Sigam as balas

É mais eficaz fortalecer o poder de investigação e o controle do uso da força pelas polícias

28/03/2018
Publicado originalmente na Folha de S.Paulo

Duas semanas se passaram. Com Marielle morreram os sonhos de muita gente, em especial de mulheres negras que viam suas vozes finalmente representadas por uma jovem política corajosa. O pouco que sabemos da investigação demonstra como a omissão de autoridades e as falhas na implementação da lei de controle de armas —o Estatuto do Desarmamento—, dificultam a apuração e contribuem para a impunidade nos homicídios. Como já defendi aqui, o estatuto foi essencial para reverter o aumento acelerado das mortes causadas por arma de fogo no Brasil.

Marielle foi morta com tiros de pistola calibre 9mm, com munição comprada pela Polícia Federal de Brasília. O lote de munição UZZ-18 foi comprado em 2006, da Companhia Brasileira de Cartuchos e tinha mais de 1,8 milhão de cápsulas. Superintendências de SP, RJ e DF receberam mais de 200 mil balas cada uma.

Munição desse mesmo lote foi usada em crimes de facções rivais de traficantes que resultaram na morte de cinco pessoas em São Gonçalo (RJ), entre 2015 e 2017, e na maior chacina de São Paulo, em 2015, com 17 pessoas mortas em Osasco e Barueri.

Em 2015, os Institutos Igarapé e Sou da Paz com a ONG Viva Rio lançaram um documento com subsídios da sociedade para o aperfeiçoamento da lei de controle de armas e munições no Brasil. Nossas sugestões ainda não saíram do papel. Reencaminhei para o Ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, com a esperança de que pontos já previstos na lei avancem. Pedimos que todas as munições vendidas no país, inclusive para civis, tenham numeração gravada no culote. Isso é padrão para quase todos os fabricantes de armas no mundo.

O tamanho dos lotes com o mesmo número precisa ser pequeno (mil unidades cada), para que o rastreamento seja feito com precisão. Estojos encontrados em locais de crimes foram fundamentais para a elucidação de homicídios emblemáticos, como o da juíza Patrícia Acioli, assassinada em Niterói em 2011. Hoje, a lei define que todas as munições vendidas às forças de segurança e outras categorias com permissão de porte de armas devem ser marcadas, mas como vimos no caso de Marielle, esses lotes são grandes demais. A indústria de armas resiste a adotar essas mudanças alegando aumento de custo. Porém, existem tecnologias baratas para a marcação.

Pedimos também uma melhor marcação das armas fabricadas e vendidas no Brasil. Hoje ela é mecânica, sendo facilmente raspada, o que dificulta o rastreamento dos responsáveis pelo desvio de armas para o crime. Sistemas de marcação por chip já estão disponíveis. Outras medidas fundamentais para que a lei funcione são a integração dos bancos de dados de armas da Polícia Federal e do Exército, a melhoria do controle do material bélico das forças de segurança pública, e a melhor fiscalização de armas e munições das empresas de segurança privada e de caçadores, colecionadores e atiradores desportivos.

Vários desses pontos já estão previstos em lei há anos, outros só dependem da vontade das autoridades. Cobrar a implementação para fortalecer o poder de investigação e o controle do uso da força pelas polícias é muito mais eficaz para a sociedade do que a maioria das atuais propostas legislativas em discussão no Congresso. Saibamos exigir o que de fato nos deixará mais seguros. Por Marielle, por Anderson e pelas 44 mil vítimas de homicídios por armas de fogo a cada ano.

Ilona Szabó de Carvalho

Cientista política fluminense, é mestre em Estudos de Conflito e Paz por Uppsala.

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