“Poucos falam pela descriminalização das drogas, mas entre quatro paredes é diferente”

El País

Abril, 2017

Para especialista, faltam pessoas com a visibilidade para levantar a bandeira da mudança na política de drogas

Empatia. Esse foi o recurso usado por Ilona Szabó, 38, para tentar chamar a atenção à discussão sobre as drogas. Para isso, colocou tudo o que sabe sobre o tema na pele de cinco personagens em Drogas: As histórias que não te contaram (Editora Zahar), escrito em parceria com a jornalista Isabel Clemente. No livro recém-lançado, Daniel representa a vida de milhares de crianças colombianas entregues ao narcotráfico. Cadu é o jovem de classe média que luta contra a dependência química. Irina é a mulher que arrisca a vida no transporte de drogas para o marido que está preso. Mete-Bala é um jovem traficante que um dia sonhou em ser dançarino e Jaqueline retrata os dilemas da força policial. “Meu desafio é: Me diga se você não conhece ou não empatiza com nenhuma dessas pessoas”, diz Ilona. “É quase impossível você não ser tocado”.

Os conhecimentos que a autora quer passar sobre o tema não são poucos. Formada em Relações Internacionais e co mestrado em estudos de conflito e paz, Ilona é especialista em segurança pública e políticas de drogas. Cofundadora e diretora-executiva do Instituto Igarapé, que trabalha com os temas de segurança, Justiça e desenvolvimento. Foi secretária-executiva da Comissão Global de Políticas sobre Drogas e corroteirista do documentário protagonizado pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, Quebrando o Tabu. Em conversa na redação do EL PAÍS, ela falou sobre o vínculo entre a política de drogas atrasada do Brasil em relação a outros países e a violência atual.

Pergunta. O ex-presidente Fernando Henrique Carloso disse que há uma ideia de que a sociedade brasileira é conservadora, logo não quer falar sobre drogas e logo o Congresso também não fala sobre essa questão. Faz sentido esse raciocínio?

Resposta. Nos costumes somos muito permissivos, fomos um dos últimos países a abolir a escravidão, a questão do divórcio, tudo vira tabu. Mas a prática é diferente. Quando a gente pergunta da forma certa, ou seja “olha, um dependente de drogas, quem ele deve ver: um médico ou a polícia?”. Quer dizer, se você traduz para a linguagem da população as perguntas que são feitas com termos difíceis, elas falam “um médico”. Eles sabem responder. Tem uma questão que a gente começa a tentar entender: tirar o uso [das drogas] da esfera criminal. A gente mistura tudo. Na verdade estamos discutindo diferentes políticas para diferentes drogas e esse é um caminho longo. O Brasil está super atrasado, mesmo em relação à América do Sul, para tratar o consumo de drogas no âmbito da saúde e da assistência social e não no âmbito criminal. É um grande tabu porque as pessoas falam que aí vai liberar geral. Mas nada mais é do que tratar um alcoólatra como uma pessoa doente. E não prender.

P. Qual é consequência dessa lógica?

R. Qual é o caminho, mesmo que você seja um consumidor? Você vai ser apreendido pela Polícia Militar, vai ser levado para a delegacia, vai abrir uma ocorrência, o MP vai ter que fazer uma denúncia, você vai ser encaminhado pra um juizado especial criminal. No ano passado no Rio, foram 11.000 apreensões de usuários e 12.000 de traficantes. Neste último caso, quem decidiu se [a pessoa presa] era usuário ou traficante era o policial, na maioria absoluta dos casos, e ,em geral, em flagrante. O percentual de drogas apreendidas, mais de 90% eram quantidades muito pequenas, que é o enxuga gelo. Enquanto isso, a gente não investiga nem 10% dos crimes de homicídio. A sensação de impunidade aumenta essa banalização. O valor da vida está baixo demais. Não tem custo matar.

P. Mas qual é sua ideia?

R. A nossa proposta é: separa o joio do trigo, tira o usuário da esfera criminal, libera esses recursos da segurança para outra coisa, e mesmo dentro da categoria tráfico, você tem que entender quem é a pessoa que está na produção, no embalar, no transporte, na venda e qual é a gradação disso pra depois ver quem são as pessoas que de fato são uma ameaça à sociedade, que estão matando, que estão fazendo controle de território…. É diferente. E tem que ser proporcional também dentro do tráfico. Então, o que tem que ser feito pra ontem é: tirar o consumo da esfera criminal, até que a gente consiga de fato entender que o foco precisa ser no crime violento. Nenhuma sociedade dá conta.

P. Mas de fato a ausência de debate no Congresso se dá pelo suposto conservadorismo da sociedade?

R. Quando eu fui fazer o debate [sobre liberação de drogas na FAAP, em São Paulo], eu fiquei pensando em quem poderia ir comigo. Tem pouquíssimas vozes expostas. Entre quatro paredes, é tudo diferente. Você conversa com a pessoa mais conservadora, do partido mais conservador do Congresso e ele fala: Eu entendo seu ponto, mas eu preciso me eleger. O que a gente não tem hoje é uma pessoa que traduza para a sociedade. Eu tenho o Fernando Henrique que fala com um público, tenho o doutor Drauzio Varella, em outro, e por isso que ele é tão importante, porque ele consegue falar com muita gente, mas eu não tenho um Lula falando para a população e explicando exatamente o que a gente está falando.

P. Como tocar as pessoas que pensam que não têm relação nenhuma com essa discussão sobre as drogas?

R. Essas pessoas, em primeiro lugar, vivem fora da realidade. Metade dos brasileiros já tiveram algum amigo ou parente ou conhecido assassinado. Cerca de 80% têm medo de morrer assassinado. O direito à vida, à liberdade de ir e vir em qualquer lugar do mundo são direitos sagrados. Uma cidade se faz na convivência, em andar, em ocupar os espaços, mas aqui, a gente acha que é normal não sair dos nossos bairros. Você acha que é normal, que é saudável você não entender outras realidades? Eu também tenho medo, mas a gente tem que fazer alguma coisa: de onde vem esse medo? Você acha que a solução é prender? Eu tenho dados que mostram que quanto mais a gente continuar prendendo da maneira como a gente está prendendo, que é generalizado, sem proporcionalidade, enviando para lugares que estão sendo controlados pelo crime organizado, mais a gente vai estar aumentando a criminalidade. A gente chegou num nível em que prender significa dar mão de obra para o crime.

P. Podemos dizer então que o Estado, com a atual política penitenciária, é muito responsável por essa série de rebeliões que ocorreram em presídios no início do ano?

R. As duas falhas muito graves no sistema e que ferem a Constituição são: a gente não separa preso provisório [que ainda não foi a julgamento] de permanente. E não separamos presos por grau de periculosidade. Aí você mistura quem está aguardando sentença com quem está condenado. E quem está aguardando sentença pode ser que seja inocente. Hoje, 40% da população carcerária são presos provisórios. A população carcerária no Brasil é de cerca de 650.000 presos, então são 260.000 pessoas aguardando sentença.

P. Como resolver?

R. Segurança é prevenção. Se você quer uma sociedade segura, você precisa olhar quais são os fatores de risco e prevenção de violência. Começa com investimento na primeira infância, no apoio às famílias uniparentais, normalmente mães que não têm os pais [da criança] e precisam trabalhar. É preciso um acompanhamento daquela criança e apoiar os núcleos familiares em áreas vulneráveis. Depois, olhar para a evasão escolar. Todas as estatísticas de quem é preso e de quem é morto mostram qual é o ano em que aquela pessoa deixou a escola. E a maior parte não completou o Ensino Fundamental. E uma parte pequenininha passou para o Médio mas não conseguiu completar. Então passa pela busca ativa da evasão escolar, ou seja, brigar por cada um deles [que estão deixando as escolas].

P. Quem fala sobre as drogas está numa camada da sociedade mais alta..

R. É, e quem fala para a população usa o medo como forma de manipulação. É isso que acontece com todo o conservadorismo, os mais reacionários. Todo o controle da população é pelo medo. E não pela evidência, pela esperança, pelas soluções. Porque isso é muito mais engajador, mobilizador e emocionante. O que eu tenho tentado dizer é: independente se você usa ou não usa, gosta ou não gosta, entenda o impacto e ajude para que essa mensagem chegue a mais pessoas. Mas eu preciso de um tradutor para chegar mais rápido para a população como um todo.

P. Em 2015, o Supremo discutiu a descriminalização do uso e porte da maconha. Três ministros votaram a favor. O quarto ministro, Teori Zavascki, pediu vistas e o processo agora está nas mãos do seu sucessor, ministro Alexandre de Moraes, que, no ano passado foi ao Paraguai, se deixou ser filmado arrancando pés de maconha com um facão e falou sobre a parceria com aquele país na erradicação da droga. Existe alguma esperança de que essa questão volte ao debate?

R. É a minha esperança. Eu coloco as minhas fichas hoje no Supremo. O Supremo já entendeu, principalmente pela questão do encarceramento feminino, que tinha algo muito errado com a nossa política de drogas. Até o mais conservador dos ministros, por mais que ele possa votar diferente do que a gente gostaria, ele entendeu que ali tem um problema. Neste processo especificamente, tratam da maconha. Mas é uma discussão que eu tive inclusive com alguns deles que é: não faz sentido você falar, por exemplo no alcoólatra, quem toma cachaça é criminoso, quem toma cerveja ou vinho não é. Eu tive uma conversa com Alexandre de Moraes sobre várias coisas quando ele ainda era ministro da Justiça, e eu tenho certeza de que a opinião dele sobre o tráfico e consumo não é diferente da dos outros juízes [que já votaram]. Eu creio, com toda a honestidade, que ele vai seguir o voto [dos demais juízes], porque ele entende que o consumo não é crime.

P. Mas para ele seguir o voto, primeiro ele precisa colocar esse processo na pauta do plenário, né?

R. Sim, ele tem que devolver. E o que faz o Supremo devolver? É pautar. Por que eu tenho esperança? Porque existe uma crise carcerária no país e há duas questões que nos ajudariam, do dia pra noite, num processo de curto prazo, a sair de onde a gente está: um, mutirões com força-tarefa focada em presos provisórios. Ou sentencia, ou solta. Define qual é a situação deles. E dois, reveja essa lei de drogas. Então, há uma urgência, que é a crise carcerária. A gente precisa lembrar que ela está aí.

P. A crise não foi resolvida só porque neste mês não está tendo rebelião…

R. Exatamente. Um pouco do nosso papel é dizer que ela continua, as prisões continuam alimentando o crime organizado, as pessoas continuam saindo piores, continuam morrendo lá dentro. A taxa de homicídio em prisão é de 150 para cada 100.000 habitantes, enquanto da população é de 29 para 100.000 habitantes, que já cinco vezes a média global. A gente não mata lá dentro, mas a gente deixa morrer, não dando remédio, não tratando quem está no presídio. Então tem esses dois entendimentos: tem uma crise que existe e tem duas maneiras rápidas de pelo menos cuidar disso e parar de todo o mês trazer mais gente para esse sistema, que é olhar para os presos provisórios e olhar a questão de drogas. E a questão de drogas pode ser olhada da seguinte forma: se o STF volta com esse julgamento e julga que é inconstitucional [punir] o uso e porte da droga, vão ter que ser criados critérios objetivos de distinção de uso e tráfico. Hoje a gente só tem critérios subjetivos. Na época do julgamento, a gente fez essa conversa, e propusemos instituir qual é o padrão do uso de drogas no Brasil para a pessoa não ser considerada traficante. Claro, se a pessoa estiver armada, é outra história, mas se não é nada disso, a Justiça deveria fazer o trabalho que ela não faz, que é: todos são inocentes até que se prove o contrário. Aqui, todos são culpados até que se prove o contrário. Na lei de drogas é isso mesmo. Na lei de homicídios, não. O homicídio, você responde em liberdade. O crime de porte de drogas não, se o policial achar que você é traficante.

P. Quando você fala em violência, você menciona o custo social dela. O que isso significa?

R. É sobre o impacto que a violência tem no setor de saúde, na produtividade, nas famílias com a perda de renda, porque a violência não é só pra quem sofre. Quando a gente pensa quem são as mulheres presas por drogas, por exemplo, a gente não faz a conta de que são, em geral, pessoas que não são uma ameaça à sociedade. E que essas pessoas poderiam ser punidas de outra forma, com alternativas penais. Mas elas são presas, aí mandamos os filhos delas para abrigos, porque em geral essas crianças não têm pais, e infelizmente a gente sabe que a custódia, seja de crianças, seja de adultos ou de doentes mentais, é muito precária, e a gente vai criando uma classe na sociedade de pessoas marginalizadas e criminalizadas. Quanto você acha que isso custa?

P. É mensurável?

R. É. Por exemplo, no custo da saúde, você consegue mensurar atendimento. O mesmo para o custo de abrigo para as crianças. O cálculo é de mais ou menos 5,4% do PIB do Brasil, ou seja, 260 bilhões de reais. Na América Latina, uma estimativa conservadora fala em 3,5% do PIB de toda a região. É grave.

P. Em um vídeo no TED, você diz que uma em cada dez pessoas assassinadas no mundo é brasileira…

R. É, é até um pouco mais do que isso. Estamos lançando uma campanha no próximo dia 3 de maio que é para reduzir em 50% o número de homicídios nos próximos 10 anos. É uma campanha focada em sete países: Brasil, Colômbia, El Salvador, Guatemala, Honduras, México e Venezuela. Dentro desses sete países, o Brasil é o campeão absoluto, cerca de 13% dos homicídios do mundo ocorrem no Brasil, pouco mais de uma a cada 10, e isso acontece há muitos anos.

P. Qual é o papel da polícia nesse número de homicídios?

R. É grande. Cerca de 15% dos homicídios no Brasil são ocasionados pela polícia.

P. Por que a nossa polícia é tão violenta?

R. Porque a polícia no Brasil vem de uma ótica da repressão. A gente tem um modelo de segurança pública que não fez de fato a transição da ditadura para a democracia. É uma estrutura que foi negociada para a polícia ser força auxiliar do Exército, e tudo isso foi negociado numa época onde os interesses eram outros. A realidade era um sistema de ditadura. Em outras áreas do Brasil, saúde e educação, por exemplo, a gente vem modernizando, mas na segurança você não consegue mexer. A gente tem uma distorção de todas as regras. Chegamos a um nível, com as mortes das crianças dentro de escola, que não há mais como não falar em regras de guerra. Por mais que a gente não esteja em guerra. Para ser menos complicado politicamente, vamos falar em conflito armado. E se agente está em conflito armado, as partes precisam seguir regras.

P. Que tipo de regras?

R. Uma das regras em guerra é que há espaços sagrados: escola e hospital, por exemplo. Há bandidos perto de escola? O policial não vai atirar. Deixa fugir. E não espere que essa regra seja primeiro cumprida pelos bandidos. O Estado precisa dar o primeiro passo.

P. Você fala em prevenção da violência através do social em um momento em que grupos conservadores pedem a revogação do estatuto do desarmamento…

R. Não são grupos conservadores, são grupos com interesses privados que se dizem conservadores. Qualquer dado, mundo afora, evidencia que  violência é “mais armas [igual a ] mais violência”. Desde 2003, quando foi aprovado o estatuto do desarmamento, o que a gente faz é, por um lado, brigar pela sua implementação. Faltam muitas coisas. Por exemplo, a integração de banco de dados da Polícia Federal com o Exército. Isso nunca teve. Marcação de munição do tamanho dos lotes para você poder rastrear de onde vem desvio… Armas, diferente das drogas, nascem legais. Então tudo o que a gente não consegue fazer com drogas, porque é tudo mais difícil, com armas não é. A nossa grande batalha é não ser radical e dizer “não às armas”. Ter uma política responsável em relação ao uso de armas que seja condizente com o drama social e da violência que a gente tem. Arma não é privilégio, não é direito, é uma responsabilidade, é um benefício que te está sendo concebido, então você tem que cumprir requisitos, assim como tirar a carteira de motorista. O que a gente vê é que tem armas de outros lugares entrando e tal, mas a arma que mata os brasileiros, em sua maior parte, é brasileira. E que nasceu legal. Nasceu na mão de um “cidadão de bem”.

 

 

O Instituto Igarapé utiliza cookies e outras tecnologias semelhantes para melhorar a sua experiência, de acordo com a nossa Política de Privacidade e nossos Termos de Uso e, ao continuar navegando, você concorda com essas condições.

Pular para o conteúdo