Nota Conjunta: Organizações alertam sobre risco de desmonte da política de uso de câmeras corporais pela polícia em São Paulo

Comissão Arns, Conectas, Instituto Igarapé, Instituto Sou da Paz e NEV/USP pedem continuidade e fortalecimento da implementação das bodycams para frear aumento da letalidade policial no estado

26 de outubro de 2023 – Nos últimos anos, a Polícia Militar do Estado de São Paulo implementou uma série de medidas visando o controle do uso da força. Entre as inovações mais efetivas, se encontra o programa “Olho Vivo” que equipou policiais com câmeras portáteis (COPs) que gravam a rotina operacional. Estudo realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública indicou uma queda geral de 62,7% na letalidade policial, entre 2019 e 2022, com especial ênfase nas unidades já equipadas com as COPs. Análise realizada pelo CCAS/FGV, com colaboração da PMESP, indica que as câmeras foram responsáveis diretamente por 57% de redução no número de mortes decorrentes de intervenção policial e queda 63% nas lesões corporais causadas por policiais militares. Estudo recente do Instituto Sou da Paz revela que os casos de mortes de jovens (entre 15 e 24 anos) caíram 46% após a implementação das câmeras.

Além disso, as câmeras oferecem proteção física e jurídica para os policiais, conforme estudo do Instituto Sou da Paz sobre o projeto de implementação das bodycams em São Paulo. Não apenas as gravações tendem a apaziguar os ânimos durante as abordagens, o que diminui os casos de agressão contra policiais, mas ainda servem como evidências contra acusações injustas, trazendo segurança para os agentes e para a corporação como um todo.  Nesse aspecto, o principal resultado a ser celebrado é a significativa redução no número de mortes de policiais. Em 2020, 18 PMs foram vítimas de homicídio durante o trabalho no estado de São Paulo; em 2021, foram quatro (-77%); em 2022, foram seis (-66%).

As evidências indicam ainda que a redução da letalidade vem atrelada ao ganho de produtividade da ação policial. Em resumo, as câmeras diminuem a necessidade do uso da força, mas não a capacidade da polícia de contribuir para a redução dos índices de criminalidade. Pelo contrário, policiais com COPs produzem mais notificações no sistema interno da PMESP, o que gerou, por exemplo, um aumento de 102% nos registros de violência doméstica.

O êxito da política de segurança pública de São Paulo serviu de exemplo para diversos estados, que passaram a investir nas câmeras corporais como forma de gerar maior controle e transparência da ação policial. Os resultados também chamaram a atenção do governo federal, que criou um grupo de trabalho no Ministério de Justiça e Segurança Pública para elaborar normativas nacionais de implementação das câmeras. O mesmo ocorreu com o Ministério Público Federal e com o STF, que tomaram decisões favoráveis ao uso de câmeras corporais por parte das forças de segurança em todo o país.

No entanto, em vez de de celebrar os resultados do programa “Olho Vivo” e planejar a expansão do uso de câmeras corporais nas unidades policiais, o atual governo de São Paulo tem trabalhado para a desconstrução da política de controle do uso da força.

Durante a campanha eleitoral de 2022, Tarcísio de Freitas deu declarações contrárias ao uso das câmeras. Uma vez eleito, o governador tem ignorado as múltiplas evidências sobre os efeitos positivos das COPs e trabalhado para frear o seu uso, ao congelar o cronograma de implementação das câmeras e cortar o orçamento previsto para a manutenção dos equipamentos. Segundo o planejamento orçamentário aprovado na ALESP no ano passado, o programa “Olho Vivo” deveria contar com R$152 milhões em 2023, valor que já foi reduzido em mais de 20%. O planejamento da ALESP previa ainda a compra de mais 5 mil câmeras para a polícia militar (um crescimento de aproximadamente 50%), mas o atual governo não fez os aportes necessários para tal.

A falta de uso de câmeras tem gerado críticas contra a própria polícia militar. Durante a “Operação Escudo” na Baixada Santista, a Defensoria Pública e a Ouvidoria da Polícia do estado de São Paulo apontaram diversos indícios de abuso no uso da força letal. As câmeras poderiam ajudar a corporação e o sistema de justiça criminal a apurar os fatos, punir eventuais desvios e resguardar a polícia. No entanto, o que se viu foi o uso inadequado das câmeras que, em número reduzido e com desrespeito às normas operacionais (diversos equipamentos estavam sem bateria, por exemplo), foram incapazes de contribuir para uma análise mais adequada das ações policiais. A falta de transparência alimentou as denúncias sobre tortura e execuções durante a operação.

Não apenas a implementação das câmeras corporais e o controle do uso da força letal parecem ter deixado de ser prioridade do governo, mas a cooperação com instituições de pesquisa também tem se tornado mais complicada. Pesquisadores por vezes enfrentam dificuldade de acesso a dados que permitam avaliações de impacto das políticas de segurança pública. Sem a capacidade de produzir novas pesquisas sobre os efeitos das câmeras, a própria polícia fica no escuro, confiando mais no “achismo” do que nas evidências científicas. 

De fato, existem críticas legítimas às câmeras. Por exemplo, o monitoramento da rotina de trabalho deve respeitar o direito à privacidade dos agentes de segurança. Policiais são gravados durante ações operacionais, mas também quando usam o banheiro, fazem refeições ou conversam sobre suas vidas. Também é comum entre os policiais o receio de que as imagens possam ser usadas pelos supervisores não para apurar denúncias ou apontar melhorias nos procedimentos operacionais, mas para coibir seletivamente pequenos desvios, como botas não engraxadas. Como a aplicação de regras de conduta nem sempre é clara, policiais temem que as câmeras contribuam para o abuso de autoridade dentro das unidades policiais. Entretanto, mesmo para identificar as críticas às COPs, é preciso que a polícia esteja aberta à pesquisa e a sugestões sobre melhorias nos protocolos de uso das imagens.

Infelizmente, ao invés de aprimorar os protocolos, aumentar a transparência da gestão e estreitar o diálogo com a sociedade civil, o governo de São Paulo tem caminhado na direção inversa. O resultado da desmobilização do projeto “Olho Vivo” já é sentido pela população: entre janeiro e setembro de 2023, policiais do estado mataram em serviço 283 pessoas, um aumento de 45,1% em relação aos primeiros nove meses de 2022, quando SP registrou 195 vítimas fatais de policiais em serviço.

O sucesso de políticas de redução do uso da força letal, como o projeto “Olho Vivo”, depende de uma série de fatores, como a supervisão atenta do comando da Polícia Militar, o apoio político do Governador e do Secretário de Segurança Pública e a atuação de mecanismos externos e internos de controle. Quando o governo tira a prioridade das câmeras corporais, ele ignora as evidências científicas e aponta para um horizonte de políticas de segurança pública baseadas meramente na violência policial.

Comissão Arns

Conectas Direitos Humanos

Instituto Igarapé

Instituto Sou da Paz

Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV/USP)

 

São Paulo, 26 de outubro de 2023

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