Nova temporada de Narcos mostra a ascensão do Cartel de Cali

Publicado originalmente em ÉPOCA Cultura, por Nina Finco, de Bogotá, em 01/09/2017

A série também retrata o fracasso da guerra às drogas

Uma perseguição sobre os telhados laranja das casas do centro da cidade colombiana de Medellín culminou na morte de Pablo Escobar e foi o ápice do último episódio da segunda temporada de Narcos, na Netflix. Não foi, no entanto, o capítulo final da história do narcotráfico colombiano. A nova fase da trama produzida pelo brasileiro José Padilha (que estreia mundialmente em 1º de setembro) se apoia, outra vez, em histórias reais para mostrar o que se seguiu à queda do patrão do mal: a ascensão do cartel de Cali, liderado pelos irmãos Gilberto e Míguel Rodríguez Orejuela, apoiados pelos capos Pacho Herrera e Chepe Santacruz. Narcos relembra que a guerra contra as drogas não é simples e reforça que seus vilões parecem mais uma obra de ficção, de tão difíceis de combater.

Wagner Moura como Pablo Escobar sai de cena para dar espaço a Damián Alcázar (Gilberto), Francisco Denis (Míguel), Alberto Ammann (Pacho) e Pêpê Rapazote (Chepe). Pedro Pascal retorna ao papel de Javier Peña, policial que trabalha com poucos escrúpulos numa busca cega para acabar com o tráfico. Na temporada anterior, Peña aceitou se envolver com os irmãos Rodríguez para derrubar Escobar. Agora, ele será obrigado a lidar com os tiros que não atingiram o narcotraficante e saíram pela culatra das armas do DEA, o departamento americano de combate ao tráfico de drogas. Todos os episódios carregam o  DNA de Padilha. A abertura segue ao som de Rodrigo Amarante, mas ganha novas cenas, com imagens históricas da operação policial e das ruas de Cali – é possível ver que a cidade também possui uma estátua de Jesus Cristo que se estende de braços abertos , tal qual a do Rio de Janeiro. Cada aspecto da nova investigação para desmantelar o esquema de narcotráfico de Cali é destrinchado de forma ágil, mas também explicativa. A ação se desenrola conforme a narração ácida de Peña elenca os acontecimentos mais importantes da trama.

A partir de 1994, o cartel de Cali cresceu exponencialmente usando métodos diametralmente diferentes dos de Escobar.  Enquanto ele almejava os holofotes e buscava o amor e a proteção do povão de Medellín, os chefões de Cali preferiam se esconder nas sombras da politicagem e da corrupção. Eles aperfeiçoaram o narcotráfico ao construir redes de distribuição de drogas complexas pelo México, pela Europa e pelo Oriente, sem deixar rastros. Mesmo quem trabalhava para o cartel de Cali nem sequer sabia de quem era a cocaína que transportava. O cartel subornou a polícia, os políticos e as companhias telefônicas. Nada acontecia no país, e principalmente em Cali, sem que eles soubessem. Chegaram a ser chamados de “KGB de Cali”, em referência ao serviço secreto soviético. “Eles se diziam verdadeiros homens de negócios”, disse o ator Damián Alcázar a ÉPOCA nos sets da série, em Bogotá. “Mesmo evitando a violência sempre que podiam, eles eram ainda mais perigosos que Escobar. Corromperam todos os estratos da sociedade e atingiram os cidadãos muito mais de perto, sem se denunciar.”

A discrição era uma regra. Os membros do cartel de Cali nunca se reuniam todos num só lugar e possuíam uma equipe de segurança gigantesca e bem organizada. Na hora de se livrar de seus inimigos, não faziam alarde como Escobar. Amarravam os corpos com barbante e os jogavam no Rio Cauca, segunda maior artéria fluvial da Colômbia. Quando o corpo inchava, a tensão do barbante o cortava em pedacinhos. As vítimas viravam comida de peixe e desapareciam. Os irmãos Rodríguez e os capos Herrera e Santacruz fingiram não ser como Escobar – o país, cansado da guerra, acreditou.

Ao final da segunda temporada, muitos se perguntaram que rumos a história tomaria, já que a série havia perdido Escobar, seu personagem principal. Mas foi por isso que ela foi intitulada Narcos: para contar a longa e intrincada história da guerra às drogas, que, até hoje, é a causa de milhares de mortes todos os anos, não apenas na Colômbia, mas também no México, no Brasil, nas Filipinas e em muitos outros países. A queda do cartel de Cali, em 1996, tampouco significou o fim da história. Ela significou o desmantelamento da cadeia tradicional de produção da cocaína na Colômbia. Até então, grandes organizações hierarquizadas e localizadas em pontos específicos do território colombiano controlavam o narcotráfico. Sem chefões para tomar conta, porém, a produção se espalhou por diversas regiões da Colômbia. “O poder do narcotráfico foi transferido para estruturas menores que dispersaram a violência e a sanguinolência para outras partes do país”, afirma a economista colombiana Katherine Aguirre, especialista em questões de conflito e violência. “Houve também um fortalecimento das relações entre os grupos de narcotraficantes com os guerrilheiros das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) e os paramilitares.”  Nessa nova estrutura, quando alguém é preso, sua substituição é rápida, o que dificulta ainda mais a ação das autoridades e a dissolução das operações criminosas.

Em 2000, o Plano Colômbia, uma parceria do governo colombiano com os Estados Unidos para combater a produção e o tráfico de cocaína local, implicou grandes transformações nas Forças Armadas, proporcionou maior profissionalização dos militares e melhoria de equipamentos. “Apesar de todo o investimento financeiro, a guerra contra as drogas só resultou em mais mortes e na criminalização de pessoas que agiam nas camadas mais frágeis do tráfico, como produtores camponeses que não viam alternativas para se manter”, afirma Katherine. No ano passado, completaram-se 16 anos da implementação do Plano Colômbia. Ainda assim, foram registradas 12.262 mortes violentas – o equivalente a 33 homicídios por dia – decorridas de conflitos ligados às drogas. “Antes, havia menos produção de drogas que hoje”, afirma Alejandro Villanueva Bustos, cientista social da Universidade da Colômbia.

 

O narcotráfico se estendeu também para outros territórios. Os traficantes colombianos fortaleceram sua presença nas rotas africanas e na distribuição para a Europa, por meio do mar. Assumiram também o controle de rotas no Brasil, como as que passam por Amazonas e Roraima, onde a fiscalização é precária nas fronteiras. Com a fragmentação dos grandes cartéis colombianos, os cartéis mexicanos ascenderam. Grupos como Los Zetas tomaram o controle de parte da exportação de cocaína para os Estados Unidos. “O capital disponível entre os novos traficantes colombianos permitiu a abertura de uma grande quantidade de rotas para a saída das drogas”, diz Bustos.

Com o acordo de paz fechado no ano passado com as Farc, o governo colombiano, sob a Presidência de Juan Manuel Santos, mudou sua abordagem de combate ao narcotráfico. O acordo de paz estipula que a guerrilha abandone as armas, deixe de plantar e vender coca para manter suas operações e se integre à vida política e institucional do país como um partido. Nas áreas antes dominadas pelas Farc, o governo iniciou um programa em que incentiva os agricultores a abandonar o cultivo da coca por outras culturas legais, como o cacau, cuja produção possa ser escoada para indústrias nacionais. Dessa forma, os camponeses teriam novas opções e não teriam de se submeter à pressão dos grupos traficantes. A nova estratégia está de acordo com as novas diretrizes propostas pela Comissão Global de Políticas sobre Drogas, que propõe ações mais centradas nas pessoas e menos na repressão policial. Mas é complexa e de resultados ainda incertos a curto prazo. “A questão é socioeconômica, pois a plantação de coca na Colômbia, um país de forte tradição rural, está ligada à subsistência”, afirma Ilona Szabó, cofundadora do instituto de pesquisas Igarapé, especializado em estudos sobre a violência, e autora do livro Drogas – As histórias que não te contaram (Zahar, 200 páginas, R$ 39,90). “Os camponeses plantam o que conseguem vender.”

Ao longo dos novos episódios, Narcos escancarará o emaranhado de conexões entre o poder e os chefões do cartel de Cali. Mostrará para o público como a corrupção é uma forma de violência tão poderosa quanto explosões e trocas de tiros. E evidenciará como os esforços tomados na guerra às drogas foram em vão. “É uma história sobre o narcotráfico. Não vai acabar agora, pois a luta contra as drogas tampouco acabou”, afirma Alcázar. Antes, aprendia-se sobretudo com os livros de história. Agora, é possível também aprender com uma web série.


* A repórter viajou a convite da Netflix

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