Os Mercadores da Morte do Brasil
Enquanto o Brasil sofre as piores crises econômica e política de que se tem lembrança, dificilmente se pode culpar os brasileiros por serem desatentos. Mas há um assunto que os políticos – e os cidadãos – brasileiros não estão discutindo, embora haja o risco de que ele manche a reputação internacional do Brasil como defensor dos esforços para alcançar a paz e da diplomacia: uma indústria de armas que não está sujeita a controles e seu envolvimento em conflitos externos no mundo inteiro.
As impressões digitais dos maiores fabricantes de armas do Brasil estão aparecendo em um número crescente de lugares conflagrados do mundo, entre eles o Iêmen, onde milhares de civis estão morrendo em uma guerra penosa cujo fim é impossível prever. Uma investigação no mês passado sobre a Forjas Taurus, fabricante brasileira de armas, revelou que a empresa forneceu armas a um notório traficante de armas iemenita. Dois executivos da empresa – a maior da América Latina – foram acusados de transferências ilegais de armas, embora o caso permaneça sob sigilo. A Taurus, que está envolvida no caso apenas como parte interessada, negou qualquer irregularidade e diz que está trabalhando para “esclarecer os fatos”.
Os detalhes dos delitos cometidos pela Taurus lembram uma novela de espionagem. Membros do Ministério Público brasileiro alegam que Fares Mohammed Hassan Mana’a, um conhecido contrabandista de armas e ex-governador no Iêmen, desviou uma remessa de 8 mil pistolas de Djubuti para o Iêmen, através do estreito de Bab el-Mandeb. Acredita-se que Mana’a tem apoiado os rebeldes houthis em sua luta contra um governo apoiado pela Arábia Saudita e pelos Estados Unidos.
Estima-se que a guerra civil no Iêmen já tenha matado 10 mil pessoas desde o começo de 2015 e deslocado mais de 3 milhões. Os Estados Unidos, que forneceram apoio material e logístico para a campanha de bombardeio saudita, têm sofrido uma pressão intensa para esclarecer seu envolvimento na guerra civil devido ao custo humanitário e a sua participação cada vez mais direta no conflito.
Os dois executivos da Taurus (que deixaram a empresa após serem denunciados) foram acusados de negociar uma segunda venda, de 11 mil armas, em 2015, quando a Polícia Federal interveio.
Essa não foi a primeira vez que armas brasileiras apareceram no conflito iemenita. No fim do ano passado, pesquisadores descobriram munição e bombas de fragmentação não detonadas no Iêmen que, acredita-se, foram compradas da Avibras Indústria Aeroespacial, empresa sediada em São José dos Campos que fabrica foguetes de fragmentação e o sistema de lançadores múltiplos de foguetes Astros. Mais de 100 países já proibiram a fabricação, o armazenamento e a utilização dessas armas em razão de seu potencial de dano a civis e à infraestrutura urbana. Mas o Brasil não está entre eles.
O Brasil autoriza rotineiramente vendas de armas a países com histórico de violação a direitos humanos. Desde a década de 1980, o país firmou contratos importantes não apenas com a Arábia Saudita, mas também com Egito, Líbia, Irã, Iraque, Emirados Árabes Unidos, Zimbábue e dezenas de outros países no Oriente Médio e na África. Empresas brasileiras também intensificaram as vendas de armas “não letais”, como bombas de gás lacrimogêneo, spray de pimenta e bombas de efeito moral. Algumas dessas armas apareceram no Bahrein, na Turquia e no Egito, usadas com frequência pela polícia local em ações extremamente violentas para sufocar manifestações em favor da democracia.
Muitos dos fabricantes de armas brasileiros foram fortemente subsidiados pelo BNDES. Por meio da Lei de Acesso à Informação, descobriu-se que, entre 2008 e 2015, a Taurus recebeu R$ 53.403.381,00 em empréstimos a juros baixos. Apenas em 2013, ano em que teria vendido as 8 mil pistolas a Mana’a, a empresa se beneficiou de R$ 31.928.961,00 nessa modalidade. A Companhia Brasileira de Cartuchos (CBC), uma das maiores produtoras mundiais de munições (e acionista majoritária da Taurus) recebeu R$ 9.232.674,00 também entre 2008 e 2015. No mesmo período, todo o setor de defesa do país recebeu R$ 225.504.671,00 em empréstimos do BNDES. O banco hoje está envolvido no maior escândalo de corrupção já registrado no Brasil.
Um dos motivos pelos quais as exportações brasileiras de armas estão se expandindo a uma velocidade impetuosa é o fato de o Congresso brasileiro ter aprovado uma lei destinada a promover a inovação e a competitividade na indústria brasileira de defesa, que na época estava debilitada. A legislação também concede significativas isenções fiscais às empresas contempladas. O Brasil é hoje o quarto maior fornecedor mundial de munição e armas de pequeno porte e o segundo no hemisfério ocidental, atrás apenas dos Estados Unidos.
O fato é que ninguém sabe realmente quantas armas o Brasil vende pelo mundo afora, seja a países que violam direitos humanos, seja aos que os preservam. A política de exportação de armas do país é pouquíssimo transparente, marcada pela ausência de supervisão adequada e de mecanismos que garantam que os usuários das armas cumpram a legislação internacional. No que diz respeito a informações prestadas a autoridades internacionais sobre as transferências de armas que realiza, o Brasil ocupa uma posição próxima à da China e à da Ucrânia. Embora os diplomatas brasileiros possam discordar, há relativamente poucos mecanismos de controle sobre o que acontece com as armas depois que elas deixam o país. Talvez isso não seja tão surpreendente, uma vez que a política oficial brasileira em relação a armas ainda se baseia em grande medida em decretos das décadas de 1960 e 1970, na época da ditadura militar.
Para piorar a situação, o Brasil ainda não ratificou o Tratado sobre o Comércio de Armas (TCA), apesar de o país ter sido muito louvado ao assiná-lo, em 2013. Esse acordo fundamental proíbe os países de transferir armas convencionais – entre elas as pistolas fabricadas pela Taurus – a Estados e intermediários que apresentem alto risco de cometer crimes contra a humanidade. O acordo também exige que os Estados analisem a probabilidade de as armas serem desviadas e causarem graves violações de legislação humanitária, como se supõe que ocorreu no caso de Mana’a. No final de agosto, o TCA foi aprovado na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados, mas sua plena ratificação vem sendo postergada na Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado, dominada pelo grupo de parlamentares conhecido como “bancada da bala”.
O Brasil está cada vez mais isolado em sua posição em relação ao TCA e às munições de fragmentação. A imprensa americana noticiou recentemente que o último fabricante americano de munição de fragmentação, a Textron Systems, decidiu encerrar sua produção. A Textron tomou essa decisão depois de ter sofrido uma enorme pressão por parte de organizações de direitos humanos, e de a Casa Branca ter bloqueado um carregamento de munições para a Arábia Saudita. O Brasil deveria prestar atenção nisso.
O fato de o país não ter ratificado o TCA está solapando sua imagem no cenário global de potência defensora da paz, cultivada ao longo de 70 anos de participação em missões de paz da ONU; os negócios de armas suspeitos destoam cada vez mais da reputação, conquistada com muito esforço pelo Brasil, de agir para evitar conflitos e fomentar forças de manutenção da paz em todo o mundo.
O Brasil precisa reformar amplamente sua política de controle de armas. Uma boa maneira de começar a fazê-lo seria ratificar plenamente o TCA, desenvolver uma supervisão mais rígida e mecanismos de transparência durante o processo de licenciamento e exportação, e adotar um programa rigoroso para garantir que as armas não acabem nas mãos erradas. As políticas do Brasil estão perigosamente desatualizadas e fora de controle, gerando sofrimento verdadeiro no país e no exterior.
Por Robert Muggah e Nathan Thompson
Artigo de opinião publicado em 23 de outubro, 2016
The New York Times (tradução)