PF tenta engajar EUA no combate ao contrabando de armamentos

20/03/2018
Por Marcos de Moura e Souza
Publicado originalmente no Valor Econômico

A Polícia Federal quer que os Estados Unidos passem a adotar medidas para dificultar o acesso de criminosos brasileiros a armas. O alvo são armamentos adquiridos legalmente em solo americano e depois contrabandeados para o Brasil e para outros países da América Latina.

Entre as medidas defendidas pela PF está a criação de barreiras, nos EUA, para a exportação de armamento para o Paraguai.

O Paraguai é principal corredor de armas que chegam ao Brasil. Muito do que é vendido pelos negociantes paraguaios a grupos criminosos no Brasil chega, legal ou ilegalmente, dos EUA.

Brasil e Paraguai firmaram em 2006 acordo de cooperação para o combate ao tráfico de armas. A intenção da PF agora é tentar atuar na fonte: ou seja, convencer autoridades americanas a fecharem brechas de seu mercado legal que hoje são aproveitadas por contrabandistas com atuação no Brasil.

É uma abordagem de resultados ainda duvidosos e que esbarra em questões diplomáticas e nos interesses da influente indústria de armas dos EUA. Seria preciso que autoridades americanas aceitassem alterar procedimentos internos e, além disso, que adotassem medidas em relação a terceiros países.

A Embaixada dos EUA no Brasil não quis comentar diretamente as demandas da PF, mas disse que o governo americano vem trabalhando com o Brasil e outros países para desbaratar esquemas de contrabando de armas. A Embaixada do Paraguai disse que polícias dos dois lados da fronteira já trabalham em cooperação.

Maior mercado de armas de fogo do mundo, os Estados Unidos adotam regras hiperliberais para compra e venda domésticas de uma variedade de armamentos, de revólveres a fuzis. Algumas estimativas dão conta que para cada 100 habitantes do país, 89 possuem armas de fogo. Para uma parcela da sociedade americana, a desregulamentação é um problema, porque facilita a aquisição de armas por criminosos que disparam a esmo, muitas vezes em escolas. O último massacre ocorreu em fevereiro, numa escola em Parkland, Flórida.

Dezessete morreram. Para a PF, a preocupação é outra: a que a desregulamentação americana ajude criminosos brasileiros a se armarem ainda mais. Relatório recente da Polícia Federal sobre esse tipo de tráfico apontou que armas contrabandeadas para o Brasil abastecem principalmente narcrotraficantes e assaltantes de banco e de empresas de valores.

Metralhadoras, fuzis, submetralhadoras, pistolas e munições são os produtos mais traficados. É o tipo de armamento usado por traficantes nos morros do Rio, por facções criminosas em assaltos recentes a empresas de valores e por grupos que aterrorizam cidades grandes e médias pelo país. Só no Estado do Rio de Janeiro, a polícia apreendeu em 2017 8.705 armas, entre as quais 3.636 pistolas, 499 fuzis, entre outras.

De 2007 a 2017, foram apreendidos mais de 3 mil fuzis no Estado. O arsenal contrabandeado passa escondido em contêineres por portos e aeroportos. Passa também por estradas pela vasta região de fronteira, sobretudo com a Argentina, Bolívia, Uruguai e Paraguai. O último tem sido a rota preferida.

“Embora o Paraguai figure como principal país de trânsito de armas para o Brasil, os EUA continuam sendo nosso maior fornecedor indireto de pistolas e fuzis ilegais, como resultado do livre comércio em lojas e feiras-livres que ocorrem em cidades americanas”, informa o relatório assinado pelos delegados da PF Luís Flávio Zampronha, chefe da Divisão de Repressão a Crimes contra o Patrimônio e ao Tráfico de Armas, e Marcus Vinícius da Silva Dantas, que integra a mesma divisão.

A Polícia Federal tem atuado em cooperação com Bureau de Álcool, Cigarro, Armas de fogo e Explosivos, ligado ao Departamento de Justiça americano, e com a Agência de Investigação de Contrabando de Armas, Munição e Explosivos, ligada à Immigration and Customs Enforcement (ICE). Os contatos da polícia se fazem também por meio da Embaixada dos EUA em Brasília.

Os dois países trabalham no rastreamento da origem e do caminho das armas apreendidas com criminosos aqui. Essa cooperação é vista pela PF como muito bem-sucedida. É por meio dela que há hoje diversas investigações em curso com o intuito de levar à prisão americanos ou estrangeiros que, a partir dos EUA, vendem armas que chegam ao Brasil.

Um dos últimos resultados desse trabalho conjunto foi a prisão do brasileiro Frederik Barbieri na casa em que ele vivia na Flórida. Barbieri foi apontado como um dos maiores traficantes de armas para o Brasil e ganhou logo a alcunha hollywoodiana de “Senhor das Armas”. Ele vinha enviando o contrabando para o Brasil embalado em aquecedores de piscinas.

O que a Polícia Federal defende no âmbito da cooperação policial com os Estados Unidos são medidas adicionais. Uma delas seria uma moratória parcial das exportações de armas dos EUA para alguns países, entre eles o Paraguai. O Brasil estaria fora da medida porque não importa armamento americano, a não ser por meio das Forças Armadas.

“Uma moratória seria uma medida interessante”, disse ao Valor o delegado Marcus Dantas. “Se, por exemplo, a gente informa que está tendo muita apreensão de armas exportadas pelos EUA para determinado país, que eles levem isso em conta para a questão das autorizações de exportação, que são atos administrativos”, disse o delegado.

A proposta não é, disse ele, de um bloqueio completo, como a que os EUA impuseram em 1996 ao Paraguai em relação à venda de armamento. “É o uso de mais critérios. Ver a situação de armas per capita. O mercado paraguaio não absorve aquele tanto de arma, então tem um escoamento do excedente”, afirmou. Os EUA não são um grande exportador de armas. Seu forte é o mercado doméstico.

Em 2015, a produção no país foi de 9,3 milhões e as exportações de apenas 343,4 mil, segundo estatísticas do governo americano. De acordo com dados da Polícia Federal, o Paraguai importa principalmente pistolas dos Estados Unidos. Uma parte é vendida clandestinamente a brasileiros. Fuzis de origem americana também fazem escala em solo paraguaio. Uma estimativa citada internamente na PF dá conta de que 60% dessas armas passam pelo Paraguai antes de chegar a criminosos brasileiros.

Parte delas vem direto dos EUA para portos e aeroportos do Brasil. Foi no aeroporto do Galeão que a polícia encontrou no ano passado 60 fuzis escondidos em aquecedores de piscina enviados ao país por Barbieri. O trânsito de armas e munições dos Estados Unidos para Bolívia, Argentina e Uruguai também é fonte de preocupação da polícia brasileira – embora numa escala menor.

Em seu diálogo com representantes dos Estados Unidos, a PF tem defendido que as autoridades americanas intensifiquem as fiscalizações nos contêineres que deixam o país rumo à América do Sul. “A gente escaneia muita coisa que sai do Brasil e essa é uma contrapartida que a gente espera das autoridades americanas”, diz o delegado Dantas. Outro ponto que passou a ser pleiteado pela PF é mais regulamentação na venda de kits para montagem de armas.

Os controles americanos, já considerados leves para a venda de armas de fogo, são menores ainda para a venda de itens avulsos – como cano, ferrolho e armação – para quem quer montar o próprio armamento. A Polícia Federal diz que contrabandistas com clientes no Brasil já perceberam a brecha.

O Brasil não é o único país afetado pelo armamento com origem nos Estados Unidos. “A falta de regulamentações nas vendas de armas de fogo dentro dos EUA não está alimentando apenas as altas taxas de violência doméstica, mas também contribuindo para a violência associada a armas em toda a região [da América Latina]”, disse ao Valor, por e-mail, Robert Muggah, diretor de pesquisa do Instituto Igarapé um centro de pesquisas dedicado a estudos sobre segurança e desenvolvimento, sediado no Rio.

“A maioria das armas de fogo e munições modernas que fazem parte do arsenal de grupos criminosos é adquirida nos EUA e de outros fornecedores na Europa e na Ásia”, afirmou ele. Ele cita que parte das armas de fogo que está nas mãos de criminosos em países da América Latina veio de arsenais públicos, de empresas de segurança.

Mas que além disso há um intenso movimento transnacional de armas motivada pela demanda do crime organizado. Ao defender mais restrições junto a autoridades americanas, a PF aspira uma redução da oferta de armas ao Brasil. Seria uma das formas de minar o poderio bélico de criminosos no país. Desde 2012, a PF detecta a existência de esquemas de tráfico de armamentos e munições a partir do território americano.

Naquele ano, em parceria com autoridades americanas, a Polícia Federal desmantelou um grupo encabeçado por brasileiros que remetia fuzis semelhantes ao AK-47 escondidos dentro de colchões em meio à mobília de famílias que estavam retornando ao Brasil. As cargas iam para o porto de Santos. A PF disse que o grupo pode ter contrabandeado 400 fuzis antes de ser descoberto.

Frederik Barbieri foi além. Segundo o Ministério Público Federal, ele pode ter enviado da Flórida para traficantes do Rio de Janeiro quase 1,2 mil fuzis e 300 mil munições entre 2014 e 2017. A facilidade de se comprar armas legalmente nos EUA é uma atração para criminosos. Qualquer cidadão americano, maior de idade – ou estrangeiro legalizado – compra sem grandes dificuldades um AR-15 ou um armamento do tipo em lojas de esporte ou em grandes redes de varejo como o Walmart.

Em muitos casos, traficantes usam “laranjas” para adquirir legalmente armas que depois vão atender à demanda do crime no exterior. As chances de ganhos elevados é um dos atrativos. Um fuzil que pode ser comprado por US$ 1,5 mil a US$ 2 mil (entre R$ 4,5 mil e R$ 6 mil) nos Estados Unidos aqui é vendido para criminosos por R$ 40 mil, R$ 50 mil ou até R$ 70 mil, segundo a PF. Alguns contrabandistas que até então driblavam autoridades nos EUA remetendo eletrônicos e celulares para o Brasil migraram para o mercado clandestino de armas.

“Existem casos de pessoas que começaram como pequenos contrabandistas e foram crescendo com armas. Em vez de o sujeito ficar trazendo iPhone que lá ele paga US$ 200 e aqui vende por R$ 6 mil, passa a contrabandear arma. Se ele passar um fuzil equivale a passar quase dez iPhones”, disse o delegado Marcus Dantas. E esse parece ser o perfil dominante dos traficantes de armas nos EUA atualmente.

A figura de criminoso poderoso que monopoliza o submundo do negócio de armas ficou para os filmes, segundo um estudo de 2016 do Small Arms Survey, intitulado “The Mechanics of Small Arms Trafficking from the United States”. “A maior parte do tráfico de armas é feito de forma menos chamativa, menos centralizada e é ainda mais difícil de ser barrada”, aponta a pesquisa. “Essa pulverização atrapalha demais”, afirma Dantas. “Todo dia está aparecendo gente fazendo essas remessas”, diz, referindo-se às remessas ilegais de armas dos EUA para as mãos de criminosos brasileiros.

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