o consumo não é uma delas —, o projeto aumenta a adesão, explica. A lógica é aplicada também pelo Centro de Estudos e Terapia de Abuso de Drogas (Cetad), ligado à Universidade Federal da Bahia (UFBA). Fundado em 1985, o projeto iniciou seus trabalhos com troca de seringas e distribuição de preservativos para usuários de drogas injetáveis, uma maneira de tentar conter o avanço do HIV nesse grupo. Em seu projeto mais recente, o Pontos de Cidadania, usuários de álcool e substâncias ilícitas têm acesso a contêineres com chuveiros e salas para atendimento individual.

— Ao longo dos anos, observamos que o banho e a troca de roupa facilita o contato dos usuários com a sociedade em geral. Eles vivem em uma situação de vulnerabilidade tão grande, que a sujeira dificulta o acesso ao sistema de proteção social. É uma intervenção de baixíssima exigência, uma vez que nós nos aproximamos do território deles — conta o psiquiatra George Hamilton Gusmão Soares, coordenador geral do Cetad.

FINANCIAMENTO É PROBLEMA

No ano passado, o centro, que também tem serviço ambulatorial, atendeu a oito mil pessoas. Completando 30 anos, o projeto tem, entre os principais obstáculos para sua continuidade, dificuldades de financiamento, afirma Soares. O problema se repete em outros programas listados pela publicação do Igarapé. A especialista em segurança e política de drogas do instituto Ana Paula Pellegrino explica que, ao lado da estigmatização, o custeio é o principal desafio dos programas:

— Um problema é consequência do outro. Com a estigmatização do tema, se torna muito difícil conseguir financiamento, porque, muitas vezes, os financiadores não entendem o conceito de redução de danos e o que é aceitar que há pessoas que não vão deixar o uso em nenhum momento.

Embora grande parte das ações apresentadas seja de pequeno e médio porte, a publicação também traz tentativas de ações integradas entre diferentes esferas de governo. É o caso do De Braços Abertos, lançado em janeiro de 2014. O projeto é resultado da integração entre diversas secretarias municipais de São Paulo, como Saúde, Segurança Urbana, Trabalho e Empreendedorismo e Assistência e Desenvolvimento Social, e vinculado ao programa federal Crack, é Possível Vencer. O objetivo é resgatar socialmente usuários com a oferta de trabalho remunerado, alimentação e moradia. Em um ano, calcula ter reduzido em 80% o fluxo de pessoas consumindo drogas na região da Luz, a popular Cracolândia. Segundo a Polícia Militar, entre 2013 e 2014, roubos de veículo na área caíram 80%, e furto a pessoas, 33%. Já são 453 os cadastrados.

— O indivíduo que está nessa situação precisa de atenção integral. No programa, os beneficiários têm acompanhamento social, uma vez que às vezes estão sem documentos ou com problemas na Justiça. E também problemas de saúde, não só ligados ao vício, mas oriundos de tuberculose, sífilis ou má dentição. O papel do trabalho é fundamental, no sentido de fazer uma pactuação de troca — enumera a secretária municipal de Assistência e Desenvolvimento Social de São Paulo, Luciana Temer. — A região da Luz tem uma questão de segurança complicada, e uma unidade móvel do Crack, é Possível Vencer monitora a presença de traficantes.

As iniciativas listadas por “Políticas de Drogas no Brasil” não se limitam a atendimento. Entre as experiências, está o Crack, Álcool e Outras Drogas, programa criado pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) para agregar atividades de pesquisa que já eram desenvolvidas pela instituição, mas de forma dispersa, como explica o coordenador Francisco Inácio Bastos, um dos responsáveis pela “Pesquisa Nacional sobre o uso de crack”, referência no tema:

— O programa possibilitou integrar diferentes profissionais e propostas, e abordar a questão na sua complexidade e múltiplas interfaces. Tínhamos, por exemplo, uma vigorosa interface com o campo das doenças infecciosas, pois esta é a tradição da instituição, mas pouco ou mesmo nada em outras áreas vitais, como a questão dos acidentes de trânsito.

— Há demanda de diversos setores da sociedade de que tenhamos uma maior densidade de pesquisa, evidências, fundamentações e dados, para um debate mais sério e responsável sobre álcool e drogas, que não seja calcado em posicionamentos morais ou arraigados culturalmente — completa Francisco Netto, assessor do programa.

Publicado em O Globo.

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