Nota Pública – DECRETO 11.615, que regulamenta o uso de armas

DECRETO 11.615

O decreto que regulamenta o uso de armas, divulgado no dia 21 de julho pelo Governo Federal, representa mais um passo na retomada de parâmetros responsáveis e de segurança jurídica no controle de armamentos no Brasil. O Instituto Sou da Paz e o Instituto Igarapé, que trabalharam juntos para deter a política armamentista adotada pelo governo anterior – durante o qual o acervo de armas particulares dobrou para quase três milhões de unidades –, acreditam que a nova norma é fundamental para a reversão desse quadro.

A seguir detalhamos algumas das mudanças e inovações trazidas pelo novo regulamento do Estatuto do Desarmamento (Lei 10.826/2003).

 

1) Requisitos e processo de compra

A Lei 10.826 sempre previu como requisito para adquirir uma arma para autodefesa a justificativa da efetiva necessidade, ou seja, a comprovação de que o interessado está exposto a condições excepcionais de risco pessoal como, por exemplo, morar em local ermo exposto à violência ou por razões profissionais. Essa exigência legal foi dispensada pelo governo anterior, que passou a presumir a veracidade da declaração pessoal apresentada pelos cidadãos interessados em adquirir armas, abrindo mão de uma análise da autoridade policial. Com o novo decreto publicado e as recentes decisões do plenário do Supremo Tribunal Federal, a efetiva necessidade para adquirir armas volta a ser exigida a cada compra (art. 15, §2º).

Uma importante inovação é a implantação de procedimento de seleção aleatório para psicólogos e instrutores de armamento e tiro credenciados na Polícia Federal (artigo 65), para fins de comprovação da aptidão psicológica e da capacidade técnica para manusear armas. Assim como acontece no âmbito de carteira de habilitação em vários Estados, o solicitante não poderá mais escolher quem realizará seu teste, evitando assim favorecimento e conflitos de interesse muitas vezes existentes com despachantes, lojas e clubes que indicam profissionais de ‘sua preferência’.

 

2) Redução de prazos para comprovação dos requisitos (validade de registro)

Até 2019, o proprietário da arma era obrigado a comprovar alguns requisitos (idoneidade, ocupação lícita, residência certa e teste psicológico) a cada cinco anos para poder renovar o seu certificado de registro. O governo Bolsonaro aumentou esse prazo para 10 anos e o novo decreto agora estabelece este prazo em 5 anos para armas registradas na Polícia Federal por civis para defesa pessoal e em 3 anos para armas registradas de colecionadores, atiradores desportivos e caçadores excepcionais (CACs). O prazo menor para as categorias dos CACs se dá pelo fato de elas acessarem quantidades maiores e calibres mais potentes de armas e munições, demandando maior fiscalização. Essa checagem periódica dos requisitos é fundamental para o Estado fazer as averiguações necessárias com relação à manutenção da arma de fogo na legalidade, avaliar se o proprietário segue tendo condições psicológicas e físicas para possuir uma arma, manter seus dados cadastrais atualizados (que serão confirmados anualmente), certificar que segue em posse da arma e tomar providências caso algo esteja em desconformidade com a lei. Quanto mais longo esse prazo, mais chances de irregularidades e desvios.

Caso o proprietário da arma não renove o seu registro no prazo estabelecido, após notificação, será instaurado procedimento para cassar o certificado de registro da arma (CRAF) e será determinada a apreensão de suas armas. Ainda, o proprietário que se mantiver inerte após a notificação também não poderá comprar novas armas ou munições, obter ou renovar seu passaporte até regularizar a sua situação.

Estes prazos de validade dos registros ficam estabelecidos para os novos registros emitidos ou renovados a partir deste decreto. Os registros de CAC já emitidos terão validade de 3 anos a contar da data do decreto, portanto com vencimento em julho de 2026.

 

3) Redução da potência das armas de uso permitido e restrições ao acesso civil para calibres restritos (mesmo para CACs)

O governo Bolsonaro ampliou o acesso de cidadãos comuns a armas com calibres antes restritos às polícias e Forças Armadas. Quem tinha registro para defesa passou a usar armas mais potentes que as de uso cotidiano das polícias. Para os CACs, a potência das armas que poderiam ser adquiridas aumentou ainda mais e foi liberada até mesmo a compra de fuzis em calibres como o .223, 5,56 mm e 7,62 mm. Com o novo decreto, volta a lógica que vigorou de 2003 a 2018, ou seja, as armas de uso permitido são aquelas de porte, de repetição ou semi-automáticas cuja munição tenha energia de até 407 Joules e não mais 1.620 joules. Pistolas 9mm, .40 e .45 ACP voltam a ser de uso restrito. Em outras palavras, volta a garantir que pessoas com acesso para autodefesa não tenham armas mais potentes do que as de uso cotidiano das polícias, e que os calibres restritos fiquem acessíveis aos atiradores de maior nível e caçadores. 

Armas automáticas seguem proibidas nas 3 categorias. A única inovação foi colocar como restrita novos modelos criados nos últimos anos de espingardas com funcionamento semi-automático, mas as deste calibre de repetição manual seguem no rol de permitidas.

Vale mencionar que as armas consideradas restritas adquiridas antes da entrada em vigor do decreto poderão ser mantidas pelo proprietário, que também poderá adquirir a munição correspondente, desde que atendidos os novos critérios de concessão do registro e  do apostilamento das atividades. Acreditamos que este foi o principal ponto negativo do decreto. Estamos falando de mais de 50 mil armas, sendo que destas, 8 mil não concluíram seu processo de recadastramento na PF e já podem estar no mercado criminal.

 

Este ponto é particularmente grave quando falamos dos fuzis. Estimamos que entre as 50 mil existam pelo menos 30 mil fuzis que ainda poderão ser utilizados. Até novembro de 2019, fuzis semi-automáticos eram vedados na caça e tiro esportivo. Defendemos que esta vedação volte a ser instituída pelo Comando do Exército.  Vale mencionar que sequer existe a modalidade de tiro desportivo com esse tipo de fuzil nas Olimpíadas e não há prática esportiva privada que mereça tamanha exceção. Em 2022, o Ministro Edson Fachin determinou em decisão liminar do Supremo Tribunal Federal que a aquisição de armas de tamanho potencial lesivo, especialmente os fuzis, devem ser autorizadas apenas no interesse da própria segurança pública ou da defesa nacional. 

 

4) Redução dos limites de compra de armas e munições 

De acordo com as regras implementadas pelo governo passado, qualquer pessoa com registro de atirador desportivo tinha direito a adquirir até 60 armas, sendo 30 delas de uso restrito, incluindo fuzis. Caçadores podiam adquirir até 30 armas, sendo 15 de uso restrito. Já os limites estipulados pelo governo anterior para as munições eram de 1.000 munições anuais para cada arma de uso restrito e 5.000 munições anuais para cada arma de uso permitido, podendo totalizar 180.000 munições adquiridas por um atirador recém registrado que comprasse seu limite máximo de 60 armas. Tais limites, além de não encontrarem correspondência nas necessidades do esporte, em muitos casos, foram utilizados por pessoas que recorreram ao registro de CAC para ter acesso facilitado a grandes quantidades de armas e munições, para posteriormente desviá-las para atividades criminosas. Vale mencionar que a grande maioria dos CACs (72%), segundo dados do próprio Exército, não possui mais do que uma arma. 

Armas registradas para uma atividade não podem ser utilizadas em outra. Ou seja, se foi registrada para coleção não pode ser utilizada em tiro esportivo. Se registrada em tiro esportivo, não pode ser utilizada para caça e assim sucessivamente.

Com a nova regulamentação, atiradores desportivos voltam a ser classificados em 3 níveis, a depender da frequência em clube de tiro e da participação em competições, de forma similar ao que era previsto até 2018. Esta divisão permite que apenas atiradores mais experientes tenham acesso a uma maior quantidade de armas e aos calibres restritos. As transições de nível só podem ocorrer após 12 meses.

Atirador de nível 1: até 4 armas de uso permitido; 4 mil munições por ano e 8 mil munições .22 por ano

Atirador de nível 2: até 8 armas de uso permitido; 10 mil munições por ano e 16 mil munições .22 por ano.

Atirador de nível 3: até 16 armas, podendo ser até 4 de uso restrito; 20 mil munições por ano e 32 mil munições .22 por ano. Há previsão de autorização de mais armas e munições pelo CEX nos limites de atividade desportiva.

Caçador excepcional: até 6 armas, podendo ser duas de uso restrito; 500 munições por arma, por ano.

Segundo dados do próprio Exército, este retorno aos limites anteriores não afetará nem 1% dos CACs.

 

5) Atualização e integração efetiva dos sistemas de armas da Polícia Federal e do Exército 

Um dos avanços mais comemorados é a previsão de integração e modernização dos sistemas de registro de armas. A garantia de mecanismos eficientes de acesso aos bancos de dados às polícias estaduais e aos tribunais avança ao permitir que diferentes agentes de segurança pública e da justiça possam fiscalizar, rastrear e investigar crimes envolvendo armas de fogo de forma integrada, o que nunca foi operacionalizado nos governos anteriores, apesar de estar previsto em norma desde 2004. Mesmo antes de uma interoperabilidade entre sistemas, ou da migração de competências para a Polícia Federal, já há a previsão (art 7º § 2º) de repasse de informações de dados de CACs para o Sistema Nacional de Armas (SINARM). Dessa forma, agora informações relevantes passam a ser compartilhadas entre diferentes órgãos, fortalecendo o controle, rastreabilidade e a construção de políticas de segurança pública mais efetivas.

 

6) Indicação de transferência da competência para registro e fiscalização de CACs para a PF

Algumas competências que estavam com o Exército e que eram feitas de forma muito precárias serão transferidas para a Polícia Federal. Entre elas o registro e fiscalização de CACs. O Decreto determina que em 60 dias será feito acordo de cooperação entre Ministério da Defesa e Ministério da Justiça e Segurança Pública para estabelecer os termos da migração da competência (art. 6º).

A parte de fabricação, importação e exportação seguem sendo realizadas pelo Exército Brasileiro.

 

7) Fim do porte de trânsito de armas municiadas para CACs, recarga de munições e regresso à política de níveis entre os CACs.

A nova política retoma a separação de atiradores desportivos por níveis de acordo com a frequência no clube de tiro e participação em competições. Esta frequência terá que ser atestada por tipo de arma. Ou seja, se o atirador tem 3 calibres diferentes de armas, precisará comprovar a prática mínima com as 3, os requisitos são para períodos de 12 meses.

O atirador esportivo de nível 1 precisa comprovar no mínimo oito treinamentos ou competições em eventos distintos a cada doze meses.

O atirador de nível 2 precisa comprovar no mínimo 12 treinamentos e quatro competições, das quais duas de âmbito estadual, distrital, regional, ou nacional, a cada doze meses.

Atirador de nível 3, precisa de vinte treinamentos e seis competições, sendo no mínimo duas de âmbito nacional e internacional, no período de 12 meses.

Para progredir de nível não basta ter cumprido o requisito, mas também permanecer pelo período de doze meses em cada nível para requisitar a progressão.

O porte de trânsito, que permitia irregularmente que CACs levassem armas de porte prontas para uso em deslocamentos e que deu margem para uma série de abusos, desde o ano passado foi declarado inconstitucional pelo STF. Já excluído no decreto de janeiro de 2023, a proibição segue mantida e o deslocamento para a prática das atividades deverá ser realizado com a arma desmuniciada e acondicionada de maneira que seu uso não possa ser imediato, após emissão por meio digital de guia de tráfego, em trajeto e período especificados.

A recarga de munições que havia sido facilitada no governo anterior, inclusive para CACs iniciantes, foi proibida por completo para pessoas físicas e será permitida apenas a órgãos de segurança pública para treinamento e para entidades de tiro esportivo (art 34, § 5º).

 

8) Maior controle sobre clubes de tiro

Foram estabelecidas regras de horário para clubes de tiro (6-22h), acabando com a prática de clubes de tiro 24h, criada para burlar a fiscalização do transporte de armas e permitir a circulação de CACs armados aos finais de semana e madrugada. Também são exigidas condições mínimas de uso e armazenagem das armas de fogo utilizadas nos estabelecimentos.

Além disso, fica estabelecido o raio mínimo de 1 km entre clubes de tiro e escolas e creches, para a proteção de crianças e adolescentes. As entidades terão dezoito meses para se adequar.

 

9) Regresso às antigas regras para coleção de armas

As regras para coleção regressam ao que vigorou até 2019. Ou seja, o colecionador pode ter uma arma de cada tipo, modelo e calibre e não mais 5 exemplares de cada.

 

10) Órgãos ambientais passam a ter maior participação nas decisões e fiscalizações sobre caça para manejo, agora batizada de caça excepcional.

No Brasil a caça é proibida, só havendo permissão para abates para controle de espécie invasora. Contudo, o Exército liberava registros de caçador e compra de armas sem nenhuma interlocução com órgãos ambientais, o que levou ao aumento excessivo da atividade de caça dissociado das demandas reais de abate de fauna exótica invasora. O novo decreto, ao prever a caça excepcional, corrige esta falha fazendo com que o caçador precise obter documento no Ibama que indique a necessidade de abate que indique a espécie, o perímetro abrangido, a autorização de proprietários, pessoas interessadas na caça, e o prazo da atividade.

 

11) Ações para evitar a inércia na renovação de registros (art 26, § 1º e incisos)

A PF passa a ser proativa para evitar o acúmulo de proprietários que não renovam seus registros. Agora haverá notificação proativa da PF, dando oportunidade à pessoa renovar, entregar ou transferir a arma. Em não renovando, haverá consequências: será instaurado procedimento de cassação do CRAF, determinada a apreensão de arma, inabilitação para compra de novas armas e bloqueio de obtenção e renovação de passaportes.

 

12) Proibição de publicidade de armas e munições na internet

Apesar de ser proibida a publicidade de armamento (exceto em publicações especializadas) sob pena de multa (artigo 33, inciso II, Lei 10.826/2003) várias empresas realizam propaganda pela internet, market place e redes sociais. O novo decreto deixa mais claro que esta publicidade também é proibida e se equipara às proibições de publicidade previstas na lei. Ele inova também ao sujeitar empresas de instrução e clubes de tiro a esta vedação de propaganda. (Art. 75, parágrafo único e incisos).

 

13) Regras transitórias  

Proprietários que até 20 de julho tiverem adquirido armas de uso restrito poderão mantê-la e adquirir munição correspondente. Não poderão, no entanto, usá-la em atividade distinta da declarada quando da compra (art. 79).

Registros de CAC emitidos antes do decreto passam a ter prazo de validade de 3 anos, a partir do decreto (julho/2023), ou seja, irão vencer em julho de 2026.

Os outros registros da Polícia federal, se não tiverem atingido a metade do prazo, terão que respeitar o prazo de validade de 5 anos.

Entidades de tiro que não estejam adequadas às novas regras de instalação terão 18 meses para realizar adequações.

 

14) Recompra e entrega voluntária 

O programa de recompra destinado a armas de calibre que se tornaram restritos após o decreto é uma iniciativa muito positiva para retirá-las de circulação por meios legais e dar uma compensação financeira adequada aos antigos proprietários, evitando que sejam vendidas no mercado ilegal. Seus detalhes serão especificados em outro ato a ser publicado pelo Ministro da Justiça, que já detalhou que a iniciativa terá 100 milhões disponíveis no orçamento.

Também é muito bem vinda a indicação de uma revisão de valores de indenização para a  o novo estímulo à Campanha de Entrega Voluntária de Armas, uma política pública permanente para entrega de qualquer arma, registrada ou ilegal, em postos oficiais de polícias ou guardas municipais, sendo garantido o anonimato e o pagamento de uma indenização financeira que há muito tempo não era corrigida e, agora, pode voltar a ser atrativa financeiramente.

Para o bom funcionamento desses dois canais de retirada de armas de circulação, é importante que o governo coloque em prática campanhas específicas de comunicação orientando a população sobre a diferença desses canais e como acessá-los de forma prática. 

Também é importante que o governo fortaleça os sistemas online de emissão de guias de trânsito e de registro, que garanta sua rastreabilidade até a destinação final, assim como a disponibilidade orçamentária dos canais de saque de valores. 

Especialmente para que as de alto potencial sejam recompradas, é importante que a destinação dessas armas seja feita de forma coerente, favorecendo as Forças Armadas e unidades policiais com treinamento e com canais de controle diferenciados para uso dessas armas. 

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