Com restrições à maconha medicinal, Brasil boicota o próprio futuro

 

Outubro, 2015

As leis jamais deveriam ser feitas para bloquear o acesso de pessoas doentes aos medicamentos

Uruguai, Chile, Canadá, Israel, 24 estados dos EUA, Áustria, Bélgica, Finlândia, República Tcheca, Espanha, Holanda e Suíça são alguns exemplos de lugares do mundo onde já é possível comprar com relativa facilidademedicamentos feitos à base de cannabis, extratos da planta ou a erva in natura.

Nesses e em mais alguns países, qualquer cidadão que tenha uma prescrição médica pode optar por experimentar cannabis em seu tratamento, em suas variadas formas de administração, de acordo com sua enfermidade. São milhões de pessoas que têm o direito à saúde e à livre escolha do tratamento assegurados por lei e na prática.

Nas últimas décadas, inúmeros cientistas em diferentes países têm aceitado o uso desses remédios e dos extratos de maconha como eficazes para tratar doenças e aliviar sintomas variados. Entre eles estão: AIDS, anemia falciforme, anorexia, ansiedade, artrite, ataxia, câncer de diferentes tipos, dependência de drogas, desordens digestivas, doença de Crohn, distonia, dores crônicas, enxaqueca, cólicas, epilepsias, esclerose múltipla, esclerose lateral amiotrófica, espasticidade, glaucoma, reumatismo, dentre outras.

Isso tem gerado o movimento mundial que resultou, em diferentes países, na regulamentação do cultivo, produção, comércio e distribuição de medicamentos à base de maconha e seus extratos naturais para uso medicinal.

No Brasil, desde 2006 a legislação brasileira já afirma a possibilidade do uso medicinal legal através de autorização especial emitida pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Somente a partir de 2014, centenas de pessoas começaram a procurar a Anvisa para solicitar autorização e poder legalmente fazer uso medicinal de fitocanabinóides.

No início de 2015 a Anvisa iniciou a regulamentação da importação de produtos contendo CBD, um dos fitocannabinóides mais conhecidos. No entanto, existem milhões de brasileiros que poderiam se beneficiar do uso de fármacos contendo esse e outros princípios ativos da planta.

Essas pessoas não são informadas a esse respeito, nem sequer têm garantidos seus direitos de acesso ao medicamento. Além disso, os poucos que têm conseguido autorização da Anvisa têm sido obrigados a importar o medicamento a custos altíssimos, já que não há produtores no Brasil autorizados a cultivar e comercializar os produtos.

Cada doença e enfermidade exige um equilíbrio bioquímico específico entre cannabinóis, terpenos, um modo de administração singular, e cada variedade genética de maconha tem uma combinação específica dos compostos naturais. São mais de cem fitocanabinóides, moléculas produzidas exclusivamente por plantas de maconha, além do THC e CBD, os mais conhecidos.

Mesmo nos países onde a regulamentação está mais avançada, as pesquisas sobre os modos de cultivo e produção dos extratos e medicamentos ainda estão no início do seu desenvolvimento. O Brasil, por adotar uma política proibicionista severa, está obstruindo não apenas os usos medicinais legítimos. Está também negando aos pacientes acesso ao tratamento e impedindo o desenvolvimento do conhecimento científico nacional a respeito da maconha medicinal.

Um estudo um pouco mais aprofundado da história que não é contada nas escolas sabe que, desde o início da colonização até o início do século 20, muitos brasileiros cultivaram legalmente maconha em diversas regiões do país, inclusive o próprio governo, por meio da Real Feitoria do Linho-Cânhamo.

As produções tinham como objetivo principal a extração das fibras das plantas. À época, principal cultivo têxtil no mundo. Mas o cultivo era tão difundido culturalmente que também havia muitos usos para fins medicinais, e suas sementes, embora não tendo princípios ativos, mas apenas nutrientes benéficos e óleos vegetais, eram usadas como alimento humano e matéria-prima do óleo combustível para lamparinas, dentre outros usos registrados em documentos.

Hoje, o governo brasileiro mantém uma guerra cega a todos os usos da maconha em nome do combate ao tráfico de drogas. Todos os anos, o governo apreende toneladas de maconha cultivada ilegalmente para fins não medicinais, incinera tudo e processa criminalmente os envolvidos.

De outro lado, a cada dia, mais e mais pessoas procuram acesso a medicamentos à base de cannabis e de seus extratos naturais. A maior parte daqueles que estão autorizados a utilizar extratos têm, inclusive, optado por extratos da planta com baixas concentrações de fitocanabinóides e terpenos, por serem subprodutos oriundos de plantações destinadas à indústria têxtil e não por serem cultivadas exclusivamente para fins medicinais.

Manter uma regulamentação precária e excludente é uma atitude que afeta milhões de pessoas que necessitam de acesso a extratos naturais completos, de boa qualidade, produzidos exclusivamente para fins medicinais, e também aqueles que não têm meios para arcar com os altos custos da importação dos medicamentos atualmente disponíveis no mercado.

Somente quando o cultivo e a produção nacional para fins medicinais forem totalmente regulamentados é que haverá acesso livre a extratos e medicamentos de qualidade. As leis jamais deveriam ser feitas para bloquear o acesso de pessoas doentes aos medicamentos.

Cabe agora à sociedade civil organizada pressionar para que o governo e a Anvisa não cometam o mesmo erro do passado e tornem impeditivo o cultivo e produção nacional para fins de pesquisa e uso medicinal, algo que já está previsto desde 2006, quando entrou em vigor a Lei 11.343, mas que até hoje não foi posto em prática.

O que realmente precisamos é de uma regulamentação dos usos da maconha para fins científicos e medicinais que seja plena e inclusiva e não atenda somente a interesses específicos. É preciso que todos os tipos de remédios à base da planta, indicados para todas as enfermidades, estejam acessíveis a todos que precisam. Enquanto isso não ocorrer, o Brasil estará não apenas boicotando seu futuro enquanto nação, mas condenando milhões de cidadãos ao sofrimento no presente.

*Sergio Vidal é antropólogo, presidente da Associação Multidisciplinar de Estudos sobre Maconha Medicinal (AMEMM) e pesquisador da Associação Brasileira de Estudos Sociais sobre o Uso de Drogas (ABESUP).

Carta Capital

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