BNDES e sua linha de investimentos em armas de fogo

Le Monde Diplomatique

 

Novembro, 2017

 

Com um aporte de cerca de 53 milhões de reais, de 2008 a 2015, em uma das maiores produtoras de armamento do mundo, a gigante Forjas Taurus, BNDES tem política contraditória ao seu guia de financiamento sobre comércio de armas

O cenário tem se tornado cada vez mais favorável ao investimento na indústria de defesa e segurança no Brasil, já que o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) tem aberto linhas de crédito específicas para setor. Em abril deste ano, o Ministério da Defesa anunciou que o banco ira garantir o financiamento de projetos entre países com prazos de pagamento de até 25 anos e 100% das exportações brasileiras. A linha contará inicialmente com 35 bilhões de dólares.

Em discurso durante a abertura de uma grande feira sobre segurança e defesa, em abril deste ano,  o Ministro da Defesa, Raul Jungmann, declarou que a concorrência no  mercado internacional se dá entre países de forma  assimétrica. Jungmann defendeu o aporte do BNDES para que o Brasil entre em “condições igualitárias”, em um setor que “gera empregos,  renda  e  avanços tecnológicos,  integra  o  país  em cadeias  produtivas  globais  em  setores  de  ponta  e  fortalece alianças com nossos parceiros estratégicos”.

A produção desse campo equivale a 3,7% do PIB brasileiro em 2014, ou seja, R$ 202 bilhões, segundo dados da Fipe (Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas) que é ligada ao Departamento de Economia da FEA-USP. A pesquisa foi encomendada pela ABIMDE (Associação Brasileira das Indústrias de Materiais de Defesa e Segurança).

De acordo com o chefe do departamento de Comércio Exterior do BNDES, Marcio Migon, a demanda vem sendo requisitada pelo próprio Ministério da Defesa como “perspectiva de entrada de mercado para os novos produtos” para uso das Forças Armadas brasileiras, mas também “ocorre que esses produtos vêm despertando o interesse também de Forças Armadas estrangeiras”.

Em 2013, o próprio BNDES escreveu uma publicação sobre o panorama do setor no País, apontando que a base industrial de defesa equivalia a 1,5% do PIB no ano anterior baseado em dados da organização suíça SIPRI (Stockholm International Peace Research Institute), que realiza pesquisas sobre segurança global, em relação a conflitos, armamentos e afins.

O artigo foi escrito logo após a assinatura do decreto 7.970/2013, que regulamenta compras e contratações para o setor, incentiva a produção e isenta as empresas classificadas como estratégicas de defesa da contribuição do IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados), PIS (Programa de Integração Social),  Pasep (Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público) e Cofins (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social) em vendas no mercado interno e importação.

Para a publicação do BNDES, das empresas que esperavam ser credenciadas, “parcela significativa tem porte pequeno  ou  médio  pelos  critérios  adotados  pelo  BNDES,  enfrentando  as  mesmas dificuldades de  acesso a  crédito inerentes  às empresas desses portes”.

Por outro lado, segundo o assessor de Política Externa da ONG Conectas Direitos Humanos, Jefferson Nascimento, há “falta de transparência” em relação à comercialização dos produtos da base industrial de defesa. “Não é possível pensarmos nesse volume de recursos que está sendo alocado para ser utilizado dentro de um ambiente de sigilo. O sigilo também abre margem para corrupção”, aponta.

O assessor se refere à Política Nacional de Exportação de Material de Emprego Militar, criada em 1974, e que não é de acesso livre ao público desde sua implantação. Para ele, esse ambiente também se reflete no financiamento,uma vez que a Conectas fez um pedido de acesso à informação no ano passado sobre as políticas operacionais do BNDES e considerou que o banco não detém de “critérios claros e específicos” para as transações. “A indústria de defesa é gigante porque não estamos falando só de armas, estamos falando de uniformes, capacete, ração de soldados. Tudo isso compõe o pacote dos gastos militares”, avalia Nascimento.

Em seu guia de financiamento, o banco afirma que não apoia o comércio de armas. De acordo com o Chefe do Departamento de Comércio Exterior do BNDES, Marcio Migon, a razão é que “armas não possuem vida útil econômica previsível, sendo via de regra comercializadas com pagamentos à vista e apoio dos diversos seguros de pré-embarque usados em comércio exterior e disponíveis no mercado”.

De acordo com a chefe do Departamento de Bens de Capital, Mobilidade e Defesa do BNDES, Ana Cristina Rodrigues da Costa, o banco não diferencia setor ou empresa e o financiamento depende do projeto apresentado. “As empresas do setor de defesa, nas operações diretas com o BNDES, utilizam mais as linhas de apoio à inovação e exportação. Nas operações indiretas, utilizam fortemente o FINAME para a compra de máquinas e equipamentos, além do Cartão BNDES e BNDES Automático”, explica.

Em janeiro deste ano, foram divulgadas novas políticas operacionais do banco e, segundo uma circular de 28 de agosto, há especificação dos itens financiáveis. De armas, aparecem apenas “miras telescópicas”.

 

FABRICAR VS COMERCIALIZAR: TAURUS

 

O Brasil se tornou o terceiro maior exportador de armas, com um faturamento de mais de 500 milhões de dólares, segundo levantamento lançado em setembro deste ano, da organização Small Arms Survey. Os dados são de 2014, e o país está atrás apenas de Estados Unidos e Itália.

A empresa brasileira Forjas Taurus é uma sociedade anônima de capital aberto e é a maior fabricante de armas leves em âmbito nacional, credenciada pelo Ministério da Defesa desde 2014, e uma das maiores no mundo. De acordo com dados do press release da fabricante enviado em novembro à BMF&Bovespa, no último trimestre deste ano, a empresa atingiu R$ 182,5 milhões de reais em vendas líquidas de armas. Deste valor, R$ 24 milhões foram pelo mercado interno e R$ 158,5 milhões via exportação, sendo R$ 142,7milhões aos Estados Unidos, onde possui uma sede.

Quando consultamos o CNPJ da Taurus pelo site do Ministério da Fazenda, é possível ver as atividades que a empresa realiza, que são acompanhadas de numerações correspondentes à CNAE (Classificação Nacional de Atividades Econômicas), que é uma catalogação do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Em relação à empresa, há uma atividade principal, que é a fabricação de armas de fogo, outras armas e munições, e secundárias, sendo, dentre elas, o comércio varejista de armas e munições.

Na página de transparência do BNDES, a CNAE que aparece nas planilhas em relação ao financiamento para a Taurus é a de fabricação de armas. No projeto mais recente disponível, o banco destinou R$ 9.995.000,00 para a fabricante em um contrato de 2013 com a descrição de “desenvolvimento de novos produtos e processos de fabricação, bem como melhorias e adaptações dos produtos existentes”.  Há pelo menos 73 operações de financiamento desde 2002 pela consulta do CNPJ no portal do banco.

Em 2016, o Instituto Igarapé fez um pedido via Lei de Acesso à Informação ao BNDES sobre as transações para as empresas do setor. A Taurus recebeu R$ 53.403.381,00 em empréstimos do BNDES, de 2008 a 2015. “Mais do que qualquer outra empresa do setor de defesa fora da indústria aeronáutica”, declarou o diretor canadense do instituto Robert Muggah, especialista em mercado bélico.

De acordo com Jefferson Nascimento, “o BNDES tem uma interpretação estrita sobre o que é comércio de armas. Ele entende que não financia empresas que tenham como principal função o comércio de armas. Por exemplo, a Taurus não é uma empresa de comércio de armas, ela produz armas”.

O MPF (Ministério Público Federal) de Sergipe denunciou neste mês a empresa por problemas em dez modelos de armas, pedindo que sejam retiradas do mercado e por se caracterizar como um monopólio no setor, controlando 90% do mercado de armas leves. Os promotores também apontam que 19 dos 26 Estados e o Distrito Federal do país relataram problemas nas armas fabricadas pela empresa. A Taurus também responde a outro processo do MPF que corre em segredo de justiça e que a acusa de venda ilegal de armas a um traficante do Iêmen, local onde o conflito já matou mais de 8 mil pessoas desde 2015.

Dentro do setor de segurança pública interno, a Taurus está impossibilitada de participar do processo de licitação do governo de São Paulo até 2018 por graves falhas encontradas nos produtos no ano passado. Os defeitos supostamente teriam levado à mortes não intencionais de policiais e civis. O deputado federal Major Olimpio (SD-SP) tentou solicitar a instauração de uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito), mas não conseguiu. Para Muggah, “esses incidentes, juntamente com a difícil economia, aceleraram os espaços para a aplicação das leis de fornecedores estrangeiros”.

Para o assessor da Conectas, a ratificação do Tratado de Comércio de Armas, que prevê que os Estados-membros da ONU prestem contas e sigam determinadas cláusulas de transferência e exportação de armas, é um caminho que o país precisa seguir. “É o primeiro acordo global a regular desde as armas “leves” a lançadores de mísseis, aviões e helicópteros de combate, submarinos, munições”, frisa. No entanto, ele aponta que o tratado precisa ser discutido, uma vez que há “lacunas” por não abarcar o Oriente Médio e a Ásia, que não integram a ONU.

O Brasil apenas assinou o tratado, demonstrando interesse, mas para valer como obrigação, é preciso ser sancionado. O documento está em tramitação na Câmara dos Deputados e corresponde ao Projeto de Decreto 298/2015. A última movimentação foi em setembro, quando a Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado deu parecer favorável para a proposta.

Questionada pela reportagem sobre a Taurus, o BNDES respondeu: “Em 2013, o BNDES aprovou financiamento à Forjas Taurus. A análise e posterior acompanhamento do financiamento seguiram os ritos processuais previstos nos normativos do BNDES, de forma aderente às boas práticas da instituição. O projeto foi finalizado, sem que se observassem problemas durante sua execução, e o financiamento encontra-se em fase de amortização. O BNDES está ciente da impossibilidade de a Forjas Taurus participar de licitações em São Paulo até 2018 e acompanha os desdobramentos da questão, devendo ser ressaltado que tal fato será objeto de consideração caso a empresa apresente novo pleito ao Banco. O mesmo procedimento se aplica a qualquer outra empresa que se encontre nesta situação e venha a pleitear a concessão de financiamento ao BNDES”.

 

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