Entidades da sociedade civil manifestam preocupação com o edital da PMESP que precariza o programa de câmeras corporais
O projeto de câmeras corporais acopladas ao fardamento dos policiais, implementado pela Polícia Militar
do Estado de São Paulo (PMESP) em 2020, representou um passo importante na profissionalização da
corporação ao ampliar a transparência, proteger o policial de falsas denúncias, produzir provas para o
sistema de justiça e reduzir os níveis de uso da força letal. Parte do sucesso alcançado pelo Programa
Olho Vivo se deve ao trabalho minucioso da equipe da própria corporação, originalmente responsável
pelos estudos e pela implementação da proposta.
Diante disso, chamamos a atenção para o edital de licitação 15/2024, divulgado pela PMESP em 22 de maio
de 2024, visando a substituição das câmeras corporais atualmente em operação. Sob o discurso da ampliação
e integração dos equipamentos a outras plataformas operacionais, o edital altera radicalmente o bemsucedido
programa iniciado quatro anos atrás e coloca em risco, exatamente, o que fez do programa uma das
experiências mais bem sucedidas de compliance da atividade policial e com maior impacto no mundo todo.
Uma série de estudos atestam os bons resultados auferidos pelo projeto. Relatório publicado pelo
Fórum Brasileiro de Segurança Pública identificou queda de 62,7% na letalidade policial, entre
2019 e 2022, com maior ênfase nas regiões onde as câmeras estavam em uso. Análise realizada
pelo CCAS/FGV apontou que as câmeras foram responsáveis diretamente por 57% de redução no
número de mortes decorrentes de intervenção policial e queda de 63% nas lesões corporais causadas
por policiais militares. Estudo do Instituto Sou da Paz revelou ainda que os casos de mortes de
jovens (entre 15 e 24 anos) caíram 46% após a implementação das câmeras.
Já está comprovado que as câmeras oferecem proteção jurídica e, principalmente, proteção física aos
policiais. As gravações tendem a apaziguar os ânimos durante as abordagens, o que diminui os
casos de agressão contra os agentes, e ainda servem como evidências contra acusações injustas,
trazendo segurança para a corporação como um todo. Mais importante que isso, o uso das câmeras
reduziu drasticamente o número de policiais mortos em serviço, de 18 vítimas policiais em 2020, para
4, em 2021, e 6, em 2022, os menores números da série histórica.
Além da redução das mortes, as câmeras também tiveram impacto em outras ocorrências, sobretudo
em casos de violência doméstica – notificações no sistema interno da PMESP tiveram aumento de
102% nos registros no período. O êxito da política de câmeras em São Paulo angariou apoio massivo
da sociedade, comprovado por pesquisas que mostram apoio de até 88% da população. O Programa
Olho Vivo também serviu de exemplo para diversos estados, que passaram a investir em projetos
semelhantes como forma de gerar maior controle e transparência da ação policial.
Dentre os principais pontos de alteração, destacamos preocupação com o fim das gravações
ininterruptas (vídeo de rotina), o tempo de armazenamento dessas imagens para uso da polícia
judiciária e do próprio sistema de justiça criminal e, principalmente, os requisitos para as empresas
participarem do processo licitatório.
Ao extinguir a funcionalidade de gravação ininterrupta, a PMESP deixa a cargo dos próprios policiais
a escolha sobre o acionamento das câmeras, o que pode diminuir os efeitos positivos do programa.
Diferentes estudos realizados no Brasil e no exterior indicam que, em média, os policiais não acionam
a câmera corporal em 70% das ocorrências atendidas. A medida contraria o próprio posicionamento
da corporação, que afirmou ao Supremo Tribunal Federal que o processo de contratação de novas
câmeras corporais manteria a gravação ininterrupta (vídeo de rotina e vídeo intencional). A gravação
ininterrupta pode ser considerada uma das maiores inovações do programa paulista e referência
mundial sobre uso de câmeras corporais, na medida em que reduz a incerteza e dá contexto para
análises de mitigação de riscos e/ou dirime dúvidas eventuais suscitadas no curso de investigações
A nova licitação reduz o tempo de armazenamento dos vídeos intencionais de 365 para 30 dias, uma
alteração que pode comprometer o uso das imagens como provas técnicas e evidências em investigações
e processos judiciais pelo Ministério Público, pela Defensoria Pública e pelo Tribunal de Justiça.
Os requisitos para habilitação técnica das empresas, especialmente quando comparado com
os editais de 2020 e 2021, também não estão claros. O edital divulgado nesta semana prevê a
contratação de 12 mil câmeras corporais, mas exige que, para participar do certame, as empresas
devam comprovar a capacidade de fornecimento de apenas 500 “câmeras de vídeo”, 4% do total de
equipamentos a serem contratados. Em 2020, exigiu-se das empresas concorrentes a comprovação
de capacidade técnica de fornecimento de, no mínimo, 50% do objeto licitado, evitando que empresas
sem estrutura ganhassem o certame e fornecessem serviço inadequado ao Estado conforme
previsão da Súmula nº 24 do TCESP. Ao reduzir a exigência de comprovação de capacidade
técnica, o edital aumenta o risco de empresas com produtos de menor qualidade técnica na área
e/ou recém ingressantes oferecem condições irreais, que depois poderão comprometer o serviço
prestado caso vençam o certame.
Em nota à imprensa, a Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo justifica que as
mudanças previstas promoverão redução do custo geral do programa. Uma análise mais ampla do
impacto do projeto indica, no entanto, que tal justificativa não se sustenta. Os contratos vigentes para
o uso das câmeras corporais totalizaram R$96.384.135,00 em 2023, o que representa apenas 0,7% do
total de gastos empenhado pela PMESP e 0,47% do orçamento das polícias do estado, segundo dados
da Plataforma JUSTA. O custo anual da PMESP de R$9.519,42 por câmera é menor, por exemplo, do
que os R$11.154,30 pagos pela Royal Canadian Mounted Police.
Se a preocupação é com custos, a licitação da PMESP poderia suprimir funcionalidades não prioritárias das
câmeras, como a transmissão de dados em tempo real e o processamento de vídeo para reconhecimento
facial, dois acréscimos cujos benefícios não são respaldados por evidências empíricas.
Com o vencimento dos atuais contratos já a partir de 1º de junho, e sem qualquer sinalização de
aditamento por parte do Estado, estamos diante do risco de descontinuidade de um projeto que
nasceu dentro da PMESP e que obteve resultados expressivos ao longo dos anos.
Melhorias tecnológicas e economia de recursos públicos são essenciais para aprimorar as políticas
públicas de segurança. Ao prever câmeras que apenas podem ser acionadas após uma decisão
discricionária do policial (ainda que remotamente pelo gestor), que não gravam ininterruptamente e
ainda incorporam outras funcionalidades como leituras de placas veiculares e identificação de pessoas,
a PMESP gera desconfianças sobre a manutenção do programa. No final das contas, o Programa Olho
Vivo deve se transformar em uma ferramenta operacional e de vigilância que poderá, inclusive, acabar
sendo utilizada contra os interesses do próprio cidadão paulistano.