#AgoraÉQueSãoElas – Mulheres, precisamos falar sobre armas.
Nesta última terça-feira (3/11), acabaram as atividades da Comissão Especial que analisou o projeto de lei 3722/2012, que revoga o Estatuto do Desarmamento. Dentre as principais mudanças propostas nos mais de 140 artigos do texto aprovado pela Comissão, destaca-se a possibilidade de que pessoas voltem a andar armadas nas ruas. Hoje o cidadão pode possuir até seis armas, que devem permanecer na residência ou no ambiente de trabalho do proprietário. O porte de armas de fogo, no entanto, é restrito a categorias específicas, incluindo membros das forças de segurança pública e de defesa.
E qual foi a justificativa usada repetidas vezes por deputados da Comissão? Diante da falência do Estado em garantir a segurança pública, é preciso que os cidadãos possam se proteger, proteger sua família e evitar que suas mulheres e filhas sejam estupradas. E portar armas seria o melhor meio de garantir essa proteção.
O argumento baseia-se em uma lógica irresponsável, que vai na contramão do fortalecimento de políticas de segurança pública integradas e eficientes na prevenção e redução da violência, ignorando os efeitos positivos do Estatuto do Desarmamento na redução da violência letal no país. Além disso, ao defenderem que o porte civil e o aumento de armas em circulação teriam impacto positivo na redução de diferentes formas da violência que afetam mulheres e meninas em todo o país, os deputados pareceram desconhecer – ou desconsiderar – as dinâmicas específicas destas violências.
Aproximadamente 15 mulheres são assassinadas todos os dias no Brasil. As armas de fogo são utilizadas pelos agressores em cerca de 50% dos casos. De acordo com o Mapa da Violência de 2012, aproximadamente 41% dessas mortes acontecem na casa da vítima, percentual muito maior do que entre homens (14,3%). Diante deste dado, que revela a grande proximidade entre a vítima e o agressor, seria quase inevitável questionarmos a eficácia das armas como mecanismo de proteção e de prevenção da violência contra mulheres. Armas de fogo não são um bom instrumento de defesa, principalmente quando falamos de um quadro de violência doméstica.
Também seria provável que duvidássemos da eficácia das armas de fogo enquanto instrumento de defesa para os casos de estupro no Brasil diante de uma análise mais detalhada desta forma de violência. De acordo com levantamento do IPEA, estima-se que haja anualmente em torno de 527 mil tentativas ou casos de estupros consumados no país, dos quais apenas cerca de 10% seriam reportados à polícia. Em 2011, do total de casos notificados, 88,5% das vítimas eram do sexo feminino, e mais da metade tinha menos de 13 anos de idade. O estudo ainda revela que 70% dos estupros são cometidos por parentes, namorados, amigos ou conhecidos da vítima.
A ausência quase completa de um debate qualificado sobre regulação de armas de fogo no país e seu impacto na questão da violência contra a mulher e meninas durante os trabalhos da Comissão Especial, porém, não foi espantosa, a julgar pela baixa representatividade das mulheres em sua composição: dentre os seus 54 membros, apenas duas deputadas.
Podemos todos concordar em um ponto: precisamos avançar urgentemente no fortalecimento de políticas de prevenção e de redução das diferentes formas de violência que afetam milhares de mulheres e meninas em todo o Brasil, incluindo sua manifestação mais extrema do feminicídio. Mas a flexibilização do Estatuto do Desarmamento não contribui para esse avanço. É, antes, um retrocesso.
O texto foi aprovado pela Comissão e agora segue para a votação do plenário da Câmara. Diante da baixa representação das mulheres no Congresso, precisamos multiplicar nossos esforços e ações para que a narrativa do homem armado, defensor da ”vida e da honra” de sua esposa e filhas, não paute propostas legislativas que falam em nosso nome ignorando nossas vozes e a realidade com a qual somos confrontadas todos os dias em todos os cantos do país.
Mulheres, neste momento tão importante de mobilização ao redor de pautas que que ameaçam nossas conquistas políticas, precisamos – e muito – ocupar também mais este debate. Falemos sobre armas. Reforcemos o quanto é inaceitável que a defesa de uma população armada seja feita em nome de nossa proteção. Não deixemos que nos usem como exemplo para justificar medidas que nos colocam, literalmente, na mira. Evitemos mais este retrocesso.
Michele dos Ramos, Estadão