O país na mira dos árabes
23 de dezembro, 2016
Em meio à paisagem árida da Península Arábica, a poucos quilômetros de Abu Dhabi, a capital dos Emirados Árabes, e quase na entrada do deserto de Rub’ al-Khali, a maior área contínua de areia do mundo, ergue-se um mortífero complexo fabril: o Tawazun Industrial Park. Em seu interior, são produzidas algumas das mais avançadas armas de combate no mundo, entre veículos blindados, munições, equipamentos de precisão e, principalmente, armas leves, como rifles, pistolas e metralhadoras, que saem dali com a marca Caracal.
O nome tem grande prestígio no meio militar, mas é desconhecido da maioria dos brasileiros, mais familiarizados com fabricantes como Kalashnikov e Glock. Isso, no entanto, deve mudar. A Caracal, indústria pertencente ao governo de Abu Dhabi, está pronta para instalar uma fábrica no Brasil, no município goiano de Anápolis. Ela terá capacidade para produzir cerca de quatro mil armas por dia, incluindo desde pistolas 9 mm, usadas pela maioria das polícias, até rifles sniper, capazes de atingir um alvo a 1,5 quilômetro de distância.
O empreendimento é fruto de uma parceria com dois empresários brasileiros e terá investimentos de R$ 500 milhões. Se tudo ocorrer como planejado, sua construção começará em janeiro de 2017. “Vamos produzir armamentos de primeira linha, sem similares no Brasil”, afirma o advogado goiano Paulo Humberto Barbosa, sócio de um escritório que atende grandes empresas do agronegócio, idealizador do projeto, juntamente com o empresário Augusto Jesus Delgado, dono da fabricante de extintores Delfire. “Nosso foco está nas forças especiais das polícias, federal e civil, e nas exportações.”
A capacidade da fábrica é muito maior do que a demanda nacional. De 2012 a 2015, foram registradas pouco mais de 180 mil novas armas no País, considerando órgãos de segurança pública, empresas privadas e pessoas físicas. Esse é um mercado dominado pela gaúcha Taurus, principal fornecedora das polícias, e pela estatal Imbel, que fornece os armamentos usados pelo Exército. No ano passado, a produção brasileira de armas foi de cerca de 200 mil unidades, mas trata-se de um mercado cíclico. Em 2012, o Brasil fabricou mais de 700 mil armas leves.
Atirador experiente e colecionador de armas, Barbosa começou a negociar com os árabes há três anos. O primeiro contato se deu através de um amigo que o apresentou a Robert Hirt, chefe de operações da Caracal. Inicialmente, ele buscou parceiros na iniciativa privada. “Mas as coisas só andaram mesmo com o apoio do governo de Goiás”, diz Barbosa. É com a ajuda do governador goiano, Marconi Perillo, que a Caracal Brasil espera superar toda a burocracia para instalar uma indústria bélica em território nacional.
Ela não é a primeira estrangeira a tentar isso. Por duas vezes, em meados dos anos 1990 e no início desta década, a austríaca Glock apresentou projetos para se instalar por aqui. As autorizações não saíram. Sobre a Caracal, o Ministério da Defesa confirmou à DINHEIRO que foi informado do projeto, mas que aguarda o envio de mais informações para iniciar sua análise. A referida autorização depende da obtenção de, ao menos, 17 documentos. Barbosa se mostra confiante, graças ao apoio de Perillo. “Vamos gerar 1.200 empregos”, afirma o empresário.
O fato de o projeto prever a nacionalização completa dos armamentos, em até quatro anos, também deve ajudar. Questionado sobre os planos frustrados da Glock, o Ministério da Defesa afirmou que “à época, o plano de negócios apresentado era pautado pela importação de produtos. Dessa forma, não atendeu aos objetivos estratégicos do País.” Essas duas palavras, objetivos e estratégicos, são importantes para entender porque a Caracal tem grandes chances de conquistar a simpatia dos militares.
O Brasil é, atualmente, o quarto maior exportador de armas leves e munições do mundo. Não por acaso. “A expansão progressiva da indústria de defesa brasileira é consistente com dois aspectos imperativos de sua política externa: autonomia e autossuficiência”, afirma Robert Muggah, diretor de pesquisas do Instituto Igarapé, organização voltada ao estudo dos problemas de segurança. A produção de armamentos no País vem desde o início do século 20 e se intensificou nos dois governos petistas, graças à Estratégia Nacional de Defesa, conjunto de políticas e incentivos estabelecidos em 2008.
Em novembro, o ministro da Defesa, Raul Jungmann, defendeu a implantação de um tratado de comércio de armas no âmbito do Mercosul. Ao mesmo tempo, diz Muggah, essa política entra em choque com outro aspecto definitivo da diplomacia brasileira: o comprometimento indissolúvel com a paz mundial e com a defesa dos direitos humanos – por essência, o Brasil é um País neutro e pacífico. Será mesmo? Além das exportações de armamentos, empresas nacionais estiveram envolvidas em situações, no mínimo, embaraçosas para o Itamaraty.
Em setembro, dois executivos da Taurus foram acusados de vender ilegalmente oito mil pistolas para um grupo rebelde que luta contra o governo do Iêmen. A empresa nega envolvimento e diz que colabora com as investigações. No ano passado, nesse mesmo conflito, observadores internacionais encontraram bombas tipo “cluster” que teriam sido fornecidas por indústrias brasileiras. A fabricação desse tipo de bomba foi proibida por mais de 100 países, mas o Brasil as mantém em seu arsenal. O armamento é tido como um dos principais causadores de fatalidades civis. Para Muggah, é imprescindível que o País atualize o chamado PNEMEM, documento que regulamenta a exportação de armas, cuja última reforma aconteceu em 1993, para que se tenha mais transparência no processo.
É fundamental, também, ratificar o Tratado de Comércio de Amas da ONU, assinado pelo País em 2014, que regulamenta esse tipo de comércio e está parado na Câmara dos Deputados desde então, graças ao trabalho da chamada “bancada da bala”, que tem em seu maior expoente a figura do deputado de extrema direita Jair Bolsonaro (PP-RJ). “Há uma questão paralela a respeito do quanto o setor de defesa contribui produtivamente para o País”, afirma Muggah. “Em relação aos segmentos naval e aeroespacial, isso é mais evidente. Mas talvez não seja o caso das armas de fogo, que possuem menos tecnologia.”