E se pudéssemos salvar milhares de vidas?
Julho, 2017
Todos os anos, quase 60.000 brasileiros têm suas vidas interrompidas em decorrência de mortes violentas intencionais. É como se, anualmente, acontecessem 300 acidentes do mesmo porte que do maior desastre aéreo ocorrido no país. As perdas nesse intervalo de tempo equivalem ao desaparecimento de 130 delegações olímpicas brasileiras ou da população inteira da cidade de Mariana (MG). Em outros termos, é como se 94% dos alunos da Universidade de São Paulo fossem vitimados fatalmente a cada ano. O problema ganha uma escala ainda maior quando se trata do número total de pessoas afetadas por essas mortes. Ao menos 50 milhões de brasileiros com mais de 16 anos tiveram alguém próximo assassinado.
O Brasil não está sozinho quando se trata dos níveis epidêmicos de violência letal. A América Latina é a região mais mortífera do planeta. Com apenas 8% da população mundial, os países que a constituem concentram 38% dos homicídios globais. Anualmente, a região registra 144.000 assassinatos. Sete países são especialmente atingidos pelas altas taxas de criminalidade: além do Brasil, Colômbia, El Salvador, Guatemala, Honduras, México e Venezuela estão nessa lista. Caso medidas imediatas não sejam tomadas, esse cenário pode piorar, indicam projeções do Observatório de Homicídios, do Instituto Igarapé. De acordo com essas estimativas, a taxa de homicídios regional pode saltar de 21 para 35 por 100.000 habitantes em 2030. Isso representa sete vezes a média global.
Mas, e se pudéssemos salvar milhares de vidas? A resposta, que pode surpreender alguns, é que não apenas desejamos, mas podemos, sim, reduzir homicídios, como alguns locais já fizeram. Há exemplos de experiências positivas na própria América Latina, em cidades como Bogotá, Medellín (Colômbia), Ciudad Juárez (México) e São Paulo. O momento é de olhar para esses exemplos e alastrar a adoção de estratégias cuja eficácia na redução de homicídios foi constatada.
Os resultados são promissores. O compromisso de sociedade e governos por uma redução de 50% nos homicídios em dez anos – ou seja, de cerca de 7% ao ano – significaria evitar a perda de nada menos que 365 000 vidas. Tal objetivo está sendo promovido por uma iniciativa recém-lançada no Brasil. A campanha Instinto de Vida reúne cerca de trinta organizações dos sete países mais atingidos pela violência. Juntas, elas pretendem mobilizar cidadãos e fazer com que autoridades se comprometam a adotar estratégicas específicas para conter os homicídios. A aliança oferecerá a fazedores de políticas o apoio técnico necessário para isso.
Para que tal reversão de cenário seja possível, no entanto, é necessária uma abordagem diferente da resposta que parte significativa das autoridades vem dando ao problema da violência letal, em geral pontual ou populista. Hoje, governos latino-americanos têm investido bilhões em estratégias de repressão pouco inteligentes e com custos econômicos, sociais e humanos altíssimos.
Entre 2010 e 2014, por exemplo, as despesas com a administração dos sistemas penitenciários em países da região quase dobraram, passando de 4,3 bilhões de dólares para 7,8 bilhões de dólares, em decorrência do encarceramento massivo. Por outro lado, a perda de renda ocasionada pela inatividade produtiva dos detentos aumentou de 5,8 bilhões de dólares para 8,4 bilhões de dólares no período. Tal abordagem, além de cara, é pobre em indícios sobre a sua eficácia.
A taxa de esclarecimento de homicídios na região é muito baixa. Precisamos concentrar os esforços do sistema de justiça criminal nos crimes violentos e aumentar a oferta de penas alternativas para crimes de menor potencial ofensivo. Caso contrário, continuaremos pagando caro, enxugando gelo e oferecendo mão de obra farta para o crime organizado nas prisões.
É preciso uma aposta coletiva em políticas públicas baseadas em evidências. Estudos sobre a violência letal indicam que ela se concentra em torno de lugares, horários, pessoas e comportamentos específicos, o que torna sua ocorrência previsível. Intervenções para reduzir os homicídios devem levar tais dados em consideração. Isso significa concentrar os esforços de prevenção e contenção em objetivos muito bem determinados.
“É necessária uma abordagem diferente da resposta que parte significativa das autoridades vem dando ao problema da violência letal, em geral pontual ou populista”
Há um número significativo de exemplos de estratégias que cumprem esse papel. Uma delas é a intervenção em pontos quentes (ou manchas criminais), identificados a partir de dados sobre onde os crimes ocorrem com frequência. Dessa forma, é possível concentrar recursos humanos e econômicos em bairros, ruas e endereços onde há uma maior probabilidade de as ocorrências se repetirem. O foco nesses lugares deve ir além de intervenções policiais para incluir também desenvolvimento econômico e social e transformação do entorno. O papel das prefeituras nessa equação é fundamental.
Outro exemplo de estratégia baseada em evidência e com impacto alto é a prevenção à reincidência. Em termos práticos, ela consiste em identificar pessoas que reincidem em atos violentos e oferecer a elas programas de reabilitação. Nesse caso, é possível focar indivíduos que cometeram crimes não letais, evitando uma possível escalada da violência. Tem impacto positivo também o fortalecimento das capacidades do sistema de Justiça, com o objetivo de melhorar o sistema de investigação criminal – hoje, homicídios na América Latina, inclusive no Brasil, raramente são elucidados ou resultam em condenações. Tornar mais sólidas as capacidades da polícia e a sua relação com as comunidades é outro componente essencial.
Há ainda uma série de outros componentes que podem ser listados ao lado das estratégias mencionadas, como a regulação de armas e munições, o acesso a oportunidades e a políticas sociais e a prevenção precoce, que representa o desenvolvimento de capacidades de proteção familiar para reduzir fatores de vulnerabilidade à violência.
Para que soluções que funcionam sejam adotadas, são imprescindíveis também lideranças comprometidas com a redução dos homicídios. Embora esse seja um elemento comum entre as histórias que tiveram sucesso na região, o número de autoridades com tal perfil é minguado e insuficiente. Precisamos de tomadores de decisão com empenho para reconhecer que a violência letal é uma agenda prioritária para o desenvolvimento da região. É essencial que eles tenham coragem para mudar a abordagem relacionada ao tema, provocando também uma virada positiva em relação aos resultados. Precisamos e podemos salvar vidas. É hora de fazê-lo.
(*) Ilona Szabó de Carvalho é diretora executiva do Instituto Igarapé, co-coordenadora da campanha Instinto de Vida – www.instintodevida.org.